Por ocasião das refeições que Dr. Plinio tomava com alguns de seus conhecidos mais próximos, quando estes viam entrar Dª Lucilia, levantavam-se para cumprimentá-la. Instalada sempre no mesmo local, percorria com o olhar toda a sala, e assim que a conversa permitisse uma interrupção, voltava-se para Dr. Plinio:
— Meu filho, você já convidou seus amigos para jantar?
— Eles já jantaram, mamãe.
Para tranqüilizá-la ainda mais, alguns diziam:
— Não se preocupe, Dª Lucilia, nós já jantamos.
Sempre preocupada em fazer o bem
Mas, julgando que respondiam por mera amabilidade, ela não hesitava em tocar a sineta e dizer:
— Mirene, estes senhores que estão visitando Dr. Plinio vão jantar aqui. Você quer preparar a mesa?
Era necessário então que eles reafirmassem de modo ainda mais categórico que já haviam jantado. Ela, porém, não se deixando derrotar nessa pequena contenda de cortesia, após um instante fazia soar novamente a sineta:
— Mirene, estes senhores já jantaram; portanto, prepare um café para lhes servir.
Certa vez, dada a posição pouco cômoda em que Dr. Plinio se encontrava para almoçar, um dos amigos segurou a bandeja enquanto ele se servia dos alimentos. Em determinado momento Dª Lucilia percebeu a cena, inclinou-se um tanto para a frente e perguntou:
— Meu filho, você não se dá conta de que está cansando esse moço?
— Mas, Dª Lucilia, se a senhora pudesse não faria o mesmo? — disse a pessoa que auxiliava Dr. Plinio.
Não convencida pelo argumento, ela se dirigiu novamente a Dr. Plinio:
— Mas meu filho, não se faz isso com os outros.
A acolhida dada por Dª Lucilia era graduada conforme suas disposições em relação a cada pessoa. Não era igualitária: naturalmente a uns estimava mais, a outros, menos. Mas sempre, para com todos, era de uma abertura, de uma lhanura comparável, conforme o caso, ora à luz de um dia ensolarado, ora à luz mais discreta de uma noite de luar. Seu afeto era estável e tranqüilo, sendo muito constante em suas amizades.
Dr. Plinio recebe alta
Em meados de março de 1968, Dr. Plinio finalmente recebeu alta da longa convalescença pós-operatória. Ao sair de casa pela primeira vez, dirigiu-se à sede principal do seu movimento, a três quarteirões apenas de sua residência.
Este retorno, ansiosamente esperado por todos, deu a um discípulo de Dr. Plinio o ensejo de homenageá-lo, florindo especialmente as dependências da sede que ele percorreria. Um belo arranjo de orquídeas ornava a estampa de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano — a mesma que no hospital fora para Dr. Plinio ocasião de insigne graça —, trazida do “1º andar” para aquela comemoração. E sob outra imagem, de Nossa Senhora do Carmo, uma delicada corbeille. Assim, por toda a sede viam-se vasos floridos, dispostos com bom gosto, entre os quais um com rosas vermelhas entremeadas de chuvas-de-ouro, posto aos pés de um artístico e piedoso crucifixo.
A “Sede do Reino de Maria”, assim engalanada, foi intensamente fotografada por um jovem1, naquele 18 de março.
As últimas fotografias de Dona Lucilia
Ao final daquela tarde, restavam ainda na máquina dez chapas de um último filme. Assim, ao voltar Dr. Plinio para seu apartamento da Rua Alagoas, o fotógrafo perguntou-lhe se autorizava empregar o que sobrara daquela película para fotografar Dª Lucilia. A resposta imediata foi: “Proponha diretamente a ela”.
Eram 20h 30min. Dona Lucilia estava em seu momento de lazer, após o jantar, folheando um calendário propagandístico que reproduzia fotografias de belos edifícios medievais da Itália. Do lado de fora da sala, o jovem sentiu escrúpulo em prejudicar, por tempo mínimo que fosse, o prazer de Dª Lucilia em contemplar aqueles valiosos resquícios da Civilização Cristã. Seria o caso de interrompê-la? Tanto mais que só uma fita cinematográfica seria capaz de retratar toda a riqueza de fisionomias e de gestos de tão respeitável e encantadora dama.
Depois de alguns minutos de indecisão, resolveu entrar na sala de jantar e expor-lhe respeitosamente seu pedido. A reação de Dª Lucilia não foi menos encantadora do que a cena até ali presenciada. Sua resposta, ainda hoje lembrada com saudade, parecia provir de um elevado cimo de paz.
— Ora, mas o senhor, com tantas outras coisas para fotografar, vai gastar seu filme comigo?
— A senhora não faz idéia do prazer que me daria ter umas fotos da senhora.
