Diego Delso (CC3.0)

A Revolução tendenciosa move-se no subconsciente, lamacenta, na confusão dos defeitos que se chocam e se amalgamam, se fazem e se desfazem em novelos de desordens túmidos e malcheirosos. No fundo é a ação do demônio, que se agita e desprende maus odores os quais infestam todo o ambiente. Dr. Plinio se voltava contra isso com indignação e horror. Seu senso católico clamava por ideias definidas, argumentações nítidas, resoluções fortes, rumos certos, limpeza, pureza, retidão.

Arquivo Revista

Como é a combatividade? De que modo ela se porta em face do “pacinismo”1, o qual avança como uma cobra que conspira, urde, trama? Aliás, não caminha propriamente como uma serpente, mas é uma coisa diversa.

Águas de Araxá

Quando menino, fui a uma estação de águas, que depois possivelmente se modificou muito nos seus aspectos, a qual começava apenas a se tornar conhecida no Brasil, e hoje é conhecidíssima no País inteiro e até em determinados lugares do exterior: Araxá, no Estado de Minas Gerais. Eu acompanhava meus pais porque parece que as águas de lá eram muito benfazejas, ou ao menos se esperava que o fossem para o estado de saúde de minha mãe.

A cidade de Araxá ficava um tanto distante das águas. Todos os dias era necessário tomar um automóvel para chegar até lá. Tudo isso era para nós um passeio – para minha mãe um curativo –, e ia-se até o ponto das águas que se apresentavam em pleno campo.

Havia ali duas ou três pequenas construções necessárias para o serviço das águas, mas que eram, se me lembro bem, umas meras barraquinhas. Por todos os lados existia uma terra grossa, úmida, feia, com borbulhas que saiam de profundidades, causadas por calores subterrâneos, e explodiam daqui, de lá e de acolá. Aquela massa sulfúrica se mexia nas várias direções, mas com movimentos desordenados provenientes do fundo, que ora faziam saltar um tanto de lama, ora outro tanto. Aqueles flocos de lama se chocavam, efetuavam um remelexo desagradável e incongruente, extravasavam um pouquinho as margens e voltavam. E daí se depreendia um cheiro sulfúrico dos mais desagradáveis.

Por causa das propriedades terapêuticas muito apreciadas e parece que bastante apreciáveis dessas águas, era preciso que uma pessoa perita em remexer aquelas coisas soubesse tomar algo como um copo na ponta de um pau, estendê-lo até certo local e, apertando um pouquinho as massas de lama, arranjar um jeito de entrar no copo a água e não a lama, e fornecê-la ao pobre doente o qual a bebia e parece que se sentia bem.

Olhei para aquilo e tive a seguinte impressão: “Isto parece com algo que de futuro conhecerei. Já vi coisas destas – bem entendido, não era aquela água, mas algo que na ordem intelectiva, espiritual, mental parecia com aquilo –, porém não sei com o que posso compará-las.”

E concluí: “Isto vai ficar em meu espírito, tanto mais que noto aqui, lá, acolá, tufos de fumaça escura parecida com poluição e que se desprende em vários lugares. São sinais de desastres subterrâneos que causam o entrechoque de massas líquidas das quais saem aquelas fumaradas feias.”

Flávio Lourenço
Beau Dieu – Catedral de Notre-Dame, Amiens, França

Tudo não era senão feiura e horror, exceto as qualidades terapêuticas misteriosas daquela água.

Ódio inspirado pela Fé e a razão

Mais tarde, percebi as grandes multidões humanas trabalhadas pela Revolução, mas não como quem move soldadinhos de chumbo – avança um, avança outro –, porque o soldadinho de chumbo tem sua individualidade, distingue-se um do outro, possui uma forma definida, é coeso, avança. Não era, portanto, como aquilo que eu posteriormente chamaria “Revolução B”, que se desenvolve nos fatos, nem como a “Revolução A sofística”, quer dizer, com ideias precisas, definidas, mas sim como o que eu denominaria “Revolução A tendencial”. Ou seja, uma Revolução que se move no subconsciente dos homens, lamacenta, pardacenta, na confusão dos defeitos que se chocam e se amalgamam, se fazem e se desfazem em novelos de desordens túmidos e malcheirosos. É no fundo a ação do demônio que move, move, move, move e desprende maus odores os quais infestam todo o ambiente.

