Dr. Plinio na década de 1980

Continuando o tema das “duas cabeças”, Dr. Plinio indica quais são os conflitos entre elas e aponta para a harmonia que deve reinar entre ambas, a fim de que o processo mental chegue a bom termo.

Tomando o assunto “duas cabeças” de um modo simples, é preciso considerar que quem domina nessas cabeças é o “eu”, ou é um “olho” que observa as duas cabeças e escolhe entre elas.

Qual das duas cabeças é a mais importante?

A esse respeito parece-me que se deve dizer o seguinte: a segunda cabeça, por muitos lados, é superior à primeira porque tem um contato com a realidade muito mais vivo. Ela pode corrigir muitas vezes a primeira cabeça, quando esta quiser simplificar uma coisa; pelo contato vivo com a realidade, a segunda cabeça terá uma percepção quase imediata de que aquilo não é verdade. Mas, considerada a coisa na ordem ontológica, a primeira cabeça é superior a essa evidência. A capacidade do raciocínio teórico é de um nível superior. De modo que, entre as duas cabeças, a que tem preponderância é a primeira. E a prova de que ela tem preponderância está em que, mesmo quando o “olho” dá a adesão à segunda cabeça, ele vai à primeira cabeça procurar um pretexto para essa adesão. O diabético que come açúcar, sabendo que isso faz mal, arranjará uma desculpa na primeira cabeça, dizendo, por exemplo: “A Medicina tem-se enganado tantas vezes que é possível que ela também esteja enganada no meu caso.” Se ele não tivesse essa noção ou algo semelhante, ele não conseguiria comer açúcar. Quer dizer, a primeira cabeça não cederia.

O conflito entre as conclusões da primeira e da segunda cabeças

A primeira cabeça tem uma função rectrix tal que, quando está colocada diante de uma determinada verdade que se apresenta a ela de maneira indiscutível, isso exerce uma espécie de império sobre o “olho”.

Onde é que nasce a possibilidade do indivíduo ter certezas e, entretanto, haver evasões em outra direção?

A certeza tem graus. E a evidência é uma certeza que tolhe todas as saídas em contrário. Mas, quando há graus de certeza menores, fica aberto um campo para, na segunda cabeça, existirem impressões em sentido contrário, não completamente dominadas. E então aparece uma espécie de dualidade de certezas. Enquanto o “olho” considera a primeira cabeça, ele tem uma certeza; quando olha para a segunda cabeça, encontra uma montagem de quadro que a certeza da primeira cabeça não foi bastante forte para extinguir.

Então se cria uma situação de conflito para o “olho” que recebe de um lado uma certeza, mas, de outro, um conjunto de impressões que parecem combalir aquela certeza. Vivem nos flancos daquela certeza, mais ou menos como dentro de alguns peixes grandes vivem peixes pequenos. Assim também, esses como que bichos ou micróbios nocivos vivem dentro das certezas do homem; essa espécie de certeza com sombras crepusculares vive no indivíduo.

Esses dois fenômenos constituem a fonte de perplexidades para o “olho”. O “olho” fica colocado na situação em que se encontra o homem diante da Religião verdadeira. Pascal dizia que, nela, há bastante luz para que o homem que realmente queira ver a verdade a veja; mas há bastante sombra para que o homem que não a queira ver não a veja. Isso se pode dizer, não de cada um dos dados da primeira cabeça, mas do conjunto da produção da primeira cabeça.

O defeito de cada cabeça e a posição certa do homem diante delas

É errada a posição da pessoa que ache dever sempre dar primazia à primeira cabeça contra a segunda cabeça, sob o pretexto de que é sempre preciso privilegiar a razão contra os sentidos.

Há um comprimento de onda em que isso é verdade, quando se trata das tais certezas de sombra, de penumbra, que são fenômenos viciosos da segunda cabeça.

Mas a segunda cabeça tem também a função de controladora e complementadora da primeira cabeça, legitimamente. Porque a segunda cabeça não é um defeito no homem, mas uma riqueza. Ela não é um fruto do pecado original, embora tenha sido viciada por esse pecado. Mas a razão também foi atingida pelo pecado original.

O verdadeiro é colher os dados da primeira cabeça e da segunda, confrontá-los em grande parte pelo processo da “conversio ad phantasmata”1, e então ligá-los para fazer conferir um com outro, a fim de formar uma certeza total e humana. Uma das coisas que, a meu ver, é muito importante dentro da vida intelectual e da vida interior é saber assegurar a colaboração das duas cabeças. Em todo estudo e trabalho essas duas cabeças devem operar juntas.

O “olho” tem a função de temperar ambas as cabeças.

Há muita gente que, por relaxamento, por displicência, deixa na segunda cabeça uma porção de impressões contraditórias com a primeira. Algumas válidas, outras não. Esta é uma atitude de alma muito má. É preciso ir sempre conferindo uns conhecimentos com os outros.

