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A etiqueta de “carola” e o preconceito

Durante seus anos de diretor do “Legionário”, Dr. Plinio combateu quanto pôde uma série de idéias erradas, preconceitos, impressões, tendências psicológicas, existentes a respeito do perfil do bom católico, que desencorajavam muitas pessoas — especialmente os jovens — de praticarem a religião, por receio de serem ridicularizadas.

Só Deus saberá dizer no dia do Juízo Final quanto esses erros terão concorrido para afrouxar as almas no caminho do bem, macular nelas a pureza virginal da ortodoxia ou dos costumes, e finalmente atirá-las pela estrada larga da heresia, até a perdição eterna.

Faz parte desse conjunto de preconceitos todo o mundo de erros, de antipatias, de más vontades que se oculta atrás da palavra “carola”. Qual o católico autêntico que já não a terá ouvido como suprema injúria que lhe é atirada por algum adversário de nossa Fé? Qual o principiante da Ação Católica ou das associações auxiliares que não terá ouvido a advertência: “Cuidado, porque assim você se tornará um carola?”

Quanto e quanto rapaz se terá detido no caminho da perfeição, exclusivamente porque não deseja ser tido como carola? Que dom tem esse vocábulo, para inspirar em uns tanto desprezo, e em outros tanto terror? Seria talvez uma interessante página de sociologia analisar a função que exerce entre nós essa palavra, como bombarda de efeito seguro nas mãos de nossos adversários. Para que algum dia algum estudioso escreva essa página, aqui fica o despretensioso subsídio de certas observações diretas.

O assunto é complexo. O que vem a ser exatamente um “carola”? Quais os defeitos inerentes à “carolice”? Católico e “carola” são termos sinônimos? Qual a categoria de pessoas que gosta de criticar a “carolice”? Com que direito? Eis aí uma série de problemas que apresentam, de um lado um aspecto indiscutivelmente jocoso, mas do outro lado uma inegável importância concreta. Essa idéia errada sobre a “carolice” tem feito ao Brasil mal talvez maior do que todos os panfletos heréticos. E, assim, se bem que do ponto de vista doutrinário o valor do assunto seja nulo, não deixa ele de oferecer relevante interesse a quantos se dedicam aos problemas concretos do apostolado.

Perfis de “carolas” típicos…

Começo pelos conceitos mais elementares. No espírito público, não há uma noção abstrata do que seja a “carolice”. Há apenas certas figuras típicas de “carolas”, que são consideradas como realizadoras autênticas daquilo a que a piedade leva um homem e, portanto, como uma prova exuberante de que homem nenhum deve praticar o catolicismo, sob pena de se desfigurar e passar a ser por sua vez um “carola”. Descrevamos sumariamente esses tipos, como os considera a imaginação popular, e através disto chegaremos a encontrar, como resíduo comum de todas essas figuras de imaginação, um conceito mais ou menos preciso, que devemos examinar.

Injuriosamente, caluniosamente, contrariando toda a evidência dos fatos, o público entende que encarna bem o tipo do “carola”, por exemplo, um homem magro e esquálido, de longas pernas um tanto sinuosas, que mais são arrastadas pelo corpo do que servem para o carregar. Seu peito é curvo e estreito, e, ao longo dele, pendem dois braços longilíneos. “Pendem” é bem a palavra, pois que esses braços parecem servir apenas para estar pendurados ao corpo como a um cabide, e não para lutar, trabalhar ou agir. O pescoço é longo e projetado para a frente. No alto de tudo isto, uma cabeça vulgar, de cor desbotada, com olhos muito parados numa atitude que traduz ao mesmo tempo incompreensão e espanto. A voz é vagarosa e de pequeno volume, como são vagarosos e de pequeno volume os pensamentos. Os conceitos, os mais banais: apenas as idéias de que ninguém discorda, as reflexões que todo mundo já fez, as impressões que todo mundo já sentiu. Nas horas de perigo, é a personificação do medo. Na hora do trabalho é a encarnação da honestidade pachorrenta e ininteligente, absolutamente improdutiva e inteiramente estéril. Em suma, um infra-homem, que não se faz mau por falta de coragem, mas cuja piedade tolheu para ele todo o horizonte para uma formação espiritual viril, capaz de grandes feitos e grandes heroísmos. Por isto, basta vê-lo rezar. Tudo nele transuda lirismo. Sorri de modo perfeitamente incompreensivo. Faz gestos descomedidamente profundos. Fecha os olhos para se concentrar… e, ao cabo de tudo isto, sai idêntico ao que era antes.