Assim eu vejo o “pacinismo”, nas suas grandes possibilidades de vitória hoje em dia. E é para o mísero estado no qual a Revolução deixou multidões humanas inteiras, que me volto ao mesmo tempo com indignação e horror.

Por que com horror e indignação? Porque há algo que é o meu próprio senso do ser, o senso da minha condição de homem e, sobretudo, de católico que clama por ideias definidas, argumentações nítidas, resoluções feitas e fortes, rumos certos, limpeza, pureza, retidão e que se sente horrorizado com aquele desgoverno, aquela confusão, aquela moleza que dá em tudo e não dá em nada; e principalmente horrorizado com aquela força subterrânea misteriosa que, mareando aquela sujeira toda, tem a intenção de ir corroendo a crosta terrestre até que o mundo não seja senão isso.

Divulgação (CC3.0)
Araxá na primeira metade do século XX

Donde vem a indignação? Do choque. Eu conheço a minha condição humana e de católico, e sei o que tenho de bom. Não hesito em dizer que amo a Deus. E se é verdade que toda criatura foi feita à imagem ou à semelhança de Deus, olhando para mim devo sentir que sou feito à imagem e semelhança d’Ele. E se eu O amo preciso amar isto em mim. E não posso deixar de odiar algo que tende a destruir aquilo que é semelhança d’Ele. Odiar de um ódio inspirado pela Fé, pela razão; portanto é um ódio que toma a pessoa inteira. E odiar instintivamente porque o homem, quando é reto, tem um instinto que o leva a amar as coisas que devem ser e, vendo algo que é como não deve ser, sente-se estranho e contrário àquilo. E o resultado é este: nós não cabemos juntos!

Entre mim e o lodo o estado de guerra é irremediável

Considerando essa situação, exclamo interiormente:

— Tu, lama imunda, sabes disso e tentas introduzir em mim as tuas emanações sulfúricas, penetrar minha veste, minha cútis, entrar por minha respiração, destemperar os meus pulmões, intoxicar o meu sangue, conformar-me ao nojo que existe em ti e fazer de mim algo à tua maneira. Mas não desejo te fazer à minha maneira, quero fazer-te cessar.

Eu sou o agredido porque tenho o direito de ser. Sou conforme Àquele que é fonte de todo o Direito: Deus nosso Senhor!

Diego Delso (CC3.0)

Tu não tens o direito de ser. Fora! De ti, lodo, só quero guardar a lembrança de teu horror, para que quando voltares disfarçado – porque te conheço, sei que não tens vergonha e voltarás – eu possa te olhar e dizer para todos: esta é a lama, vou descrevê-la. E com horror, despertando o nojo e o ódio a ti, faço que mais uma vez tu sejas repelida. Entre mim e ti o estado de guerra é irremediável, porque eu sou e não quero cessar de ser, exceto quando Deus me chamar a Ele. Mas aí eu não cessarei de ser; deixarei de ser nesta Terra para ser mais inteiramente no outro mundo.

E no outro mundo continuarei a lutar contra ti. Porque enquanto lodo houver pela Terra, eu serei do Céu seu inimigo. Lodo, eu te conheço, conheço qual o teu futuro, como tu conheces o meu. Tu sabes que se me dominares me levarás para aquele lodo sem fim, cheio de fogo e de imundície e de maldição, que é o Inferno.

