miércoles, noviembre 27, 2024

Populares da semana

Relacionados

A harmonia entre grandes e pequenos – Um reflexo da perfeição divina

Após tomar conhecimento de um conto de Natal narrado por G. Lenôtre1, Dr. Plinio o transmitiu a seus jovens ouvintes, com aplicações e frutuosos ensinamentos sobre a relação harmônica, repassada de benevolência, que deve existir entre grandes e pequenos numa sociedade baseada nos princípios cristãos.

Com seu estilo atraente e espirituoso, Lenôtre escreveu um de seus contos de Natal de maneira própria a desmitificar certas idéias sobre as causas mais profundas que determinaram a revolução de 1789 na França, bem como acerca do relacionamento entre as classes sociais naquela época.

Procurarei reproduzir o conto conforme este me ficou na lembrança, tirando as ilações e aplicações que este nos sugere.

Uma “guerra de nervos” na Conciergerie

Imagine-se a Conciergerie2, prisão lúgubre onde eram detidos os condenados pelos revolucionários, muitos deles membros da aristocracia. É véspera de Natal de 1792, digamos, e ali se encontra um conde cujo “crime” maior era o de pertencer a uma classe que se destacava pela cultura, elegância e distinção.

Nos piores dias da Revolução Francesa, a Conciergerie era uma lúgubre prisão, onde os condenados — muitos deles nobres e aristocratas — aguardavam a carroça que os levaria à guilhotina

Fotos: P. Mikio / S. Hollmann / Arquivo revista

Nessa época, a Conciergerie estava repleta de presos, e todas as manhãs uma carreta vinha apanhar dez ou doze condenados que seriam executados naquele dia. Um pretenso oficial de justiça lia a sentença com a pena de morte, e logo depois ordenava que os levassem para a praça onde se erguia a tristemente célebre guilhotina.

Após a partida da carreta — ou das carretas, conforme a quantidade de vítimas destinadas à execução —, os remanescentes respiravam um pouco aliviados. Mas, à medida que ia entardecendo, sentiam chegar provavelmente o crespúsculo de suas vidas. E quando conseguiam dormir à noite, muitos acordavam agoniados de madrugada, pois a próxima carroça poderia levá-los ao cadafalso.

Assim passavam-se os dias, as semanas, os meses na Conciergerie. Era uma guerra de nervos.

Visita inesperada numa noite de Natal

O conde está sozinho, pois seus companheiros de infortúnio já haviam seguido seu destino cruel. Ele observa as coisas através das grades de sua masmorra, e se lembra das festas de Natal passadas em sua residência parisiense. Era viúvo, possuía apenas um filho, ainda menino, para o qual preparava uma pequena ceia. À meia-noite ele despertava a criança, e esta, alegre e maravilhada, contemplava a árvore de Natal decorada com encantadores enfeites e velinhas vermelhas; saboreava com os olhos apetitosos alimentos dispostos na mesa e, sobre os sapatos deixados junto à lareira, encontrava os presentes trazidos pelo Papai ­Noel. O conde se desdobrava em afetos e carinhos para com o filho, tentando substituir desse modo o papel da mãe, já falecida.

Ora, numa dessas noites de Natal, o nobre esperava a hora de acordar o menino quando ouviu um grande barulho vindo da chaminé da lareira apagada. Para a sua surpresa, vê que alguém despenca lá do alto, apruma-se e entra no salão da casa.

Algo assustado, o conde verificou tratar-se do menino pobre a quem ele costumava pagar para manter a chaminé limpa. De fato, o garoto estava trabalhando naquele momento, perdeu o equilíbrio e caiu lá de cima, coberto de fuligem.

Também ele um tanto espantado, o menino considerou aquela sala belamente ornada para uma festa de Natal, e o homem ali, sozinho, vestido como os nobres daquele tempo: sapatos de verniz com salto vermelho e fivelas douradas; meias de seda até os joelhos, roupas de veludo ou igualmente de seda, cabeleira empoa­da, etc. Era o conde.

