Certa feita, durante um retiro espiritual na casa dos padres jesuítas em Itaici (SP), Dr. Plinio escreveu à sua mãe para contar que tudo corria bem — ela fazia questão de sempre estar informada do que se passava com ele.
Na resposta, após dar notícia dos assuntos domésticos, Dª Lucilia terminava comentando: “As saudades são tantas, que de tanto pensar em Itaici, tenho a impressão de conhecê-lo!”
Hoje, através de uma colorida descrição de Dr. Plinio, o leitor poderá conhecer algo sobre aquele local, o ambiente das redondezas, as peripécias de uma viagem até ali, e a personalidade do sacerdote que pregou o retiro anual para os redatores do “Legionário”, no já longínquo ano de 1944.
Como de costume, a Ação Católica de São Paulo promoveu, este ano, a realização de Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, na Fazenda Taipas, que os RR. PP. Jesuítas possuem em Itaici. É um velho hábito dos redatores do Legionário associarem-se a esses piedosos Exercícios, que vão do sábado de Ramos até o Sábado de Aleluia. Assim, é em minha pequena cela de Itaici que cumpro o dever, hoje realmente penoso, de escrever um artigo para os leitores do LEGIONÁRIO.
Penoso, sim, porque os Exercícios Espirituais devem ser uma concentração. Um artigo é precisamente o contrário disto, é uma dispersão. Devo, entretanto, absolutamente escrevê-lo. Com efeito, estamos quase todos de retiro, e se o diretor não der o exemplo, o LEGIONÁRIO não sairá. É preciso, pois, que me desobrigue desta tarefa. De que modo? “En laissant trotter la machine”¹, diria Mme. de Sevigné, se no tempo dela já se usasse, em lugar das elegantes penas que seus nobres dedos de marquesa deixavam “trotter” sobre o papel, as horrendas máquinas de escrever modernas. Vou “laisser trotter la machine”. E como o que direi não tem paralelo e nem mesmo sombra de paralelo com o que escreveria a ilustre marquesa, terei ao menos esse minguado pretexto a apresentar: a diferença está em que ela escrevia ao correr da pena, eu, ao correr da máquina.
O que resultará desse processo de redigir? Uma miscelânea, provavelmente. De qualquer maneira, comecemos.
*
A Fazenda de Taipas se encontra em Itaici, pequena localidade situada entre Jundiaí e Indaiatuba.
Não chegamos sem alguma aventura em Itaici. Jundiaí apresenta um vivo contraste: saímos do excelente vagão de aço da Paulista² para nos aboletarmos em um vagãozinho arcaico da Ituana³. E, como era sábado, sobravam na Ituana os passageiros, as bagagens, as pontas de cigarros atiradas pelo chão, e todas as coisas que podem tornar incômoda uma viagem.
E a aventura veio. Um amigo deixou no trem da Paulista a mala cheia de preciosos manuscritos. Grande comoção. Veio ou não veio a mala? Quando o trem já estava em movimento, e depois de prolongadas indagações, chegou-se ao resultado: não veio. Longos debates sobre o modo de reaver a preciosa arca; discussões geográficas, discussões táticas, horários, entroncamentos, telegramas, telefonemas, recurso a amigos prestativos que residiam neste ou naquele ponto do percurso.
Finalmente chegou-se a Itaici, onde o pobre amigo esperou longamente um trem que o conduziu a Campinas, onde só no dia seguinte recuperou a mala. Todos estavam esfalfados, porque muitos haviam viajado mal acomodados, outros estavam transidos de fome, todos ansiosos por chegar. Mas apenas desembarcados, a metamorfose foi completa.
Começamos a tomar contato com os encantos de Itaici. O ar sutil, saturado de aromas vegetais, fresquíssimo, nos invadia os pulmões. A tranqüilidade bucólica pairava sobre o ambiente, tão serena, tão ampla, tão geral, que não a perturbavam os apitos, os chiados, os ruídos das caranguejolas da Ituana. Todo este aparato ferroviário pode ter parecido terrível a nossos bisavós. Mas como já conhecemos muita coisa mais ruidosa em nossos dias, achamos ingênua essa barulheira de ferro velho. Até isto tem sua placidez, para quem vem dessa Babel de ruídos que é São Paulo.
E, enquanto essas primeiras impressões se definiam e se fixavam, os encarregados da Fazenda Taipas tomavam as malas, os primeiros retirantes subiam a pé a encosta que conduz à sede, e um trole providencial, aliás muito meu conhecido, me levou para a sede, com o Pe. Mariaux, por uma longa volta pitoresca, sob o céu estrelado.