— O senhor está com muita pressa? Poderia aguardar-me um instante?
— Pois não, com muito gosto.
Ao se retirar o jovem, Dª Lucilia chamou a empregada e lhe deu algumas instruções. Do lado de fora, ouvia-se:
— Mirene, você sabe? Está aqui um senhor muito gentil querendo tirar fotografias de mim. Eu lhe disse que utilizasse suas chapas em outras coisas, mas ele insiste, e deseja mesmo tirar essas fotografias. Vá então ao meu quarto e traga o material de toilette, porque eu queria que você me arrumasse um pouco os cabelos. Traga-me também aquele xale melhor, aquele que ganhei de Dª Rosée.
A empregada voltou pouco depois com o material.
— Você me arrume bem esta parte do cabelo, que parece não estar bem… Agora ponha o xale… Vá lá à frente e veja se as pontas dele estão bem…
Ao cabo de uns dez ou quinze minutos, disse à empregada:
— Agora, diga ao senhor que está lá fora que já estou pronta.
Ao reentrar na sala, o jovem ouviu as melodias daquela voz aveludada, sempre afável e acolhedora:
— Encontro-me à disposição do senhor. Quando o senhor quiser tirar as fotografias, o senhor me diga, por favor.
— Estou pronto também. Se a senhora permitir, começo a tirá-las em seguida.
— Está muito bem. O senhor quer fazer o favor de indicar quais as posições que devo tomar?
Formado na escola de fotografia segundo a qual não se indicam as poses, mas devem-se colher os instantâneos e depois selecionar os melhores, o jovem procurou imediatamente retroceder à época que dera nascimento a essa arte. Dona Lucilia era daqueles tempos em que para cada chapa se estudava uma pose, quase como para um quadro.
Lembra-se bem o jovem de haver tirado a primeira fotografia estando Dª Lucilia junto à mesa, sobre a qual tinha sido colocado o vaso de rosas vermelhas e chuvas-de-ouro, trazido para ela da sede visitada há pouco por Dr. Plinio.
Depois de bater algumas chapas na sala de jantar, uma das quais retrata Dª Lucilia com o calendário que estava folheando nas mãos, ocorreu ao jovem fotografá-la junto ao Sagrado Coração de Jesus, no salão de visitas, e lhe perguntou:
— Dona Lucilia, a senhora permitiria que a fotografasse no salão ao lado?
— Ah! sim, com todo o gosto. O senhor aguarde um instante que eu chamo a empregada para me conduzir até lá.
— Não, eu mesmo conduzo a cadeira da senhora.
— Ora essa, o senhor além de tomar o trabalho de tirar essas fotografias, quer fazer o esforço de me conduzir até lá? Não se preocupe, eu chamo a empregada.
— Não, não, isso me dará enorme prazer — disse o jovem, enquanto ia deslocando a cadeira de rodas.
— Ora essa! Muito obrigada! O senhor é muito gentil.
A flexibilidade com que ela aceitava e cumpria as indicações de cada pose deixou encantado o jovem fotógrafo, que declara ter-lhe feito algumas sugestões apenas para contentá-la. Segundo ele, qualquer atitude de Dª Lucilia era digna de um quadro a óleo.
Tendo acabado o filme, reconduziu Dª Lucilia à sala de jantar, ao mesmo tempo que lhe agradecia ter podido tirar aquelas fotografias.
— Não! — respondeu ela — quem deve agradecer sou eu. O senhor foi muito amável…
Pedidos de um filho estremecido
Essas fotografias, como já dissemos, foram tiradas a 18 de março de 1968. No dia 22 de abril Dª Lucilia deveria completar 92 anos. Apesar da avançada idade, ela dava a impressão de que poderia ainda viver por muito tempo, tanto mais sendo freqüente em sua família a longevidade. Ninguém imaginava que, dentro em pouco, ela partiria deste mundo rumo à eternidade.
Cerca de um mês depois de terem sido tiradas as fotografias, constatou-se o súbito agravamento de sua saúde. Tinha chegado a seus últimos dias.
“Eu me lembro — conta Dr. Plinio — que no dia 20 de abril, véspera da morte de mamãe, vi que ela estava muito pior do coração, e passei, literalmente, o dia inteiro no quarto dela. Se tinha de sair, voltava logo a seguir. Ela estava tão opressa pela falta de respiração que não podia conversar, e sentia a agonia, o mal-estar que a falta de respiração naturalmente traz consigo. Mas permanecia calma, tranqüila, serena”.
Continua Dr. Plinio:
“Pouco antes eu pedira a Nossa Senhora que tivesse a bondade maternal de fazer sobrevir o falecimento de mamãe num momento que fosse menos doloroso para ela e para mim. Parecia-me um pedido razoável, que Nossa Senhora tomaria a bem.
