Em nosso número de outubro foi reproduzida a primeira parte de uma conferência na qual, falando de improviso para um auditório muito jovem, Dr. Plinio comentava aspectos humanos da Igreja no tempo das catacumbas. Eis a continuação do tema.

Tanto quanto tenho podido observar, há duas formas diversas de inteligência no que diz respeito às questões sobrenaturais, eternas, e ao assunto religioso.

A primeira forma de inteligência é aquela que, não tendo uma grande capacidade de raciocínio, possui “antenas” pelas quais alcança uma percepção dos imponderáveis que franqueiam ao indivíduo os aspectos verdadeiros da religião, e que, por assim dizer — a expressão é exagerada —, captam a fé.

Outra é das pessoas que, pelo contrário, têm o raciocínio muito desenvolvido, metódico, sistemático, e não possuem essas “antenas”. Apreendem a fé muito menos nos seus imponderáveis do que nos seus lados raciocinados.

O primeiro feitio é o asiático, e tudo quanto diz respeito às coisas da fé, na Ásia, tem muito da tal percepção dos imponderáveis. O outro feitio é o europeu, que deu tudo quanto a Europa produziu para a história da Igreja. Entre outras coisas, a América do Sul e a América do Norte.

Dir-se-ia, então, que o período pré-europeu foi de “antena” (para usar uma expressão inadequada, mas que ajuda a resumir o assunto). E o outro período, o europeu, foi de cultura clássica, prolongando-se depois no período medieval. Há um terceiro período o qual, levando em consideração os povos ibero-americanos, pareceria ser sobretudo de “antena”, mas não é assim.

Embora seja um pouco tedioso, vamos explicitar um ponto a respeito de “antena”, para que se entenda bem a que me refiro.

A seta e a bobina

Há feitios de espírito os quais, postos diante de um determinado tema, num primeiro relance o percorrem inteiro, e o fazem de modo tão rápido que ficam com a sensação de terem pego diretamente o fim. E de tê-lo apanhado por uma espécie de “antena” misteriosa. De tal maneira voaram sobre as etapas intermediárias que nem perceberam como apreenderam tudo num só relance. Isso é próprio aos asiáticos, como também a toda a América ibérica, mas talvez seja um pouco mais acentuadamente próprio ao brasileiro. Pegamos o assunto de tal forma que temos a impressão de que o “radarizamos”.

No seu início, a Igreja se difundiu no Oriente Próximo, onde as tradições católicas são ainda hoje bastante arraigadas (ruínas de igreja na região de Tiro, Líbano; acima, maronitas celebram a canonização de São Charbel Makhlouf)

Fiz comigo mesmo uma série de experiências a respeito daquilo que eu tinha captado assim de um momento para o outro, e me detive na análise de como isto tinha se dado. E cheguei a perceber que, levado pela facilidade de desdobrar a bobina do raciocínio, eu havia pensado diversas coisas tão rapidamente que minha atenção não chegara a fixar os pontos percorridos por meu pensamento para atingir a conclusão. Porém, notei que, se fosse refazer o caminho devagar, perceberia que havia montado um raciocínio, em geral certeiro (embora sujeito aos erros que todos os homens cometem). Mas um raciocínio que de tal maneira fica esquecido, para fixar só a conclusão, que às vezes nem temos como demonstrá-lo. Ocorreu tão depressa que não sabemos em que argumento nos baseamos. Por outro lado, é muito difícil também fazer a crítica do próprio raciocínio: “Será que raciocinei bem? Como concluí tal coisa? Também não sei…”.

É preciso, então, tomar o hábito de pegar aquela mesma bobina — se quiserem, aquele mesmo filme — e passar em câmara lenta até recompor todo o raciocínio. Aí ficamos com um produto verdadeiramente excelente. É algo que possui, ao mesmo tempo, a rapidez da seta, mas a segurança da marcha do leão. Para isto, entretanto, é preciso que nós, brasileiros, tenhamos o hábito de refazer lentamente o nosso raciocínio.

Alguns olhares voltados para o céu; outros, para a terra

Assim mesmo, há algo que nos distingue dos asiáticos. Refiro-me de modo especial ao Oriente Próximo, mas sou propenso a admitir que se possa dizer o mesmo da Ásia inteira.

Percebendo com facilidade o transitório das coisas terrenas, os asiáticos têm suas “antenas” voltadas para o que é eterno

Os asiáticos têm uma imensa facilidade de espírito para perceber a vacuidade das coisas terrenas e como tudo nesta vida é passageiro, transitório, discutível, de pouco valor. Daí possuírem uma espécie de “antenização” extraordinária do que é eterno, do que está para além desta vida, etc., perspectiva para a qual eles têm como que um olhar feito, um ouvido pronto, uma atenção fácil.