O apetite se anunciava categórico. Isto me fez lembrar de passagem que Itaici fora, outrora, um ponto de entroncamento famoso pela munificência de um Chicão, que aqui vendia quitutes célebres aos passageiros. Mas do Chicão [nem sinal mais]. Aliás, não tive tempo de pensar muito nisto. O ambiente [aprazível] e a conversa sempre [atraente] do Pe. Mariaux, tudo me ocupou agradavelmente até que, a uma volta da estrada, eu divisasse, toda iluminada, a sede da fazenda.
Taipas pertenceu por certo a algum antigo tronco de boa genealogia paulistana. A sede solarenga e espaçosa deve datar do Império, se não remontar aos tempos coloniais. Mais recentemente, foi anexada à sede uma ala com quartos para os retirantes. Um dos salões foi adaptado, e é hoje uma vasta capela, com entrada lateral independente. Na fachada do edifício, há um terração com adornos de madeira trabalhada, em estilo do início deste século. Infelizmente, caiu um pitoresco torreão que havia no lado direito. Era o refúgio dos retirantes mais pensativos, ou inclinados à solidão. No alto dele havia um sino que anunciava os ofícios a toda a redondeza.
Tirante essa pequena mudança, Itaici está precisamente como nos anos anteriores. Foi apenas pintada de novo. A sala de jantar continua igualmente simpática, vetusta e patriarcal. Na capela, o mesmo altar-mor em estilo de arco de triunfo romano, com seu elegante tabernáculo de madeira trabalhada. No pomar, a mesma esplêndida alameda de mangueiras, que conduz a um algodoal. E, sobretudo, a vista que se descortina da fachada graças a Deus está inteiramente inalterada. A harmonia do esplêndido panorama não foi desfigurada por nenhuma fábrica, nenhuma ponte boçal em concreto armado, nada, enfim, que nos chame à realidade insípida da vida de todos os dias.
Ao longe, Itaici, com seu casario escasso e esparramado, suas vielas, sua ferrovia ainda menor à distância, parece um brinquedinho e anima toda a paisagem.
A lua, infelizmente, não foi visível naquela primeira noite. Entretanto, ela costuma ser magnífica em Itaici, quando aparece sobre os montes.
No meio de mais essas impressões, instalamo-nos, e jantamos. A refeição é presidida pelo Pe. Mariaux. Está também conosco o Pe. Viotti. A conversa corre animada. É a última que se terá, ao menos legitimamente, nesta semana.
Instintivamente, começo a observar o Pe. Mariaux, campo de observações para mim já antigo e sempre novo. Louro, muito alto, hercúleo, exuberante de saúde, gestos largos, mãos de feld-marechal, ele causa sempre uma primeira impressão de robustez e determinação, que aos poucos se vai completando com elementos psicológicos novos. Não conheci personalidade mais rica em aspectos contrastantes e todavia harmônicos. Por exemplo, ele é a um tempo distraído e atento. Com muita facilidade, imerge em uma reflexão própria, inteiramente à margem da conversa geral. Com igual facilidade, interrompe o fio de suas elucubrações para fazer uma intervenção inesperada na conversa, interessando-se pelo assunto como se não tivesse pensado todo tempo senão nisto. De repente, desinteressa-se de novo e continua no rumo de suas preocupações, de onde não há o que o arranque se ele quer fechar-se. Quando muito, obtém-se dele alguma cortesia estritamente protocolar e formal, que no fundo exprime seu desejo tenaz de continuar a refletir. Mas há uma coisa que o tira sempre dessas reflexões: é o debate prático, a providência de momento, a necessidade de dirigir alguma coisa ou de prestar serviço a alguém.
A saúde física do Pe. Mariaux não é senão um reflexo, e reflexo incompleto, de sua saúde mental. Poucas vezes se contempla um funcionamento tão perfeito das potências da alma. Quem o vê no comando acha-o tão vigoroso que pensa que, por certo, lhe faltará às vezes sutileza. É preciso vê-lo então na discussão. É com uma espécie de prazer de especialista que ele trata dos mais árduos problemas teológicos, comprazendo-se em suas sutilezas como um artista que gosta de lidar com cristais finíssimos, sem se cortar.
