Para a escola de pensamento de Dr. Plinio, as impressões e observações que povoam a mente de cada homem contêm mais elementos preciosos para o raciocínio e a formação das certezas do que uma biblioteca repleta de livros

Como se enriquece o conhecimento na escola de pensamento de Dr. Plinio? — Privilegiando-se uma reflexão baseada no bom senso e na explicitação e avaliação das próprias impressões.

Como já tivemos ocasião de observar, Dr. Plinio sabia reduzir temas complexos a seus termos mais acessíveis e elementares, para daí elevar-se às culminâncias nas quais era mestre. Ele costumava tratar de filosofia em conversas informais, ou em conferências para auditórios bastante heterogêneos, tanto no tocante às idades quanto ao nível cultural dos ouvintes.

Fomos buscar nessas fontes os textos aqui apresentados. Como não chegaram a ser revistos por Dr. Plinio, podem conter alguma imprecisão de linguagem, nunca porém de conceitos. E o leitor terá a vantagem de conhecer o tema no verdor de suas primeiras explicitações.

Quase toda a filosofia moderna — inclusive os sistemas mais opostos entre si, desde o idealismo de Kant até o mais crasso materialismo —, procede de Descartes (1596-1650). Este considera que, para se conhecer com certeza alguma coisa, é preciso rejeitar o testemunho dos sentidos, duvidando-se de todas as impressões adquiridas, e começar do zero a elaboração da análise.

Na verdade, Descartes (ao lado) tentou transplantar a certeza matemática para todos os campos do saber, acabando por gerar um método geométrico, abstrato e apriorístico (segundo Saisset), com “raciocínios por demais generalizadores e aéreos” (segundo Leibniz).

Nada mais natural que Dr. Plinio se opusesse ao método cartesiano. Era ele adepto entusiasta da Escolástica — o ensinamento dos mestres católicos medievais aprovados pela Igreja —, aos quais Descartes tinha verdadeiro horror. A base para as cogitações filosóficas plinianas é principalmente São Tomás de Aquino, a par de outros astros do saber católico, como São Boaventura.

Conforme me pediram, passo a tratar a respeito da verdade e do erro, e depois falarei sobre a questão da incerteza.

No tocante ao primeiro tema, é necessário antes apontar uma doutrina que devemos repudiar completamente. É a tese de Descartes, que hoje é adotada subconscientemente por milhões de pessoas.

Descartes — famoso filósofo francês do século XVII — afirmava o seguinte: antes de alguém estudar um assunto, deve duvidar de tudo o que já aprendeu a respeito dele, e começar a raciocinar de novo.

Por exemplo, se quero estudar a natureza das velas acesas diante de uma imagem de Nossa Senhora, preciso cancelar tudo o que já está na minha cabeça a respeito de vela, pois não tem valor algum. Devo começar as minhas deduções prescindindo disto.

Ora, ignorar todo o conhecimento anterior gera uma conseqüência psicológica, da qual Descartes não tratou, mas que é um dos resultados do seu sistema.

Que conseqüência é essa? Como é impossível que alguém consiga estudar todas as coisas que deve conhecer utilizando o método por ele preconizado — ignorando o que já apreendeu por meio das impressões, etc. —, a solução é buscar esse conhecimento nos livros. Se alguém não pode coordenar tudo o que sabe, começa por ler. E o conhecer uma ampla bibliografia sobre o assunto é, então, o primeiro passo de um estudo. Assim, o pensamento começa pela leitura.

Não julgo isto correto. Volto ao exemplo da vela: tenho já uma idéia embrionária sobre velas, embora seja a mais rudimentar e vaga possível. Se fosse começar a pensar sobre as velas, talvez tratasse primeiro de reunir o que já sei, e ordenar um pouco essas idéias; depois, fazer algumas observações. Quando o que está na minha cabeça e o que eu poderia pensar por mim mesmo sobre velas tivesse chegado a um certo ponto, aí, sim, eu ia ler sobre o assunto em algum livro.

O livro não pode ser a pista do meu pensamento, mas uma espécie de bomba de gasolina que eu tenho à margem do caminho. E eu me abasteço tanto quanto queira, mas não é meu pensar. O livro é um servo a quem eu mando que me traga materiais para o meu pensamento. Mas vou refletir segundo minhas coordenadas, meus antecedentes, meus modos de ver, etc.

Esta é a maneira de pensar característica da nossa escola. Estudamos nos livros para nos completarmos.

Quem é da outra escola, começa por procurar nas bibliotecas tudo quanto outros pensaram sobre uma matéria, para depois tirar suas conclusões. Ele faz o estudo, ou com o intuito de aprender o que outros concluíram, ou para derrubar tudo em função do que outros disseram, ou ainda para acrescentar algo às opiniões de outros.

Não sei se percebem que a finalidade do estudo se deslocou. Notem bem: não estou afirmando que Descartes recomendou isto; estou dizendo que o método dele, como é inumano, na ordem prática das coisas produz, por via de extrapolação, esse resultado.

O mais curioso é que, na concepção de Descartes, uma certeza adquirida previamente ao estudo é considerada um preconceito. A certeza, para o cartesiano, é um fruto só do estudo: depois de ter estudado fantasticamente, ele adquirirá a certeza. Eu nego que isto seja assim.

Um conceito de estudo formado com base no bom senso

Parece-me chegado o momento de exprimir o nosso conceito de estudo. Ele consiste no seguinte: tenho na mente dados de bom senso — incluindo o senso lógico — que constituem um patrimônio comum de todos os homens.