Às vezes é preciso acudir à segunda cabeça para obrigá-la a abandonar certos hábitos, categorias mentais que, depois de testadas, verificou-se que não são válidas; é necessário quase que fazer uma reeducação e obrigá-la a aceitar as coisas de outra maneira. Trata-se de uma espécie de pedagogia do “olho” em relação à segunda cabeça, que é muito necessária para o comum dos espíritos.

Deve haver também a mesma violência em relação à primeira cabeça, quando ela é cartesiana e se recusa a aceitar os dados nuancés2 da realidade, fornecidos pela segunda cabeça. A primeira cabeça muitas vezes é simplista, preguiçosa etc.

A pessoa entregue à segunda cabeça tende a se fechar sobre si

O mundo da segunda cabeça, quando não é controlado e fica entregue a si mesmo, forma uma espécie de universo fechado, obedecendo a uma espécie de dialética e de criteriologia próprias, cujo fim último é a satisfação dos instintos. É uma visão do universo relacionada apenas com a sua existência, com os dados fornecidos pela segunda cabeça.

Se o homem não toma essa posição equilibrada entre primeira e segunda cabeças, ele assume uma posição errada diante de todos os problemas da vida. Se ele se deixou levar por esse falso dilema, está com o gérmen de todas as heresias posteriores. Por exemplo, o idealismo afirma que só existem as verdades do mundo interior — primeira cabeça; o realismo diz, ao contrário, que há somente as verdades do mundo exterior — segunda cabeça; e atrás de um e outro está a gnose.

Conceito de conversio ad phantasmata

O homem, porque tem unidade em todo o seu ser, pede a harmonização entre as ideias da primeira cabeça e a sensibilidade da segunda cabeça. Por causa disso, os conceitos abstratos nele só chegam ao seu termo final de elaboração quando são convertidos depois em imagens ou figuras. Essa conversão às imagens concretas é o que chamaremos de conversio ad phantasmata.

Por exemplo, o belo se dá quando um conceito de ordem, contido em qualquer coisa, é reduzido a um certo fantasma, que dá ao homem, na segunda cabeça, uma sensação de ordem, mas uma sensação bonita, em que o fantasma produz uma ideia de beleza. Temos aí, nessa conversio ad phantasmata, a geração da beleza saída de dentro da ordem. De uma ordem que, enquanto apresentada num fantasma, dá uma ideia particularmente rica dessa ordem.

Não adianta a primeira cabeça ter visto as coisas especulativamente. Enquanto isso não for transposto para a segunda cabeça, nos termos em que ela apanha e é capaz de degustar, há como que um segundo homem dentro do homem, que fica fundamentalmente insatisfeito.

Tudo leva a crer que antes do pecado original a transição de uma cabeça para outra se desse com toda a harmonia. O fato de agora apresentar desarmonias tem algo de defectivo. Mas essas desarmonias, depois do pecado original, existem nos homens mais sadios; portanto, não são doentias, se bem que alguma doença possa acentuar a desarmonia decorrente do pecado original. Mas o processo, em si, não é absolutamente doentio ou defectivo.

Alguns exemplos

A afirmação de Camões de que “um fraco rei faz fraca a forte gente” é, também, uma espécie de conversio ad phantasmata, porque fala muito à segunda cabeça. O princípio filosófico, que está enunciado secamente aqui, e não falaria à segunda cabeça, seria: “Tal é o papel do rei dentro do Estado que, se ele for fraco, todo o Estado se debilita.”

Outro exemplo é a frase de Churchill, referindo-se aos pilotos da Real Força Aérea inglesa: “Nos campos dos combates humanos, nunca tantos deveram tanto a tão poucos.” Seria o mesmo que dizer: “Povos, ouvi! Vamos aguentar duro, e somos pouquinhos!” É o que está no fundo disso, mas ao mesmo tempo não está.

A relação da sensibilidade da segunda cabeça com a conversio ad phantasmata

Que relação tem a sensibilidade da segunda cabeça com o processo de conversio ad phantasmata? Eu diria que esta parte da alma prepara — pela finura de suas percepções, pela delicadeza e acuidade de suas vistas — o conhecimento de uma série de analogias entre as coisas sensíveis que lhe caem debaixo dos olhos. Prepara assim grandes conjuntos, tão claros e bem feitos, que deles como que se desprende uma noção teórica bem elaborada. Então, esses quadros vão harmoniosamente preparados para a inteligência, de modo que esta produz, com eles, noções abstratas esplêndidas e muito ricas.

Há uma espécie de processo de passagem do fantasma para o princípio, que é o paralelo harmônico do processo de passagem do princípio para o fantasma, e que faz com que uns se alimentem dos outros. Um processo não é o contrário do outro, mas se apoia no outro, como a força centrípeta e a centrífuga. De tal modo que as duas coisas possam caminhar juntas.