Entretanto, não se pense que esse dialeta sutil e ágil é um mero especulativo. Suas observações sociais e políticas são finíssimas, suas tendências artísticas muito delicadas. Ele está “chez soi” em cada uma dessas atividades, e as desempenha de tal modo que parece dar só para ela. Por vezes, vou ter com ele em sua pequena sala de trabalho na Rua Bela Cintra. Tratamos de algum assunto dos mais intricados. Inesperadamente, bate à porta algum menino do colégio. É um brasileirinho dos autênticos, franzino, trigueiro, cheio de sutilezas, que vai falar com seu louro e hercúleo diretor. O contato entre os dois é o que há de mais interessante. Dir-se-ia que esse homem setentrional nada compreenderá das mil e mil dobras psicológicas do temperamento infantil destes trópicos. Puro engano. O menino já entra com a fisionomia a transbordar confiança. O Pe. Mariaux o olha com uma solicitude à qual nenhum pormenor escapa. Sabe o nome de todos, nomes lusos, sírios, italianos, que sei eu! Lembra-se muito bem do tema de cada um: este precisa restituir uma tesoura, aquele dar notícias de um trabalho, aquele outro explicar por que tem faltado. Parece que têm cada um uma ficha na cabeça do Pe. Mariaux. O assunto se desenvolve com uma naturalidade fantástica.
Quando o menino sai da sala, o caso, simplíssimo ou complexíssimo, está resolvido. E o tertius que assiste à cena fica a pensar onde ele terá encontrado recursos psicológicos para conseguir isto tão bem! Mas, para o Pe. Mariaux, tudo já está posto à margem, e ele já voltou inteiramente para a questão de que tratávamos. E aí ele, ao pé da letra, bombardeia o interlocutor com uma tal fecundidade de argumentos, de explicações, de objeções, que se tem a impressão de que ele passou o dia inteiro descansando, e só agora começou a trabalhar. Entretanto, cenas destas, entremeadas com freqüentes tiradas de humor, podem dar-se até muito tarde da noite!
E, no meio de tudo isto, umas lacunas curiosas. Por exemplo, andando em um lugar onde várias vezes já esteve, perde de repente o caminho. Outras vezes, esquece-se de uma coisa — que no fundo nunca o interessou, já se vê — como se nunca na vida lhe houvesse sido exposta. E, quando finalmente se inteira da questão, são aquelas exclamações, que variam segundo o assunto, mas são mais ou menos as mesmas para cada assunto: “Ah, sei, aquele homem”, ou então “uno (sic) escândalo”, ou finalmente “um momento, senhor, um momento” […]. Tudo depende das circunstâncias, apreciadas aliás sempre com um rigor de princípios admirável.
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Ontem, o Pe. Mariaux bateu à minha porta. Perguntou-me se faltava alguma coisa. Sabendo-o exausto, arranjei um subterfúgio para lhe dizer, sem mentira, que não faltava nada. No fundo, estava achando suas práticas substanciosas — é óbvio, tratando-se dele — mas bem curtas. Mas nada ousei dizer, receando abusar de suas forças. Ele é uma dessas pessoas que habituam os amigos a pensar que não são feitas de carne e osso. Afinal, ele insistiu e eu lhe dei minha impressão clara. Ele me demonstrou, então, que tem falado de cada vez uma hora ou mais. Como explicar isto? Eloqüência? Não no sentido rasteiro da palavra. Nenhum floreio, nenhum assomo de poesia tola. Mas uma exposição animadíssima, muito fluente e em um português impecável gramaticalmente. Substância densa. As exposições são em pleno ar livre. Enfim, tudo se passa de tal modo que, se não fosse o relógio, ter-se-ia a idéia de que o Pe. Mariaux desta vez está com preguiça de falar.
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Está na hora. As horas, com o Pe. Mariaux, são coisa rigorosa. É preciso estar pronto, e não haverá tempo para escrever mais. Aqui ficam, em pleno retiro, estas impressões incompletas. Elas refletem o entusiasmo de todos os retirantes pelo grande pregador, e seu reconhecimento ao Revmo. Reitor do Colégio São Luís, Pe. Bannwarth, pela gentil e excelente hospitalidade.
Na tranqüilidade bucólica, serena e ampla de Itaici, encontram os retirantes a placidez necessária para colherem os melhores frutos de suas meditações. Ao lado, a fachada da bela igreja da fazenda Taipas; e abaixo, uma vista do edifício principal
Ser-se jornalista e retirante é impossível. Sai daí um retiro mutilado por um artigo, um artigo inesperadamente cortado — e muito a tempo, que ia ficando longo — pelo retiro. Mas o LEGIONÁRIO se escreve para os leitores católicos, que compreendem com simpatia defeitos como estes.
(Extraído do “Legionário”, 9 de abril de 1944)
1) “Deixando trotar a máquina”.
2) Cia. Paulista de Estradas de Ferro.
3) Empresa ferroviária.