Cenas da Revolução Francesa – Assim como o limpador de chaminés do conto de Lenôtre, muitos franceses tinham inteira ciência dos atos e urdiduras tramados pela Revolução

Fotos: P. Mikio / S. Hollmann / Arquivo revista
Fotos: P. Mikio / S. Hollmann / Arquivo revista

Noutro relance de vistas, notou com olhar faminto a mesa posta com os deliciosos quitutes e doces, destinados ao filho da casa que dormia. O conde se compadeceu dele, ajudou-o a remover o pó e a sujeira, e o mandou se lavar. Por fim, deu-lhe um régio presente de Natal: uma moeda de ouro chamada luís, porque trazia a efígie do rei com esse nome. Havia então luíses referentes ao monarcas Luís XV e Luís XVI, e uma só dessas moedas bastava para comprar muito mais que o necessário para uma boa refeição.

O limpador de chaminé se retirou muito agradecido e, nos anos seguintes, na noite de Natal, retornava à casa do conde e lhe oferecia seus préstimos. O nobre o recebia com bonomia, aceitava a proposta e, na hora de se despedirem, dava sempre ao garoto uma moeda de ouro. Além disso, começou a auxiliar também a família dele, e essa solicitude acabou constituindo entre ambos uma simpatia repleta de benevolência.

A retribuição do beneficiado

Alguns anos se passaram, o filho do conde e o limpador de chaminé se tornaram mocinhos. Sobrevém a Revolução Francesa, o nobre é perseguido, seu filho foge, e a mansão fica abandonada.

Retornemos à Conciergerie e aos fatos daquela noite de Natal.

Enquanto o conde está imerso nessas e noutras recordações de cenas familiares, seu filho, que caíra na pobreza, vagueia pelas ruas do bairro onde se localiza sua casa. Em determinado momento ele encontra o limpador de chaminé, de quem ficara amigo e que viera para a costumeira “visita” de Natal. Este último, estranhando o aspecto do conhecido, pergunta pelo seu nobre benfeitor.

— Você não sabe? Meu pai foi preso.

— Mas, como?! O conde, um homem tão bom, na prisão?!

Perplexidade compreensível da parte do limpador de chaminés, pois muitas pessoas da própria Paris não sabiam ao certo o que a Revolução urdia e praticava. O filho do conde lhe conta então como os nobres estavam sendo detidos, e concluiu:

— Este ano, meu caro, não há ­luís de ouro, nem para você, nem para mim…

— Não há nada?

— Tenho apenas um maço de moe­das, para subsistir e arranjar um meio de libertar meu pai, mas não sei como fazê-lo.

— Onde o conde está preso?

— Na Conciergerie.

— Talvez eu possa fazer algo. Se eu lhe pedir o maço de moedas para libertar seu pai, o senhor confia em mim?

— Tome-o!

Na prisão, o conde está só em sua cela, a um canto da qual crepitam algumas brasas numa lareira raquítica. Meus ouvintes intuem o resto da história… O rapaz consegue descer pela chaminé e penetrar na cela do nobre, evitando de se queimar nas brasas. Surpreso, o conde exclama:

— Você, aqui?! Entrando pela chaminé!

— Não temos um minuto a perder, senhor conde. Por favor, execute o plano que vou lhe propor, para fugirmos. Venho trazendo uma roupa toda suja, de limpador de chaminés, para o senhor também.

E o conde faz o que nunca imaginou na vida, ou seja, veste aquela roupa gasta e enegrecida. O mocinho apanha um pouco de fuligem na lareira e a espalha na face do nobre. Em seguida, combinam:

— Vamos sair pela portaria, dizendo que já terminamos o serviço de limpeza. É a hora da troca de guardas; o que assume o posto não sabe quem entrou para limpar a chaminé. Se formos agora, existe uma possibilidade de escaparmos. Não perca tempo em me agradecer. Vamos, temos de sair!

O conde entende a situação e os dois se dirigem à saída do cárcere. Perguntado pelo porteiro sobre o que estava acontecendo, o rapaz faz um sinal ao conde, indicando-lhe “vá andando”, e responde:

— Sou limpador de chaminé e recomendei àquele meu colega para ir caminhando, pois queria dizer a você o seguinte: tenho um pacote de moe­das para ser entregue a seu chefe. Porém, não sei bem o que fazer: ou ele e eu esperamos seu chefe acordar, ou saímos, deixando as moedas aos seus cuidados…

Nesse momento, o conde e o rapaz ficaram entre a vida e a morte. O porteiro pensou um pouco e disse:

— Pode deixar o pacote aqui, que eu depois entrego. Vocês vão andando.

Claro, de posse das moedas, o porteiro tinha todo o interesse em que os dois se retirassem, a fim de não revelarem nada ao chefe.