Há, evidentemente, outros perfis de “carolas”. Há, por exemplo, o “carola” gordalhão, volumoso, de difícil locomoção, pachorrento, inerte, tolo, que se deixa ludibriar por qualquer pessoa, que se intimida diante de qualquer perigo, que ama acima de tudo a inércia, e que exatamente por isto não pratica o mal: pode trazer tantas complicações! Pelo contrário, a consciência tranqüila proporciona sonos tão leves e tão doces. O sossego antes de tudo! Nada de aventuras! O ideal da vida é mofar em um canto, em paz com os homens e na doce ilusão de que também se está em paz com Deus!

E assim os exemplos se poderiam multiplicar indefinidamente….

Triste caricatura do verdadeiro católico

É curioso observar que essa série de conceitos errados, longe de dominar apenas os arraiais anticatólicos, também se esgueirou em certos ambientes católicos, ou supostos tais. Veja-se, por exemplo, certos manuais de devoção que mostram como se ajuda a Missa, e olhe-se qual o físico com que ali se desenha o coroinha: muitas vezes, é um mocinho de idade indefinida, que tem da adolescência a mocidade sem ter o viço nem a graça, raquítico, tímido, vestido com uma “fatiota domingueira” que há um século ninguém usa, penteado como jamais ninguém se penteou, com um sorrisozinho alvar nos lábios, dando atestado exato de que o “carola” é aquilo mesmo. O que prova isso senão que certas almas existentes perderam completamente a noção da realidade, e à força de ouvirem dizer que o “carola” é isso ou é aquilo, acabaram por achar que é mesmo?

Grandes monumentos da Cristandade, como o Mont Saint-Michel (acima), foram erigidos por monges que souberam harmonizar humildade, arrojo e altivez

Certos trabalhos que uma ou outra vez se lêem sobre o moço católico não concorrem para desfazer esta idéia. […] Todas as idéias que se ocultam atrás do conceito de “carola” têm como substractum comum a convicção de que o católico deve ser dotado de uma vontade fraca, exímio na prática de todas as virtudes passivas e totalmente incapaz da prática das grandes virtudes ativas. Pondo de lado os erros que se poderiam embuçar nessa distinção entre as virtudes ativas e passivas, é preciso lembrar que o Catolicismo é, por excelência, a escola das almas grandes e fortes, capazes das audácias santas, das energias inquebrantáveis, dos empreendimentos ousados que a Fé sabe inspirar. Não há heroísmo verdadeiro e completo fora da Igreja. A santidade, que é o produto da verdadeira formação católica, outra coisa não é senão um grande heroísmo que empolga toda a alma e a torna capaz de gestos tão altos e tão grandes, que sem o auxílio de Deus o homem mais enérgico do mundo não seria suficientemente forte para os realizar.

Assim, pois, devemos trabalhar intensamente para que esse preconceito se dissipe de modo completo. O “carola”— e a realidade manda que se confesse que há alguns tipos correspondentes à triste descrição que foi feita — não é o católico autêntico, mas a caricatura do verdadeiro católico. A humildade não é pieguice, o amor do próximo não é lirismo, a boa-fé não é a estupidez. Pelo contrário, essas virtudes, em lugar de amesquinhar o homem, o elevam e o engrandecem.

Um pequeno fato pode ilustrar tudo isto. Certo sultão muçulmano preso na Europa durante a Idade Média, visitou as catedrais famosas que então se construíam, e teve esta exclamação: “Não posso compreender que as almas tão humildes dos monges que constroem esses edifícios possam entretanto levantar monumentos tão altivos”. Nessa humildade com nossa altivez está o segredo do perfeito equilíbrio. A grandeza de alma, o arrojo, o espírito de combatividade que elimina a humildade, é falso. Mas também é falsa, e falsíssima, a humildade que diminua o arrojo, o espírito de combatividade e a altivez.

(Excerto de artigo do “Legionário”, nº 462, de 20/7/41. Título e subtítulos nossos.)

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