Como vimos em anteriores artigos, Dª Lucilia muito admirava as qualidades morais de seu pai, Dr. Antônio, e se comprazia em assinalá-las quando recordava os episódios marcantes de sua infância na antiga Pirassununga.
Dr. Antônio ampara um adversário político
Por exemplo, a generosidade abnegada com que estendia ao próximo sua mão protetora, mesmo que o beneficiado não comungasse das mesmas crenças políticas. Assim, certa feita um ferrenho adversário seu fora injustamente acusado como autor de um crime. Nenhum advogado em Pirassununga aceitou defender o suposto criminoso, a não ser Dr. Antônio. O fato de um inimigo político ter a ele recorrido como advogado, constituía reconhecimento cabal de sua nobre imparcialidade.
O homem havia sido preso numa cidade distante e devia chegar de trem, para ser julgado em Pirassununga. Espalhou-se o boato de que seus inimigos tinham organizado uma vaia à sua passagem. Apesar da possibilidade de tal vexame, Dr. Antônio recebeu-o na estação e advertiu os soldados:
— Sou o Dr. Antônio e respondo pela liberdade deste homem. Vamos atravessar a cidade juntos e não haverá vaia!
E acompanhou seu cliente até a cadeia. No dia seguinte, Dr. Antônio compareceu ao tribunal, defendendo vitoriosamente o inimigo.
Ao contar esse episódio, Dª Lucilia ufana revivia as cenas, não por desejar engrandecer-se, mas para realçar o caráter impoluto de seu pai, que tanta confiança despertara ao inimigo. Destacava a magnanimidade de Dr. Antônio em relação a um homem o qual, aliás, após ter sido posto em liberdade, voltou a atacá-lo.
Uma noite, anos mais tarde, batem à janela de Dr. Antônio, a fim de lhe dizer que o referido homem estava morrendo de tuberculose, e pedir urgente socorro. O moribundo havia caído na miséria e nem sequer cama possuía. Agonizava deitado no chão, enquanto sua esposa, ajoelhada, lhe sustentava a cabeça. Apesar do grande risco de contágio, Dr. Antônio, esquecendo-se de todas as ofensas de que tinha sido objeto, vai pessoalmente à farmácia e, após comprar a suas expensas todos os medicamentos necessários, atende o enfermo. Por fim, o adversário expira em seus braços…
Salvando a vida de um inimigo
Eis um outro fato que, para Dª Lucilia, pareceu rico em significado, razão pela qual o conservou em sua memória com muito carinho. Mais uma vez foi seu querido pai o protagonista.
Certa ocasião, Dr. Antônio compareceu a uma reunião num local ermo, fora da cidade, onde para se chegar era preciso atravessar a cavalo uma floresta. Concluído o encontro, quando ele estava pronto para partir, recebeu a comunicação de que estava preparada uma emboscada para assassinar um dos participantes, seu adversário.
Tomado por um grande sentimento de lealdade, procurou a pessoa visada e lhe disse:
— Está armada essa emboscada. Mas os eventuais assassinos vão tentar identificá-lo pela roupa, pela capa, pelo chapéu, porque à noite, na floresta, é difícil distinguir as fisionomias. Faço-lhe uma proposta: troquemos de capa e de chapéu, e primeiro sai o senhor com as minhas vestes, conseguindo assim passar ileso. Depois eu saio com seu chapéu e sua capa, mas de rosto inteiramente de fora, e uma lanterna acesa, de maneira que percebam que sou eu. Creio que desta forma escapamos os dois.
Dito e feito.
Dona Lucilia achava sublime a caridosa lealdade de Dr. Antônio em favor de um inimigo. As narrativas delas, em que tanto transparecia sua veneração pelo pai, assim como pelos encantos do Brasil antigo, tinham certo modo francês de encarar e descrever aquela realidade na qual se mesclavam algo de banditismo nacional e de romances ao estilo de Alexandre Dumas…
O testamento de uma mulher de má vida
De outra circunstância bastante diversa, Dª Lucilia recolheu mais um elemento, a fim de compor o mosaico da integridade de caráter de Dr. Antônio, que a memória dela soube conservar com verdadeiro amor filial.
Encontrava-se às portas da morte uma mulher de notória má vida, que ganhava grandes quantias de ricos fazendeiros da região. Vendo seu fim próximo, resolveu deixar os bens à família, através de testamento. Mas não aceitou outro advogado que não fosse Dr. Antônio, e explicou:
— Homem que freqüenta minha casa não merece confiança. Eu só dou minha confiança a quem nunca esteve aqui.
Diante dessa difícil situação, a primeira atitude que ele tomou foi procurar sua esposa, Dª Gabriela, e pô-la ao corrente, dizendo-lhe:
— Eu vou se você quiser; se você não quiser, não vou. Porque quem tem direito sobre mim é você. Agora diga o que você quer.
Somente depois da autorização da esposa, Dr. Antônio aceitou fazer o testamento daquela pessoa.
Rejeição de um negócio desonesto
Ainda outra história, da qual Dª Lucilia nunca se olvidou, dava-lhe ensejo de destacar o irrepreensível feitio moral de seu pai.
Certo dia, Dr. Antônio recebeu um recado da parte de influentes amigos de São Paulo, convidando-o para uma reunião na Capital, presidida por um conhecido personagem. Foi só sentar-se à mesa, percebeu tratar-se de um alto negócio, pois estavam presentes pessoas muito importantes. Ouviu as propostas e, ao certificar-se de que nelas havia uma ponta de desonestidade, levantou-se repentinamente, dizendo:
— Então é a mim que vocês vêm propor uma coisa dessas? Incomodarem-me em Pirassununga e me tirarem dos meus negócios, para vir aqui e ouvir isso? É inacreditável! — e saiu.
Ainda não tinha chegado à rua, notou que alguém lhe vinha ao encalço. Era Antônio da Silva Telles1, que o tendo alcançado, disse:
— Totó, estou com você.
Foram os dois únicos a se retirarem da reunião.
Fatos como esse repercutiam fora do ambiente doméstico, granjeando a Dr. Antônio fama de homem honesto e criterioso, a qual perdurou na sociedade paulista.
Assim, contava um neto do Barão de Piracicaba que seu avô costumava dizer:
“Em minha casa só se faz negócio aprovado pelo Antônio Ribeiro dos Santos. Quem sabe fazer contrato, amarrar de modo que ninguém desamarra, é ele. E por causa disso eu não faço negócio sem ouvi-lo. Ele sabe proceder com bom senso, regra, medida e perfeição”.
Compreende-se, pois, que Dª Lucilia conservasse do pai uma saudosa, admirativa e respeitosa lembrança que procuraria transmitir aos seus próprios filhos.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1) Antônio Carlos da Silva Telles provinha da alta sociedade do Estado do Rio, tendo, pelo matrimônio, unido-se a uma família de fazendeiros paulistas, riquíssimos e muito finos. Íntimo amigo de Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, até fisicamente se parecia com ele, embora não tivessem entre si o mínimo parentesco. Era um daqueles homens que, para Dª Lucilia, permaneceram como símbolos da sociedade de outrora, idealizada por ela como quase totalmente virtuosa.