Eles saem devagar. Caminham pela Paris deserta e chegam a um local próximo à mansão do conde, onde estava marcado o encontro com seu filho. Montam em cavalos já preparados e fogem. Os três se achavam a salvo da fúria revolucionária.

Precioso fator de união entre os homens

Qual o significado desse conto?

Ele exprime a versão real das relações entre as classes sociais antes da Revolução Francesa, inteiramente oposta àquela que costumam apresentar certos historiadores tendenciosos. Segundo estes, se um conde, estando em sua mansão, visse cair um menino sujo pela chaminé, diria tomado pela raiva:

— Fique aí dentro mesmo, não ponha os pés no meu salão. Você estragou minha chaminé e agora merece um castigo exemplar! E não adianta pôr esses olhos de gente faminta sobre os alimentos finos que estão sobre a mesa. Estes são para meu filho, e não para um vagabundo e plebeu como você. Vá embora antes que mande alguém lhe dar uma merecida surra!

Nada tão equivocado quanto essa concepção. A realidade é inteiramente diferente. Existia harmonia, afabilidade, bom relacionamento entre as categorias sociais, tudo baseado no seguinte princípio católico: deve haver hierarquia de classes, porém esta não pode ser levada tão longe, a ponto de que, quem estiver acima, negue a alta condição de criatura humana de quem estiver abaixo, menos ainda o nobre estado de batizado, membro do Corpo Místico de Cristo.

A bondade e a afabilidade do superior para com o inferior refletem o amor com que Deus Pai trata os homens

Fotos: P. Mikio / S. Hollmann / Arquivo revista
Santa Isabel da Hungria ajuda os pobres – Catedral de Bordeaux, França

Portanto, o superior deve tratar o inferior com bondade, afabilidade, protegê-lo, ajudá-lo nas suas necessidades, e mais ainda, se for possível. Ao inferior, por sua vez, cabe o dever de gratidão. Quando seu benfeitor está em apuros, ele retribui. Esse é o vínculo que reúne as diversas classes sociais numa unidade, ou seja, numa civilização verdadeiramente católica.

Esse pequeno conto ilustra uma realidade histórica e constitui um exemplo concreto de como a desigualdade harmônica e proporcionada das categorias sociais é um elemento para a união dos homens e não fonte de desunião.

Imagens da perfeição de Deus

São Tomás de Aquino diz formalmente que há nobres e plebeus, grandes e pequenos, ricos e pobres, mais inteligentes e menos, para benefício não só dos superiores, mas também dos inferiores. Porque o menor, recebendo auxílio do maior, vê neste uma imagem de Deus e pode assim amar mais o Criador. O limpador de chaminé percebeu na bondade do conde um reflexo da infinita bondade do Altíssimo. E sua dedicação ao conde tem algo de devotamento ao próprio Deus.

Pensemos ainda que Deus é infinito e Pai nosso. Somos finitos, e Ele quer que, entre nós, os maiores sejam de certa forma pais dos menores, e estes se sintam protegidos como filhos daqueles.

Vemos, então, como o conto de Lenôtre propugna — de um modo atraente, interessante, ilustrado, fácil de memorizar — um princípio doutrinário católico e profundo. E, a par dessa lição mais importante, nos sugere um método de apostolado. Com efeito, quando quisermos defender teses como essa das desigualdades harmônicas e proporcionadas entre as classes sociais, em vez de apresentarmos a pura teoria, muitas vezes fatigante, narremos um fato concreto interessante que se preste a uma interpretação, a qual será mais leve que a simples doutrina.

Como diziam os antigos, “as palavras persuadem, mas os exemplos arrastam”. Um episódio assim descrito, um testemunho do teor de relações existente nas sociedades hierárquicas, relembra a verdadeira doutrina católica e pode, com o auxílio da graça de Deus, facilitar o relacionamento dos homens de hoje.

1) G. Lenôtre (1857-1935), historiador francês que se especializou no tema da Revolução Francesa, sobre o qual escreveu diversas e laureadas obras. Membro da Academia Francesa de Letras.

2) Antiga habitação do porteiro (concierge, em francês), encarregado dos prisioneiros de um palácio real da Idade Média, situado em Paris. Transformada em cárcere na Revolução Francesa, a Conciergerie, atualmente dependência do Palácio de Justiça, compõe-se de três salas góticas — uma delas, a dos “Passos perdidos” (Pas perdus), considerada por Dr. Plinio uma das mais belas do mundo — e quatro torres.

Artigos populares