“Perguntei-me quais seriam as condições mais favoráveis para isso. Evidentemente, meu desejo era de que sua morte fosse tranqüila, serena, com aquela grandeza que no meio de tanta bondade não a abandonou em nenhum momento; e com todos os sinais de que ela morria inteiramente unida ao Sagrado Coração de Jesus, ao Coração Imaculado de Maria e à Santa Igreja Católica.
“Pedi também que durante a noite eu não fosse sobressaltado com a notícia de seu falecimento, mas que o desenlace ocorresse durante o dia, e assim eu não tivesse o terrível choque de ser acordado em plena madrugada com alguém a me dizer:
“— Dona Lucilia está morrendo…
“Seria horroroso. Eu gostaria de que isso me fosse poupado.
“Cheguei a expressar a Nossa Senhora mais um desejo: caso mamãe morra de manhã, eu gostaria de que fosse numa hora em que eu já tivesse lido o jornal, porque após sua morte eu não teria forças para isto, e poderia escapar-me alguma notícia importante para a Causa Católica.
“Foi exatamente desse modo que tudo se passou. Quando terminei a leitura do jornal, entrou o enfermeiro no meu quarto e me disse:
“— Dona Lucilia está morrendo, o senhor venha depressa.
“Meticulosamente, tudo o que pedi se realizou, exceto num ponto: eu gostaria de ter assistido aos últimos instantes de sua vida. Mas Nossa Senhora até nisso foi bondosa, poupando-me algo que me seria em extremo doloroso. De mamãe, a Providência pediu uma última prova: a ausência de seu filho naquele momento supremo de sua vida.”
“Até na hora extrema, sustentada pela confiança em Deus…”
“Ela conservou, no extremo da debilidade, a segurança da ordem do espírito, da inteligência, da boa consciência” — continua Dr. Plinio. “Ela foi caminhando para dentro das sombras da morte com toda a serenidade…
“Até seus derradeiros instantes, foi sustentada pela confiança, que lhe fez não perder a certeza de alcançar aquilo para o que sua vida inteira parecia estar voltada: almas cujos corações se abrissem para ela e se deixassem envolver totalmente por sua bondade.
“Um pouco dessa luz se levantou para mamãe já perto do fim, quando ela tomou contato com os tão numerosos jovens que iam à minha casa um tanto para me visitar, e mais ainda para vê-la e falar com ela, especialmente alguns que mais com ela conviveram. Foi também nessa ocasião que ela irradiou, mais do que em todo o seu passado, aquela doçura e bondade cristãs de que seu coração transbordava. Foi o ápice.
“Durante aqueles dias, eu tinha uma idéia confusa de que ela conversava com as pessoas que esperavam para falar comigo. Eu não imaginava, porém, ter sido tão grande o entendimento entre ela e eles. Eu a via entrar no escritório ou em meu quarto, com a fisionomia animada e alegre, e eu me perguntava: ‘Por que será?’ Só depois de ela falecer, ao falar com um ou outro, fiquei sabendo que conversavam com ela, interrogavam-na, tiravam fotografias…
“Então dei graças a Nossa Senhora, porque os últimos dias dela foram cercados de especial carinho, marco inicial de um relacionamento que continuou, depois, junto à sua sepultura.”
Glória, luz e alegria
Por certo, naquele 20 de abril de 1968, suave crepúsculo de uma longa e bela vida, Dª Lucilia lançou sobre seu extenso passado um olhar feito de doçura, calma, bondade, senso de observação e uma ponta de tristeza.
Ela enfrentou tudo. Viveu, sofreu, lutou contra as adversidades da vida, sem conservar ressentimentos, nem acidez, nem recriminação a fazer, mas sem transigir nem ceder. Era o fim e o ápice de uma serena ascensão em linha reta.
Quem a observasse em seu leito de morte, teria a impressão de que, num nível próprio à dona-de-casa que ela era, um pouco de glória celestial já iluminava sua fisionomia tão afável, tão amável e tão pacífica até o fim.
Era a tranqüilidade de quem se sentia protegida pela Providência, e sabia que somente lhe restava entregar a alma a Deus, junto ao Qual lhe estaria reservada esta tríplice ventura: glória, luz e alegria.
Assim, na manhã do 21 de abril, com os olhos bem abertos, dando-se inteira conta do solene momento que se aproximava, ela se ergueu um pouco, fez um grande sinal-da-cruz e, com inteira paz de alma e confiança na misericórdia divina, adormeceu no Senhor…
“Beati mortui qui in Domino moriuntur.” 2
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1 ) O próprio autor da obra transcrita nesta seção.
2 ) “Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor” (Ap 14, 13).