Ou seja, assim como nasci sabendo mover os olhos para ver o que quero, também nasci sabendo raciocinar. Ninguém precisa de um “tratado de movimentação dos olhos” para saber como fazer. Isto poderá ser necessário para algum doente, mas não para uma pessoa normal. Toda criança mexe naturalmente os olhos, a cabeça, etc.

“O livro é um servo que deve me trazer materiais para meu pensamento”

O senso lógico é assim também. Está na condição humana. Portanto, aprendi diretamente, no contato com o mundo externo, uma série de verdades primevas que não necessitam de demonstração. Isto forma em mim um patrimônio de certezas que são inteiramente lógicas, naturais, primeiras. Considerar isto sem valor seria insensatez.

Essas certezas são os pressupostos com os quais vou analisar e pensar.

Alguém poderá me objetar:

— Não pode haver erro nessas certezas primeiras?

— Pode. Como ocorre com tudo o que é humano, é normal que haja.

— Então, rejeite-as e parta do zero.

Para mim, um conselho deste tipo equivale a dizer:

— O senhor não pode ter algum defeito na vista?

— Posso.

— Então, antes de começar a olhar qualquer coisa, arranque os olhos.

Quem age assim com suas certezas iniciais não vê mais nada. Cai na noite da incerteza.

O fundamento da certeza é, portanto, esse patrimônio primeiro, semi-explícito, semi-implícito, que são as certezas iniciais.

Relação entre as certezas e o senso do bem e do mal

Alguém pode retrucar: mas qual é o valor lógico dessa certeza? Como o senhor pode se certificar de que dentro desses dados não haja uma grande série de erros?

A minha resposta é: a imensa maioria dos erros vem de apegos. Para alguém ter confiança nas suas certezas primeiras, precisa ter possuído um senso do bem e do mal muito vivo. Porque, neste caso, seu olho é límpido para ver. As deformações “visuais” se originam, em sua quase totalidade, da vontade.

Quem, com a alma limpa, procura conhecer assim essa verdade primeira, poderá cometer erros acidentais, poderá cometer erros secundários, mas o grosso do conhecimento sobre determinada coisa, ele obtém. Ou seja, na linha-mestra não erra. É do senso natural. Isto é ainda mais verdade quando ele é batizado e assistido pela graça.

Qual é, então, o sistema da conquista da verdade? Esta começa por uma lenta explicitação do que já se sabe. E uma ordenação das coisas novas que se vai sabendo, mas em função do bom senso fundamental desses dados primeiros.

A marcha “de proche en proche” para atingir a verdade última

Sem isso, o senso da verdade não existe. Chega-se à verdade mais ou menos numa marcha de proche en proche (“da próxima à próxima”). Das verdades primeiras, não se deve saltar logo para as últimas, mas é preciso caminhar modestamente para verdades mais próximas. E assim, de uma para outra, embora já se possa ter intuído a verdade última — costuma acontecer que muita gente a intui —, é preciso construir a demonstração de proche en proche. Construí-la sem aparato, sem espalhafato, sem agitação, mas humilde, sólida e organicamente.

A esse respeito, sustento que o nosso melhor livro somos nós mesmos. Não somos só um livro; cada um de nós é uma biblioteca que contém imensamente mais do que as bibliotecas em que estão os livros. Jamais alguém escreveu tudo o que possa haver na mente de um homem.

Por exemplo: ao repararmos, num tecido, o contraste entre o vermelho e o azul, há milhares de impressões que saltam no nosso subconsciente. Se tomarmos o trabalho de as explicitar, teremos muito mais que numa biblioteca. Este é o grande trabalho intelectual ao qual devemos nos dedicar.

Qual é, então, o papel do livro? Ele me ajuda a colher dados de que eu preciso, me transmite alguma consideração interessante de alguém, etc. Mas nunca devo “entornar” o livro na minha cabeça. Ele deve servir de depósito de material para a minha construção.

Sei que estou indo de encontro à cultura em voga em muitos círculos intelectuais.

“Para alguém ter confiança nas suas certezas primeiras deve possuir um senso do bem e do mal muito vivo.”

Há alguns anos, fui almoçar com um grande medievalista francês, escritor de vários livros e com obras laureadas. Eu não havia lido nem a terça parte do que ele lera sobre a Idade Média. Contudo, no meio da nossa conversa, após eu ter feito alguns comentários sobre coisas medievais, ele me disse: “Caro amigo! O senhor precisa indicar-me sua bibliografia. De que livros o senhor tirou essas observações?” Quase respondi: li a minha própria cabeça…

É assim. E não é sério levantar a objeção de que em algumas mentes há mais do que noutras. Quando alguém quer saber mais do que tem na cabeça, não adianta afundar-se em leituras. Primeiro ele precisa saber aproveitar o que já possui. Um homem que saiba bem aproveitar todo o cabedal que já adquiriu é um talento, um gênio.

Dessas considerações concluo: ao analisar determinado assunto, não é preciso ler tudo sobre ele, nem é o caso de dar todos os argumentos a respeito dele. Necessário mesmo é ter dele uma noção básica sólida. Pode até acontecer que não saibamos fundamentar alguns pontos numa discussão. Ora, discussão não é teste de certeza. Pensa-se hoje em dia que sim: “Discuti com Fulano, ele ficou sem resposta; logo, quem tem razão sou eu”. Esta dedução não se justifica.

Qual é, então, o teste da certeza? Sustento que é a verificação da consonância entre aquilo que se afirma e os dados do bom senso que todos possuem. É uma certeza inicial que, de proche en proche, vai se desenvolvendo.

Contudo, ela mesma não é, no fundo, senão uma projeção do senso do bem e do mal e desse senso nativo da verdade e do erro, que se apóiam e se vão tornando mais vigorosos.

(Transcreveremos no próximo número a 2ª parte dessa conferência)