sábado, noviembre 23, 2024

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Dezessete anos

Maio de 1944.  Enquanto em quase todo o mundo a 2ª Guerra Mundial continuava a produzir mortes, brutalidades e lágrimas, a Arquidiocese de São Paulo ainda sangrava com o trágico desaparecimento de seu antigo Pastor, ocorrido no ano anterior num desastre de aviação. Talvez porque o sofrimento reaviva as recordações, Dr. Plinio, diretor do “Legionário”, pensou ser oportuna a ocasião para um exame de consciência sobre a missão desse jornal.

No dia 29, o LEGIONÁRIO completará 17 anos de lutas e de trabalhos. Sua fundação, que se deu em 1927, coincidiu com as primeiras manifestações do renascimento católico que se vem pronunciando de modo cada vez mais acentuado em nosso país.

“Coincidiu” não é, entretanto, bem exatamente o termo: entre um e outro fato não houve mera coincidência, mas uma relação vital e direta de causa e efeito. O LEGIONÁRIO nasceu do zelo e da dedicação dos pioneiros que desde a primeira hora levantaram entre nós o estandarte da reação católica. Ele nasceu, portanto, com uma missão bem determinada. Cumpria-lhe exprimir as tendências essenciais dessa reação, velar por que essas tendências, conservadas íntegras dentro da natural mutabilidade das circunstâncias e dos tempos, conservassem também o renouveau de Catolicismo que se operava, e seu verdadeiro sentido, os seus objetivos inicias, sua continuidade histórica enfim. Cumpria-lhe ser o porta-voz dessa mentalidade de reação vital, estender-lhe a influência, facilitar-lhe o triunfo final.

Aspectos de algumas manifestações de Congregados Marianos que marcaram o renascimento católico no Brasil, em fins da década de 20

Desde o seu primeiro dia, portanto, o LEGIONÁRIO não teve o caráter de um órgão católico inerte, apregoando nossa doutrina como um sistema abstrativo e tão indiferente à realidade, que poderia servir igualmente para o século XX e para a época em que os primeiros imperadores da dinastia dos Mings começavam a governar a China. Dentro da Santa Igreja, cada época herda, das anteriores, certas virtudes que lhe cumpre praticar e acrescer, e se defronta com problemas em função dos quais deve praticar, de modo especial e por assim dizer novo, virtudes que as épocas anteriores ainda não tinham considerado sob o prisma da época presente. Assim, na indefectível continuidade histórica que existe na Santa Igreja, pode-se notar de época para época diferenças de matiz análogas às que se notam, na mesma época, de uma para outra Ordem Religiosa.

O LEGIONÁRIO situou-se claramente, desde seus primeiros dias, diante dos problemas particulares à nossa época, e teve desde logo um feitio espiritual muito característico. Ele trazia em seu  programa todas as promessas e todas as esperanças da reação religiosa que começava então a se esboçar. Nesta vigília de um aniversário que transcorrerá em quadra de tanta significação para a Igreja e a Cristandade, é bem chegado o momento de um sério exame de consciência para os que lutam pela causa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Dos maiores aos menores, temos todos responsabilidades que, se no quadro geral dos acontecimentos podem não ser grandes — aliás, o que não é grande, desde que interesse à salvação das almas? — são grandes por certo no quadro de nossas responsabilidades particulares. Um exame de consciência pressupõe a noção clara de um dever a cumprir, e a análise de uma conduta para ver se nela se cumpriu o dever. O exame de consciência confere um ideal com uma vida, para ver se a vida está à altura do ideal. É o que procuraremos fazer publicamente.

À frente do corpo redatorial do “Legionário”, Dr. Plinio manteve intacto o ideal que norteou a postura dessa folha…

Reação num ocaso de Cristandade

Qual o ideal inicial do LEGIONÁRIO? Qual a direção em que se movia a reação espiritual que começava a clarear os horizontes ideológicos do Brasil em 1927?

Estávamos na liquidação final do regime liberal. Saturados de ceticismo, de latitudinarismo, de materialismo, deformados pelo linguajar baixo e deprimente [de parte] da imprensa, pelo espírito dissoluto do teatro e do cinema, pelo ambiente de crassa trivialidade em que se desenvolvia a juventude, aspirávamos todos a um ideal mais alto. Não tínhamos dúvida sobre esse ideal. Era o Catolicismo, plenitude de todos os ideais verdadeiros e nobres. Na atmosfera que respirávamos, duas circunstâncias nos afastavam desse ideal. De um lado, os inimigos declarados da Religião. …. De outro lado, os barateadores do espírito cristão: semi-católicos ….; gente que cria mas não praticava, gente que cria neste dogma mas que não cria naquele; gente que conservava, com um rótulo cristão, todos os sintomas de comodismo, displicência, indiferentismo do espírito do século. Católicos, enfim, para os quais a Igreja era um fardo que carregavam sem entusiasmo, um ideal com o qual procuravam sofismar, um espírito que procuravam de todos os modos acomodar com o da época, a fim de terem também a sua parte, lauta e confortável, no grande festim de Baltazar. …. [Os adversários]  desprezavam a fundo o católico de tipo corrente. Sabiam que ele era, de antemão, o grande derrotado, pois que, no momento oportuno, deixaria a carga de Catolicismo ir a pique, para salvar assim o prazer de viver. Nesta gente que acendia dois círios, um a Deus e outro ao demônio, o círio de Deus minguava, se consumia, bruxuleava. O círio do demônio era novo, alvo, rijo, sua chama gorda e cintilante. ….