Nós, brasileiros, pelo contrário, temos pouco esse senso do extraterreno. Para lá não vão nossas “antenas”. Somos senhores de um senso muito desenvolvido daquilo que é terreno e perdemos facilmente o equilíbrio diante disso. Sobrevalorizamos o que é deste mundo e não demonstramos igual interesse pelo sobrenatural. Mas temos uma prodigiosa facilidade para discernir o feitio psicológico dos outros, e tudo quanto seja fenômeno de alma. Assim, poderíamos dizer que os orientais têm “antena” voltada para o lado teológico, enquanto o brasileiro tem “antena” voltada para o lado psicológico.

Se eu dissesse o que acabo de declarar diante de um auditório que não fosse sul-americano, haveria menos interesse, menos vivacidade de alma em comentar o assunto e menos intercomunicação. Por outro lado, se o fizesse para europeus pertencentes a certos povos, a reação seria: “A tese é interessante. Vou anotá-la, preciso pensar”.

Vários dentre os que agora me ouvem tiveram uma reação diferente: “É isto mesmo, Dr. Plinio tem razão”, como quem sentia que minhas palavras conferiam com aquilo que já haviam percebido. Não o sabiam explicar, por serem ainda muito jovens. Contudo, já tinham pensado desse modo. Pelo que, a reação ao me ouvir não é: “Eu vou pensar sobre isto”, mas sim: “Ah, é isto mesmo!” — exclamação com a qual involuntariamente reconhecem que já pensaram.

Essa é uma rapidez de flecha, mas uma flecha que voa em horizontal e não em perpendicular, do espírito sul-americano. Ao passo que no espírito asiático a flecha voa para o alto e procura o sol. Para nós, ela procura dar a volta pela terra.

É a diferença que devemos considerar quando tratamos desse tema.

Deus criou o primeiro casal tendo em vista que os homens se multiplicassem e povoassem o planeta. E criou a natureza humana diversificável, de maneira que surgissem várias raças e povos, que os povos se fragmentassem em nações, as nações se fragmentassem em regiões, as regiões em cidades e municípios, e as cidades e municípios se fragmentassem em famílias, e ainda no seio da família se subdividissem em indivíduos. Há, portanto, uma variedade enorme dentro da unidade do gênero humano.

Deus quis assim que o concerto unânime e geral de todos os povos O glorificassem. E devemos imaginar isto: quando, pela augusta intercessão de Nossa Senhora, no Céu os tronos dos anjos decaídos estiverem preenchidos pelos homens, cada um guardará suas características. Podemos, pois, imaginar um árabe, um armênio, um caldeu, um persa cantando a Deus dentro da visão particular do oriental; como podemos imaginar um brasileiro vendo Deus face a face e adorando-O, ao mesmo tempo que faz a psicologia do Céu.

As imagens orientais representam os santos em atitudes hieráticas, de quem está todo voltado para seu próprio interior

São modalidades que concorrem todas para a glória de Deus. Assim devemos ver o lumen Ecclesiae, a luz da Igreja, como que se realizando nas várias épocas do passado e encontrando ali todo o seu esplendor, o mesmo ocorrendo nas diversas fases sucessivas.

Para fazer uma história completa, deveríamos propriamente organizá-la da seguinte maneira: primeiro, os povos asiáticos do Oriente Próximo, onde a Igreja pregou no seu início; mais tarde, China e Japão; e mais tarde ainda, o Vietnã; depois do Oriente Próximo, veio a Europa, já com uma diferenciação da qual trataremos em breve.

No Oriente, hieratismo e atração do mistério

No Oriente Próximo encontramos um emocionante reflexo dessa tendência para “antenizar” o mais alto, nos ritos orientais da Igreja Católica. Estes se conservam muito bem — é o caso dos melquitas —, ainda como se realizavam no tempo do Império Romano, quando aproveitavam praxes e costumes da época dos Apóstolos. De maneira que ali se pega a Igreja quase na sua raiz.

E no rito melquita, como nas outras liturgias orientais, vemos belezas próprias da fisionomia da Igreja daquela região. Por exemplo, na Igreja Latina, as imagens, sobretudo as de hoje, parecem estar olhando para quem reza e atendendo a oração do fiel, ou conversando com Deus. Todas, sem exceção, estão sempre se comunicando com alguém.

São Charbel Makhlouf

Para captarmos o fio da piedade e da atitude religiosa da alma no Oriente, temos um exemplo nos ícones do muro que, na catedral Melquita de São Paulo, separa o presbitério da parte reservada aos fiéis. Ali vêem-se doze apóstolos diante de cada qual arde uma lâmpada. São imagens postas numa atitude hierática, de quem abstrai o que está embaixo. Não estão falando a um Deus que se manifesta fora e acima deles, mas estão rezando a um Deus que está dentro deles. Estão parados e olhando para o interior de suas almas, sem movimento nem comunicação. Apenas deixam perceber que Deus dentro deles está operando algo de extraordinário, que os enche de um mistério no qual se comprazem.

É propriamente o hieratismo oriental, que exprime a tal “antena” para o fenômeno interno, místico, no qual Deus fala à alma.

