Num ambiente pleno de harmonia, serenidade e alegria, Dona Lucilia organizava em sua residência a festa de Natal para seus filhos e outros parentes em idade infantil. As crianças, de mãos dadas e cantando, dirigiam-se até o presépio diante do qual ela puxava as orações. Tudo era profundamente marcado pela Fé e inocência.

Como toda criança, passei muitos Natais com minha mãe. Ela era o centro da família no que diz respeito ao trato com os pequenos, porque tinha um jeito extraordinário para isso, e um carinho imenso cujo transbordamento agradava enormemente aos filhos, antes de tudo, mas naturalmente também aos sobrinhos e demais crianças de uma família numerosa.

Arquivo Revista

Cores, sabores e o perfume do Natal

A festa de Natal fazia-se na casa de minha avó, mãe de Dona Lucilia, onde morávamos. Era uma casa antiga com porão alto, onde havia uma sala de estudos para minha irmã e eu. Nos dias de Natal essa sala era transformada completamente. Dona Lucilia comprava nos arredores de São Paulo um pinheiro e, auxiliada por nossa governanta alemã, a Fräulein1 Mathilde, decorava a árvore com figurinhas de anjos, de santos, velas acesas, bolas coloridas e — o que eu apreciava sobremaneira — balas, bombons, chocolates pendurados na própria árvore.

Como o número de velazinhas era muito grande, pegava um pouco de fogo nas folhas do pinheiro, nas pontinhas, donde se desprendia um aroma muito agradável que, para mim, passou a representar o perfume do Natal.

Além disso, nos quatro ângulos da sala eram dispostas mesas repletas de iguarias doces e salgadas.

Durante a decoração, a entrada das crianças na sala estava proibida.

Em certo momento, as crianças se reuniam todas numa sala superior do prédio, desciam pelo lado de fora, por uma escada de mármore que dava acesso ao jardim, e entravam na sala de estudos. Iam todas de mãos dadas e cantando canções de Natal, em geral alemãs, porque a nossa governanta e a dos meus primos eram germânicas e nos ensinavam essas músicas.

Cânticos e preces diante do presépio

Por exemplo, a famosa canção que na versão portuguesa se traduz por “Noite Feliz”:

Stille Nacht! Heilige Nacht!

Alles schläft, einsam wacht

Nur das traute hoch heilige Paar…

Stille Nacht quer dizer noite silenciosa; heilige Nacht, noite santa. Alles schläft, tudo dorme; einsam wacht, só está acordado; nur das taute hoch heilige Paar, o respeitável e altamente santo casal — eram Nossa Senhora e São José —; e depois a letra continua contando como foi a noite de Natal.

Descíamos a escada, passávamos pelo jardim, entrávamos na sala e formávamos um círculo em torno da árvore de Natal, junto à qual continuávamos a cantar, dando voltas.

Em certo momento, parávamos e mamãe se ajoelhava diante do presépio, cuidadosamente colocado ao pé da árvore. Este gesto era imitado por todas as crianças que repetiam, em coro, as orações rezadas por ela.

Terminadas as preces, todos se levantavam e começava a outra parte da festa: a criançada avançava sobre os enfeites comestíveis da árvore e sobre as guloseimas dispostas nas mesas e, com o apetite “feroz” próprio à idade, comiam bastante! Eu era dos capitães da comilança. Naturalmente, saía muita conversa, brincadeira, bem ao sistema brasileiro…

Dona Lucilia, em pé, muito afetuosamente mantinha as coisas em ordem, auxiliada pelas duas governantas.

Quando todos estavam satisfeitos, subíamos novamente cantando para a sala de onde tínhamos saído e ali nos despedíamos, retirando-se cada qual para sua casa.

Atração pela cor de um vidro de goma arábica

Engana-se quem pensa que estava terminada a Noite de Natal. O melhor estava por começar…

Na São Paulo daquele tempo, muito menor que a de hoje, havia apenas umas quatro ou cinco lojas grandes de brinquedos, mas essas tinham artigos esplêndidos, importados da Europa.

Riccosta (CC 3.0)

Reprodução
Serra de São Domingos e vista da cidade em 1870 – Poços de Caldas, Brasil

Nas semanas que antecediam o Natal, Dona Lucilia acompanhava minha irmã e eu a essas lojas para nos ajudar um pouco na escolha dos presentes e evitar que escolhêssemos bobagem. Quando a criança é muito pequena, às vezes, escolhe umas verdadeiras bobagens.

Abro aqui um parêntese. Lembro-me de que numa ocasião, de passagem por Poços de Caldas, onde pousamos para seguir viagem no dia seguinte, Dona Lucilia estava muito cansada e deitou-se logo, enquanto meu pai, Dr. João Paulo, foi dar um giro pela praça pública da cidade, com a minha irmã e comigo.

Passamos perto de uma loja com vitrines iluminadas onde havia uns vidros de goma arábica. Tratava-se de uma papelaria e, por coincidência, aquela luz batia muito forte na goma arábica, causando-me a impressão de uma cor linda.

Disse, então, a meu pai:

— Papai eu estava querendo um presente do senhor.

— O que é?

— Eu queria este vidro aqui.