Papel de todas as coisas sensíveis dentro da cultura

Essa verificação nos leva mais longe, porque ficamos compreendendo melhor o papel da arte e de todas as coisas sensíveis dentro da cultura, que consiste em dizer a mesma coisa que ­– de outro modo – o raciocínio diz à razão, mas numa linguagem própria e quase intraduzível, à maneira de fantasmas para os sentidos.

Exatamente uma de nossas críticas à arte moderna é que ela não respeita isso. Fazer, por exemplo, uma mesa de um bloco de madeira pesadíssimo, baseada numas pernas muito finas, mesmo que estas sejam confeccionadas de um material muito resistente, desafia essa parte da alma que é a segunda cabeça, a qual, vendo isso, fica hirta, com a certeza que a mesa vai cair.

O termo do processo mental

A partir das considerações que fizemos sobre a conversio ad phantasmata, vimos que era uma operação muito sutil, porque é a aplicação do conceito geral a um ser concreto, individualizado, de tal maneira que se possa compreender esse ser pela relação que ele apresenta com a ideia geral.

Desse ponto de vista, qual é o termo da operação mental?

Posso ter uma noção genérica do que é polidez. Se eu vejo uma pessoa ter uma atitude muito polida com outra, direi que o ato foi de polidez, e poderei acrescentar: “Polidez é isto!”

Carolus
Luis XIV recebe o Doge de Gênova – por Claude Guy Hallé, Museu do Palácio de Versailles, França

Eu sei, por exemplo, o que é cadeira — conceito geral; analiso um objeto concreto e vejo que ele é cadeira. Então, quando digo que é cadeira e formo um juízo sobre isso, terminou a minha operação mental. Mas é preciso dizer que essa conversio ad phantasmata tem ainda alguns pontos reversíveis. Ao mesmo tempo em que digo que isto é cadeira, no sentido de que ao conhecer o indivíduo de uma espécie, cuja nota genérica está na minha mente, eu enriqueço de algum modo o conceito que está na minha mente. O próprio conceito universal se robustece de algum modo, pelo fato de eu ter conhecido aquilo que em concreto está debaixo de meus olhos.

Esta consideração ainda é mais clara se eu a vejo em função, por exemplo, da polidez. Posso ter uma noção genérica do que é a polidez. Se eu vejo uma pessoa ter uma atitude muito polida com outra, direi que o ato foi de polidez, e poderei acrescentar: “Polidez é isto.” Tendo observado a polidez em ação, enquanto praticada, ela adquire aos meus olhos uma riqueza de conhecimentos que ela não tinha no puro conceito abstrato. E a conversio ad phantasmata não é apenas algo que morre no concreto, no individual, mas ainda deita uma última luz reflexiva e indireta sobre o geral.

O termo do processo mental, a partir da segunda cabeça

O termo do processo mental a partir dos dados da segunda cabeça é análogo ao descrito acima. A segunda cabeça apresenta os dados que vão se reunir no senso comum. A inteligência toma esses dados unificados e opera sobre eles, tirando dali um conceito geral. Mas depois de atingido este conceito geral, a inteligência entrega de novo o resultado de seu trabalho ao senso comum, que, por sua vez, vai conferir o conceito obtido com a realidade. Assim, a segunda cabeça passa a ver as coisas concretas de uma forma mais intelectualizada.

A sabedoria e o processo mental

Aí se entende o que vem a ser a sabedoria, aplicada ao processo mental. Diz-se que a sabedoria é a tendência para o fim. Mas afirma-se também que a sabedoria é o percurso harmonioso e íntegro de todo o processo mental, a respeito de uma determinada coisa; é o hábito de percorrer esse processo mental inteiro, de um modo devido, com relação a cada coisa.

Qual é a noção por onde os dois conceitos são sabedoria? É que fazer o percurso íntegro do processo mental a respeito de uma determinada coisa, até o seu termo inteiramente maduro e acabado, é visar, no processo mental, o seu fim. E a um processo mental “afinalístico”, que para pelo meio, falta a virtude da sabedoria, a qual pede que cada coisa chegue a seu fim. De maneira que se entende uma espécie de duplo jogo da palavra sabedoria. Em última análise, sempre que a pessoa comete um erro, pratica uma falta de sabedoria, porque se o processo mental tivesse sido aplicado com toda a ponderação e toda a maturidade, ela não teria caído em erro.

(Extraído de conferências de 1, 12/12/1958; 13/5, 8/10/1959; 2, 4/4/1963)

1) Terminologia tomista que quer dizer: tornar imagens sensíveis (fantasmas) aquilo que por enquanto só são ideias.

Cfr. Summa Theologiae, Ia., q. 84, a.7; q. 85, a. 1 e 8; q. 86, a. 1; q. 88, a 1; q. 89, a. 1 e 2; q. 111, a. 2; q. 118, a. 3; IIa-II, q. 175, a. 5; In II Super Sent., d. 23 q. 2 a. 2; De veritate, q. 10, 2 ad 7; etc.

2) Expressão francesa: matizados.