Entre os tesouros da arte barroca conservados em Minas Gerais reluz uma peça de extrema beleza, exposta à veneração dos fiéis na Igreja de São Francisco de Assis, na histórica cidade de São João del Rei. A origem dessa preciosidade é assim narrada pelas crônicas:
Estava já a igreja no século XVII inteiramente terminada, inclusive em sua decoração interna, quando se percebeu faltar o elemento que deveria coroar o cimo do altar-mor: o Crucifixo, em que o Divino Crucificado dirigia a palavra a São Francisco.
Pasmo da comissão encarregada da decoração! O que fazer? Os artistas contratados negavam-se a continuar por mais tempo os afazeres naquela igreja, alegando contratos a cumprir em outros lugares. E assim, ficou-se numa grande indecisão. Foi quando por aquelas plagas apareceu um nobre ancião, de feições muito dignas, oferecendo-se para esculpir o Crucificado, e desse modo encerrar a obra artística daquele templo. Não sendo conhecido de ninguém, e não podendo apresentar referências à altura da tarefa, mandaram-no embora.
Passado um certo período, voltou o ancião, reiterando a sua oferta. Novamente, por falta de referências, foi rejeitado sem escrúpulos. Após mais um tempo, e não se tendo achado ainda nenhum outro artista que quisesse levar a obra a cabo, voltou pela terceira vez o bom velho, apresentando seus serviços. Não tendo outra escolha, os encarregados decidiram aceitá-lo, perguntando-lhe quais eram suas condições. Respondeu o ancião que não pedia nada antes de findo o serviço. Terminado, retribuiriam, caso julgassem a obra bem feita. Solicitava apenas que recebesse uma refeição e uma medida de água por dia, à hora do almoço. Por outro lado, exigia fazer todo o trabalho sozinho, trancado em uma sala, sem comunicação com o exterior, a qual só seria rompida estando tudo acabado. Assim foi-lhe concedido.
Transcorridos vários dias, verificaram os responsáveis que os alimentos deixados para o bom velho junto à porta da sala não estavam mais sendo retirados por ele. Reuniram-se então as autoridades e tomaram a decisão de arrombar a porta, a fim de saberem o que ali estava se passando. Entraram e… surpresa! O respeitável ancião havia desaparecido, e um Crucifixo magnífico, de traços como jamais se vira, estava ali inteiramente esculpido! Esse Crucifixo é o que se encontra hoje no topo do altar-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei.
Muitos crucifixos exprimem com doçura, dignidade e profundidade de alma extraordinárias a dor d’Aquele que está para expirar, e até o sangue divino escorre nobremente pelo corpo chagado. Dir-se-ia um desenho de beleza, os filetes vermelhos irrigando magnificamente a figura do Salvador.
Mas nesse de São João del Rei — um dos mais belos e comovedores Crucifixos que tenho visto em minha vida —, está expresso de modo único, preciso e extremo o sofrimento espantoso de Nosso Senhor no alto da cruz. Não O magoa apenas a imensa tristeza causada pela perseguição injusta e pela ingratidão de que Ele é objeto.
Os olhos escancarados e salientes, a tensão de toda a carnatura da face e a posição do pescoço incutem a impressão de algo muito mais aflitivo do que a dor: é o mal-estar. Um mal-estar terrível, pior do que qualquer padecimento, inundando completamente a Alma adorável e o sagrado Corpo de Nosso Senhor no madeiro. Dir-se-ia que, nesta posição e com essa expressão fisionômica, o Divino Redentor não estaria distante de exalar o brado sublime que precedeu de momentos a sua morte: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” Tudo n’Ele está prestes a estalar, a desaparecer. O “consummatum est” se aproxima.
Sofrimento indizível cuja consideração deve nos preparar para nos unirmos a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima, em nossas dores, em nossas perplexidades e aflições de espírito, nas horas em que parecemos sucumbir ao peso da angústia e pensamos estar, nós também, abandonados pela Providência.
Sim, também para nos infundir ânimo e coragem esse Crucifixo é verdadeiramente sublime! Como não nos enchermos de confiança e de força de alma, ao considerarmos tudo quanto Ele padeceu por nós? Ei-Lo no auge do estertor, do não caber mais em Si. É o mal-estar nos seus aspectos mais terríveis. E assim como o poeta francês cantou “le charme plus beau que la beauté” — o encanto mais belo que a beleza —, deste Crucificado eu diria que sofre “o mal-estar mais dolorido que a própria dor!”
Junto à cruz, aos pés de seu Divino Filho, estava Maria: que permuta de sentimentos, profunda, completa, total! É a Mater Dolorosa, cuja aflição chegou também a um extremo inimiagnável
(Nossa Senhora das Dores, Bahia)
É o holocausto do Homem-Deus retratado de um modo magnífico. E essa perfeição de talhes justifica a suspeita de que o artífice, aquele “bom velho” desaparecido misteriosamente, não era senão um anjo, enviado por Deus para esculpir ali essa obra-prima da arte católica. Esse é um Crucifixo cinzelado por mãos angélicas. Dir-se-ia, mesmo, que o artista celestial esteve presente no Calvário, viu a Nosso Senhor nesse estado, lembrou-se da adorável fisionomia que então contemplou e a reproduziu. De tal maneira essa face divina corresponde, não ao que poderíamos imaginar, mas ao que não logramos conceber. Somente depois de admirá-lo, percebemos que deve ter sido realmente assim…
De passagem, cabe outro comentário. Nada há de mais contagioso do que o mal-estar. Por exemplo, se nos achamos perto de alguém que esteja padecendo de asfixia, facilmente nos deixamos tomar pela aflição dele, e logo parecemos acometidos por igual tormento. Ora, o divino mal-estar de Jesus, como seria contagioso para quem tivesse um mínimo de compaixão! Quiçá, não terá sido a consideração desse mal-estar em sua fase ascensional que tocou e converteu o bom ladrão? Mais. Incomparavelmente mais. Ao pé da Cruz encontrava-se Maria Santíssima: como A terá contagiado esse mal-estar? Que disposições de alma, que permuta de sentimentos determinou entre Ele e Ela, tão íntima, tão profunda, tão completa, tão total como nem podemos imaginar!
Era preciso que um artista se inspirasse nesse Crucifixo para esculpir uma Mater Dolorosa. Então compreenderíamos melhor Nossa Senhora das Dores, a sua aflição, o gemido do mal-estar levado, n’Ela também, ao seu extremo.