Numa atitude oposta à da cultuada pelo otimismo cego de certas épocas, Dona Lucilia tomava o sofrimento como um componente inelutável deste “vale de lágrimas”, a ser aceito com resignação e confiança na misericórdia divina. Conforme salienta Dr. Plinio, essa postura serena diante da dor a inclinava constantemente para a compaixão e a caridade em relação ao próximo abatido pelos reveses e infortúnios da vida.
Em sua existência quotidiana, mamãe se relacionava com os outros tendo como fundo de quadro o pressuposto de que a vida humana traz necessariamente, para todo homem, grandes sofrimentos. Em última análise, depois do pecado original, cada criatura humana está sujeita a sofrer e, portanto, não existem os grandes gozadores. O bon vivant é, na realidade, um sofredor que disfarça seu padecimento.
Pena de quem não sofresse
De outro lado, Dona Lucilia estabelecia suas relações no fato de ir à procura — com a discrição e o bom senso convenientes — do sofrimento do próximo para o ajudar. Quer dizer, evitava esse sistema infelizmente comum dos contatos de egoísmo com egoísmo, que acabam gerando mágoas mútuas.
Por causa disso, ela tinha também como pressuposto que minha vida era muito semeada de sofrimentos, e via nessa circunstância uma condição para a elevação da minha alma, assim como a de qualquer pessoa. Donde, acredito que ela teria muita pena de quem não sofresse, julgando-o de certo modo menos querido por Deus. Ou seja, segundo a visão dela, a principal solicitude da Providência Divina para com os homens não é, como sói se considerar, evitar-lhes toda dor, mas permitir-lhes um certo sofrimento proporcionado e equilibrado que os santifica.
Preocupação com as dificuldades do filho
Nesse sentido, mamãe percebia que eu me achava imerso num conjunto de lides apostólicas. Talvez não notasse até que ponto essas lutas eram simultâneas e como constituíam um verdadeiro bloqueio de provações, ameaçando soçobro completo de nossa obra, de um momento para outro. Ou, se percebia, era de maneira não muito nítida. O certo é que rezava assiduamente por mim, e por essa sua atitude temos idéia do quanto se preocupava com minha situação.
Profundamente compassiva, Dona Lucilia entendia que a principal solicitude da Providência para com os homens é de lhes permitir um sofrimento proporcionado e equilibrado que os santifica
Mais especialmente, o que menos ela poderia calcular eram as dificuldades financeiras, entretanto cruciantes. Disto mamãe — pessoa de um tempo em que a vida, do ponto de vista econômico, era mais fácil — não teve sequer vislumbre, pois, com o favor de Nossa Senhora, foi-me possível manter a inteira regularidade de situação para ela, sustentando o teor de existência material a que estava afeita.
Quanto ao mais, ela percebia uma imensidade de sofrimentos e batalhas que eu enfrentava. E nisso ficávamos.
“Embora fossem grandes as provações pelas quais eu passava, foi-me possível manter o teor de vida material condizente com o que mamãe estava acostumada”
Apoio e entendimentos recíprocos
Referindo a esse relacionamento de Dona Lucilia, gostaria de salientar este aspecto: uma vez que ela pretendia estabelecer seus contatos sob uma base séria, achava que o trato não devia ser carrancudo, mas feito de confiança mútua, expressa, senão verbalmente, ao menos por gestos, com apoio e entendimento recíprocos, em tom de seriedade com um fundo de melancolia.
Talvez as gerações mais novas não façam idéia de como essa postura era, para muitos, fora de propósito nos últimos anos da vida de mamãe, que corresponderam a um certo período de progresso econômico no Brasil. Muitos viviam na alegria pela alegria, não querendo encarar de frente o lado penoso do dia-a-dia. Daí certa incompatibilidade com Dona Lucilia. Por exemplo, acontecendo algo triste com algum conhecido, mamãe se julgava no dever de contar para outros amigos comuns. A reação deste e daquele: “Se eu não posso remediar, não me conte nada, porque já bastam as coisas que me aborrecem”. Noutras palavras, “transmita apenas as boas notícias”…
Saudades: ornato da vida
Ainda nessa consideração do sofrimento, é interessante ponderar que, para ela, as saudades eram um ornato da vida. Lembrar das pessoas antigas, já falecidas, dos costumes que houve, do tempo que passou, dos lances difíceis e alegres da vida dos que já foram, constituía habitualmente — sem se transformar em idéia fixa — um modo de povoar a cabeça dela. Como é natural, essa peculiaridade projetava um fundo de nostalgia e de tristeza no convívio com ela, além de ser estritamente contrário aos estilos do período favorável à economia nacional, a que me referi. Para os adeptos da felicidade sem névoas, não se devia aludir à morte de algum parente, nem comentar a respeito, a não ser para inventário, pois tratava-se de esquecer qualquer elemento de tristeza
Ora, para Dona Lucilia era o contrário. Com freqüência lembrava tal pessoa, tal outra, figuras que às vezes os próprios circunstantes não tinham alcançado e ela lhes fazia conhecer através da recordação deste ou daquele fato, etc. Hábito este completamente afastado pelo mundo de então. Cumpria falar do futuro, das invenções mais recentes, dos avanços da técnica, da medicina, das últimas excentricidades da moda, das músicas mais saltitantes. A História era um tanto o necrotério da vida dos homens, e em vez de se cuidar do passado, importava tratar do momento presente.
Não será difícil compreender como essa mentalidade moderna era em tudo diferente da do mundo em que Dona Lucilia viveu e formou seu espírito, tão compassivo e solícito para com a tristeza e o sofrimento do próximo.
(Extraído de conferência em 17/6/1982)