— Mas é uma extravagância, não tem bom senso! O que você vai fazer disso?

— Pôr contra a luz para olhar a cor em casa, porque é muito bonita.

— Não tem propósito! Se você me pedisse um brinquedo eu comprava, mas isso aí não! Não tem um brinquedo aqui que você queira?

Não tinha, e a coisa ficou por isso mesmo.

Soldadinhos de chumbo

Eu gostava muito de soldadinhos de chumbo, pois era muito militarista. E nas casas de que falei, principalmente uma alemã chamada “Fuchs” — que significa raposa, em alemão —, havia peças muito boas: soldados de cavalaria, com couraça, elmo e espada na mão, ou tocando corneta; a última palavra do excelente! Soldados alemães, franceses, marinheiros ingleses, enfim, de toda espécie. Eu gostava enormemente!

Havia também outros brinquedos formativos como, por exemplo, uns apetrechos para construir casas, barragens, etc. com uma massa colorida especial com a qual a criança modelava sua construção.

Ou, ainda, outro brinquedo muito apreciado: trenzinho elétrico.

Indicávamos o brinquedo desejado a fim de ser feito o pedido a São Nicolau, que no-lo traria na Noite de Natal.

São Nicolau, — para os que não sabem — foi um bispo da cidade de Mira, na Ásia Menor. Ele tinha muita pena de certas famílias que, por reveses na fortuna, empobreceram. Por vezes, eram famílias de elevada categoria social, cujos chefes sentiam-se constrangidos e envergonhados de pedir esmolas.

Então, São Nicolau arranjava um jeito de pedir esmolas e entregá-las para essas famílias, sem que soubessem quem as estava ajudando, poupando-as, desta maneira, da vergonha de pedir esmola. E, na noite de Natal, o santo prelado passava pelas casas e jogava o presente pela janela aberta e saía correndo.

Estabeleceu-se, assim, a tradição segundo a qual, em todas as residências católicas do mundo, São Nicolau passava e deixava presentes para as crianças.

“Como São Nicolau acertou; que maravilha!” Era a alegria de um dia bonito, com o jardim florido, a grama verde, e as delícias do Natal que se prolongavam.

Reprodução
Cenas da vida de São Nicolau (por Fra Angelico) Pinacoteca Vaticana

Mamãe me perguntava: “Então, o que você quer que São Nicolau lhe traga?” E eu enumerava alguns dos brinquedos dos quais mais havia gostado.

O presente de São Nicolau

Após a comemoração acima descrita, quando íamos nos deitar, Dona Lucilia nos dizia que durante a noite São Nicolau entraria em casa e deixaria presentes aos pés das nossas camas. Eu ficava assanhadíssimo, curioso, mas nunca tive a preocupação de encontrar São Nicolau, nem tentei surpreendê-lo colocando o presente junto à minha cama. Ademais, depois dessa noite de Natal assim tão cheia, eu ia dormir com tanto sono que não me passava pela mente a ideia de entrevistar São Nicolau, nem agradecê-lo, nem nada; eu caía na cama e dormia…

Mas quando chegava certa hora da madrugada, eu ficava curioso em saber se São Nicolau já havia passado e deixado o presente. E sempre o pacote já se encontrava lá, porque Dona Lucilia, ao perceber que estávamos dormindo, entrava no meu quarto e no de minha irmã e punha os presentes.

Às vezes, eu acordava durante a noite e sentia já o presente de São Nicolau pesando sobre meus pés. Mas eu fazia o seguinte raciocínio: “Se eu agora levantar, arrebentar os barbantes e abrir a caixa para ver o que São Nicolau trouxe dos vários presentes que escolhi, não vou ter a alegria de fazê-lo de manhã, à luz do dia, na qual tudo fica mais bonito e alegre.” E, além disso, era gostoso acordar de vez em quando durante a noite, sentir nos pés o peso do presente, conjecturar o que seria, rolar para o outro lado e dormir de novo.

Mas chegava lá pelas sete, oito horas da manhã, eu acordava, e então era o momento de uma das alegrias máximas do Natal: arrebentar os barbantes, abrir o pacote e ver o que São Nicolau de fato tinha trazido. Em geral, era o brinquedo que eu mais queria, porque Dona Lucilia havia percebido qual era minha preferência e mandara comprar exatamente aquele.

Eu brincava com aquilo até ela e meu pai acordarem. Então, eu levava o presente para a cama deles, e lhes mostrava a “grande novidade”: São Nicolau tinha entrado em casa e deixara o presente, e eu queria que eles vissem. Minha irmã fazia o mesmo. Eles se “surpreendiam”: “Como São Nicolau acertou; que maravilha!”

Entretanto, logo se fazia ouvir uma voz imperativa que nos dizia: “Kinder, schnell!”— que quer dizer: Crianças, rápido!

Era a Fräulein nos mandando andar depressa, nos aprontarmos, tomarmos nossa refeição matutina para, em seguida, brincar no jardim com o presente de São Nicolau.

Era a alegria de um dia bonito, com o jardim florido, a grama verde, e as delícias do Natal que se prolongavam.

Está contado como era um dia de Natal junto a Dona Lucilia.

(Extraído de conferência de 21/12/1991)

1) Do alemão: Senhorita.

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