Passemos dos Apóstolos para São Charbel Makhlouf, que viveu no século XIX e numa parte deste século. Se o analisarmos, veremos aquele mesmo tipo de fisionomia. Impassível, hierático, prestando atenção, não no mundo fora, mas num mundo que está dentro dele e que, através dele, eleva-se. Uma fisionomia inteiramente estática, porque nada do exterior o interessa, e um olhar que parece fixo num ponto sem fim lá fora, porque de fato está fixo num ponto sem fim lá dentro. E é a vida da graça no íntimo da alma dele.

Isto, que tem sua própria grandeza e beleza, é o oposto de muitas imagens do rito latino, que nos mostram Nosso Senhor aparecendo para a pessoa. Ambos os modos de ser são perfeitamente legítimos. Não estou fazendo crítica de um deles, mas estabelecendo as diferenças.

No período oriental, um modo próprio de a Igreja ser santa

O que há nesse período oriental da Igreja?

Antes de tudo, o mistério, com toda a sua atração. É algo que aos ocidentais custa compreender. Nestes, o mistério desperta logo a vontade de desvendar. Ora, não se trata de desvendá-lo. Às vezes penetra-se no mistério não o desvendando. Não se trata, portanto, de sempre fazer uma operação cirúrgica no mistério e ver o que há nele. Pelo contrário, entra-se nas sutilezas dele como dentro de uma penumbra, familiarizando-se com ela e o claro-obscuro, e percebendo algo que uma pura análise seria até insuficiente para discernir perfeitamente.

Então, vemos aí o fascínio do mistério, antes de tudo. Dentro desse fascínio, a majestade da distância das coisas externas e das coisas materiais. Todas essas imagens têm uma certa majestade. Nesse mistério e nessa majestade, um certo sentido de eternidade, expresso pela imobilidade das figuras.

Temos aí um modo de a Igreja ser santa, que se manifesta logo nas suas origens, quando Ela irrompe dentro da história, apresentando-se a povos pagãos com idéias inteiramente diferentes daquelas com as quais eles estavam habituados, falando da eternidade, da alma e do comércio desta com Deus. O glorioso coro dos Apóstolos abre a marcha dos santos com essa fisionomia.

Uma santa revolução nas crenças do paganismo

Isto compreendido, devemos agora estabelecer uma distinção, sem a qual não atingiremos o elemento final do que venho expondo.

Idólatras, os pagãos se maravilhavam com os homens que lhes traziam a fé no verdadeiro Deus. Abaixo, apóstolos e profetas esculpidos em marfim; acima, um ídolo normando

Nesses povos antigos, as religiões variavam quase ao infinito. Praticamente cada região possuía uma crença própria, não existindo a idéia de que uma religião deveria ser universal. Para nós, nada de mais natural: uma só humanidade, uma só fé. Eles, porém, assim não pensavam. Haviam recebido de seus maiores — Adão e Eva e os primeiros patriarcas — ensinamentos sobre Deus Nosso Senhor, pessoal, único e criador de todas as coisas, mas foram deformando essas verdades ao longo dos tempos, inventando fábulas, e acabaram por cair no politeísmo.

Não devemos imaginar que, para os politeístas, cada deus fosse uma miniatura do Deus verdadeiro. Por exemplo, Baal, dos fenícios, não era um Pai Eterno em ponto pequeno. Eles imaginavam que era um ser de carne e osso, existindo numa outra ordem de coisas, no alto de uma montanha, num fundo de mar ou na dobra de uma gruta. Se quiserem, um homem mais poderoso e de uma natureza mais rica do que a nossa. Alguém que não morria e nos governava a nós, os anões do gênero. Os pagãos nem sabiam ao certo por que acreditavam nesses deuses. Sua crença estava baseada no fato de que o antepassado ouvira falar daquele ídolo por outro antepassado, sem se preocuparem se haviam lorotas misturadas pelo meio dessa história. Eles não conheciam o conceito de puro espírito no sentido ensinado pelo Cristianismo.

Pode-se imaginar a revolução nos conceitos, ao aparecerem homens com aquelas atitudes hieráticas, dando testemunho do que vêem e sentem dentro de si, dizendo: “Há uma alma, elemento preponderante do ser humano, imaterial, mas por isso mais real do que a matéria. Essa alma nunca morrerá. Ela foi criada por um Deus, Ele mesmo imaterial, eterno, invisível”. Depois de terem exaltado essa idéia, acrescentavam: “Mas esse Deus se encarnou, se fez homem e habitou entre nós”. E contam a história de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora, etc.

Era uma revolução completa para as mentes desses pagãos, que certamente se maravilharam ao ver a entrada do desfile desses homens cheios de mistério, de introspecção sacral, templos do Espírito Santo, e que narravam histórias as quais, muitas vezes, eles próprios tinham presenciado.

No próximo número transcreveremos a última parte desta conferência, na qual Dr. Plinio trata do modo europeu de raciocinar inserido na Igreja dos primeiros tempos.