Sei para onde tu queres me levar. Mas sei também que se eu for para o Céu te amaldiçoarei e, dos mais altos páramos, te atormentarei para a glória de Deus! Nem eu após a morte nem tu deixaremos de existir. Lodo, eu te atazanarei, perseguirei e te humilharei! Tu podes me caluniar, invectivar, ignorar e até fazer sair dos meus pés uma labareda de fumaça que impeça que me vejam.

Nada extinguirá minha combatividade, a qual é antes de tudo minha fidelidade a Deus e a Nossa Senhora. É um reflexo e um prolongamento da incompatibilidade irredutível d’Eles contigo, porque tu és a serpente eternamente esmagada na cabeça.

Eu te conheço, lodo, e por isso digo: És esmagado pelo pé virginal d’Aquela que te venceu e todos teus sequazes! E tu me odeias e tens razão porque sou filho d’Ela! Mas também é verdade que, porque sou filho d’Ela, eu te odeio.

Vejo bem, ó lodo, que na tua moleza borbulhas ódio contra mim. Esse ódio não é cristão. Tu dizes contra mim “isto é vingança”, “isto é orgulho”, ou então “senta a meu lado, mete tuas mãos dentro de mim, acaricia-me e eu teria algo para te contar”; e todas as borbulhas emitirão um gás tóxico que me dará vontade de dormir, me tirará o gosto das energias inquebrantáveis do ar límpido das batalhas que não acabam mais. Sei, lodo, que tu me prometes dar todos os gáudios do lodo. Eu imagino esses regozijos.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1982

O lodo do espírito

Ouvi certa vez um senhor comentar diante de mim como era delicioso tomar um banho de lodo. Falava ele de um local situado na Europa Central, com um lodo mais célebre e provavelmente mais curativo do que o de Araxá.

Dizia-me este senhor que ele tomara esse banho não por necessidade, mas por curiosidade, coisas de turista. Disseram-lhe que era muito agradável meter-se no lodo, então ele foi. Havia torneiras com esguichos fortes, grandes, de onde saía o lodo que enchia uma banheira. Ele achou aquilo repugnante. E acrescentou:

“Tive horror daquilo, mas, levado pela curiosidade, entrei. Você não imagina, Plinio, a sensação do fofo, do macio, do agradável que me circundava por todos os lados. Eu não tinha mais vontade de sair. Parece que as banheiras eram alugadas por tempo determinado. Terminado o prazo, bateram na porta porque já havia outro candidato. Tive vontade de comprar mais um turno, mas não era possível. Você não sabe o que é nadar no lodo.

“O lodo descarrega a pessoa. Você não chega a encostar-se no fundo da banheira. Ele é tão denso que você fica cercado daquela matéria lisa, a qual penetra por entre os dedos, sobe pelo peito, vai até o queixo e dá um sono… É gostoso como você não pode imaginar.”

Não disse nada a ele porque era um homem mais velho do que eu, com quem não tinha esta forma peculiar de intimidade que nos autoriza a trocar confidências de alma. Pensei com meus botões: “Vi o lodo de Araxá, mas agora observei outra coisa: o lodo na sua alma. Há muito que o conheço e o vejo passear, se revolver, viver dentro do lodo. Conheço o lodo da matéria e o lodo do espírito porque conheço o senhor. Conheço o convite do lodo, sua atração e o vício de viver no meio dele. Eu odeio o lodo porque é tal que, ou a pessoa o repele com suma energia no primeiro momento, ou ele tem uma carícia infame que logo no segundo momento nos amolece. ‘Lodo, eu não te quero. Fora! Tu alegas as tuas carícias como um argumento para a tolerância, e eu digo: Se tu não tivesses outras infâmias, as tuas carícias seriam a razão pela qual eu diria: Lodo, fora!’”

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 17/7/1982)

1) Neologismo criado por Dr. Plinio para ressaltar a falácia do “pacifismo”, indicando que a imposição de uma falsa paz visa ocultar cinicamente seus reais objetivos revolucionários. Palavra que agrega “paci” a “cinismo”: “pacinismo”.