Estávamos no último lusco-fusco de um ocaso de Cristandade. Na reação que clareou os horizontes, havia implícitas duas reações. Uma, contra os adversários da Fé, que deveriam aprender pela rijeza dos golpes que recebessem, que o campo não estava mais aberto sem reservas à sua insolência, sua afoiteza, seu cínico desprezo do Catolicismo. Outra, contra os católicos de meias medidas — “católicos café com leite”, era o termo da época — que com o escândalo de sua tibieza insinuavam por toda a parte a idéia de que o Catolicismo morria de inanição. ….

Perseverança no ideal dos primeiros dias

Dessas atitudes iniciais, deduziam-se outras. Odediência entusiástica à Santa Sé. Amor intensíssimo a todas as Ordens Religiosas, e especialmente à Companhia de Jesus. Nítido espírito de contra-revolução: o padre acima e muito acima do leigo, mais acima ainda o bispo, e acima do próprio bispo, o Papa. A palavra de um leigo devia levantar-se sempre para sustentar a autoridade do sacerdote. Era o sacerdote quem, acima de tudo, devia dirigir as iniciativas leigas. A palavra do sacerdote era sempre respeitada como a expressão autêntica do pensamento do bispo, Doutor e Pastor em sua Diocese.

… com sua obediência entusiasmada à Santa Sé, seu intenso amor ao clero e às ordens religiosas, especialmente à Companhia de Jesus, fundada por Santo Inácio (acima)

A palavra do Papa era a palavra do próprio Deus, fonte de toda a autoridade e de toda a verdade, coluna na qual se deviam firmar todos os magistérios, para serem legítimos e válidos. Muita, muita, muitíssima devoção a Nossa Senhora. Espírito Eucarístico ardente. Uma especial delicadeza em tudo quanto se refere à pureza e aos bons costumes.

Em suma, como sempre se deu na Santa Igreja, os fiéis de escol deveriam amar com especial ardor tudo aquilo que de modo especial se atacava na Religião.

Os atuais dirigentes do LEGIONÁRIO, em sua quase totalidade, não pertenceram aos primeiros dias do jornal. Pessoalmente, só ingressei na Congregação Mariana de Santa Cecília, à qual então o LEGIONÁRIO pertencia, em 1928, como tímido e distante noviço.

Lembrando-me, entretanto, daqueles tempos saudosos, dos mais saudosos de toda a minha vida, lembrando-me de toda a atmosfera intensamente católica que se oferecia ao meu espírito ávido de adolescente, e que respirei com a sofreguidão de quem sai de um porão sombrio para o mais puro dos píncaros de Campos do Jordão, revivo cheio de reconhecimento e de saudades uma quadra que me parece um Tabor. E voltando daí para os dias que correm — tão cheios de angústias, de apreensões, de problemas — os meus olhares, não posso deixar de dizer que, graças a Deus, o LEGIONÁRIO de hoje é bem o de ontem, e que o pendão que ele ostenta não perdeu nenhum de seus florões.

Toda obra humana tem defeitos, lacunas, misérias. Perdoe-nos Deus as nossas.

Dentro de poucos dias, festejar-se-á a Universal Mediação da Rainha do Céu. Pedir-lhe-emos muito especialmente que nos alcance, com o conhecimento exato de todas as nossas faltas, um desejo ardente de as emendar, e as graças necessárias para tal. Mas, ao mesmo tempo, podemos dizer com humilde reconhecimento que, a despeito de todas as lacunas, o LEGIONÁRIO é sempre o mesmo LEGIONÁRIO de seus primeiros dias.

Paladinos da Igreja e do Papado

Antes de tudo, amamos sempre o Pontífice Romano. Não houve uma palavra do Papa que não publicássemos, que não explicássemos, que não defendêssemos. Não houve um interesse da Santa Sé que não reivindicássemos com o maior ardor de que uma criatura humana seja capaz. Em nossas palavras, graças a Deus, nenhum conceito, nenhum matiz, que destoasse do Magistério de Pedro em uma só vírgula, em uma só linha sequer.

No programa do “Legionário”, extrema devoção a Nossa Senhora, ao Papado e ao Santíssimo Sacramento

Fomos em toda a linha os homens da Hierarquia, cujas prerrogativas defendemos com ardor estrênuo, contra as doutrinas que pretendem arrancar ao Episcopado e ao Clero a direção do laicato católico. Não houve equívocos, nem confusões, nem tempestades que conseguissem deixar em nosso estandarte a mais leve mácula neste ponto. Defendemos em toda a linha o espírito de seleção, de formação interior, de mortificação e de ruptura com as ignomínias do século. …. Ninguém se ergueu em nenhuma parte do mundo contra a Igreja de Deus, que o LEGIONÁRIO, dentro do âmbito evidentemente limitado de suas possibilidades, não protestasse. Ao mesmo tempo, nunca perdemos de vista a obrigação de alimentar de todos os modos a devoção a Nossa Senhora, e ao Santíssimo Sacramento. Não houve uma só iniciativa católica genuína que não tivesse todo o nosso entusiástico apoio. Nunca a estas portas bateu quem tivesse em mira apenas a maior glória de Deus, sem encontrar colunas amigas e acolhedoras.

Há nesta vida um bom combate a combater. Estamos extenuados, sangramos por todos os membros. Foi neste combate que nos cansamos, que nos ferimos. Em compensação, não ousamos pedir como prêmio senão o perdão de tudo quanto inevitavelmente tenha havido de falível e de humano nesta obra que deveria ser toda para Deus, só para Deus.

(Extraído do Legionário, nº 616, 28/5/44. Subtítulos nossos.)

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