“O cristianismo é religião entranhada na história”, escreve o Papa João Paulo II na tão louvada Carta Apostólica “Novo Millennio Ineunte”. E o Pontífice continua, mostrando que “visto no seu mistério divino e humano, Cristo é o fundamento e o centro, o sentido e a meta última da história”.
Era sempre sob essa perspectiva cristocêntrica que Dr. Plinio analisava os acontecimentos humanos, convicto de que só assim podem ser corretamente apreendidos e avaliados. É desse mirante que ele dá prosseguimento aos comentários à Encíclica “Parvenu à la 25e année”, de Leão XIII.
Vimos como o influxo da verdadeira Igreja deve proporcionar aos povos e Estados frutos temporais insignes: ordem, paz, cultura, bem-estar. Além disso, para sua missão específica de encaminhar as almas para o Céu, deve ser capaz de despertar a simpatia, a confiança, o entusiasmo dos indivíduos e dos povos. Quando uma instituição tem vinte séculos de história, só despertará esses sentimentos se puder demonstrar que seu passado proporciona razões para tal. Diante de Estados ou instituições leigas, a Igreja tem se empenhado em tornar patentes suas benemerências para conservar o direito de dizer, no momento oportuno, com a autoridade de seu imenso e luminoso papel na história, uma palavra de conselho, de esclarecimento, de orientação, cujos efeitos redundarão, em última análise, em benefício da Cristandade e do mundo.
Com a autoridade e a benemerência que lhe granjeiam seus vinte séculos de história, reserva-se a Igreja o luminoso papel de esclarecer e de orientar a Cristandade e o mundo
A necessidade de uma cultura católica
A todas essas grandes razões acrescenta-se uma de caráter doméstico mais especial, que é, aliás, explicitamente mencionada por Leão XIII na introdução da grande Encíclica histórica “Parvenu à la 25e année”. A Igreja é, sob certo ponto de vista, um imenso exército, o exército de Deus, que luta por sua maior glória ao longo dos séculos. Ora, todo exército precisa ter consciência de seu próprio passado, dos reveses que superou e das glórias de que se cobriu, para se animar nos momentos difíceis. A consideração do passado da Igreja e das lutas indescritíveis que teve de enfrentar torna invencíveis os fiéis.
E não é só. Ajuda-os a compreender a gênese dos problemas com que estão lutando, os vínculos por vezes impalpáveis que mantêm unidos contra ele os adversários tão díspares que os assaltam, e a verdadeira natureza dos obstáculos com que se defrontam. Sem tal estudo não se pode contar nem com soldados esclarecidos, nem muito menos com chefes capazes.
Além de crer no que foi revelado, cumpre que os homens tenham uma estrutura ideológica e mental conformes à Revelação; numa palavra, é necessário uma cultura católica
(abaixo: a Biblioteca do Vaticano, guardiã de um inestimável acervo cultural e histórico; ao lado; o Papa Sisto IV, um de seus idealizadores)
Por mais importantes que possam ser, a vários títulos, essas considerações, é preciso acrescentar que elas não esgotam o assunto.
A condição mais essencial para a salvação das almas é a Fé. Ora, a integridade da Fé não consiste apenas em que os homens creiam no que foi revelado, mas que tenham uma estrutura ideológica e mental inteiramente conformes à Revelação. Em uma palavra, é necessário uma “Weltanschaung”, quer dizer, uma cosmovisão católica, uma cultura católica. Ora, nenhuma “Weltanschaung”, nenhuma cultura pode existir sem envolver — e até mesmo supor, em certa medida — uma Filosofia e uma Teologia da História. De onde, feita abstração de todas as razões apologéticas ou práticas que tão a fundo empenham a Igreja no estudo da história, a necessidade de formar uma cultura católica para os povos que vivem em seu redil seria por si só motivo suficiente para justificar todo o empenho que sempre demonstrou neste assunto.
Filosofia e Teologia da História
Acabamos de falar da Filosofia e da Teologia da História. Fizemos com isto uma distinção com a qual nem todos os nossos leitores estarão talvez familiarizados. A história pode ser considerada à luz dos meros princípios gerais que a razão humana conhece por seu esforço próprio: é a Filosofia da História. Dado, entretanto, que o homem conhece pela Revelação muitas outras verdades sobre sua origem e seu fim, sobre Deus, sobre Jesus Cristo, sobre a Igreja, sua missão, seus poderes, seus meios de ação sobrenaturais, uma cultura católica deve elaborar uma perspectiva da história à luz desses conhecimentos: é a Teologia da História.
Em princípio, a distinção entre esses campos é muito clara. Cumpre, porém, acrescentar que na realidade ela não é tão nítida, pois a Revelação contém não só verdades inacessíveis por si mesmas à inteligência, mas muitas outras que a razão pode conhecer, e Deus revelou para as confirmar com sua autoridade. Em outros termos, a Revelação trata não só de Teologia, como ainda de Filosofia. As questões decorrentes deste entrelaçamento não têm, aliás, maior papel nos documentos de Leão XIII, que trata, ao mesmo tempo, da Teologia e da Filosofia da História, passando de uma para a outra com a “aisance” e a segurança de grande pensador.
Vimos, assim, quais as verdadeiras fontes para a interpretação dos documentos pontifícios, e quais os móveis — dos quais encontraremos muitas manifestações nos textos de Leão XIII — que levam um Papa a se ocupar de História: noções indispensáveis para que passássemos ao estudo dos conceitos de Leão XIII.
Em sua imensa maioria, os documentos pontifícios são dirigidos a toda a Hierarquia Eclesiástica, isto é, segundo a fórmula consagrada, aos “Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros ordinários em paz e comunhão coma Sé Apostólica”; à Hierarquia Eclesiástica de uma nação ou província particular, a personalidades eclesiásticas ou leigas do mundo cristão, ou a todo o orbe católico em geral. Em via de regra, os Papas pressupõem, pois, conhecidas e aceitas pelo leitor todas ou a maior parte das verdades contidas nos ensinamentos anteriores, ensinamento da Igreja, sobre as quais se apoiarão ao desenvolver o tema de que trata o documento.
Leão XIII, como é natural, conformou-se com este método. Quem queira conhecer com precisão o pensamento histórico de Leão XIII deve, em conseqüência, tomar como ponto de partida de seu estudo o ensino da Igreja sobre Deus, o homem, o demônio, a Redenção e a Igreja. Pois foi com base neste ensinamento, contido na Revelação, confirmado em parte pela Filosofia, e gradualmente sistematizado e explicitado pela Igreja ao longo dos séculos, que Leão XIII estruturou todo o edifício de sua concepção histórica.
Sairíamos dos limites naturais deste trabalho, se empreendêssemos aqui a exposição de toda a doutrina católica sobre matérias tão profundas, tão complexas e tão vastas. Tanto mais quanto não falta sobre elas ampla bibliografia em todos os idiomas e para todos os níveis intelectuais, desde o catecismo primário até os mais altos tratados de Filosofia e Teologia.
Nosso estudo, entretanto, não interessará apenas a leitores católicos, pois a personalidade de Leão XIII continuará a irradiar sua influência nos meios mais diversos. E os próprios leitores católicos, em sua maioria, pelo menos, julgarão útil tomar novo contato com essas verdades essenciais da Fé, na leitura de uma exposição sucinta em que tais verdades lhes sejam apresentadas de maneira a pôr em evidência especial os aspectos que mais de perto interessam ao assunto deste livro.
Alguns pontos de doutrina necessários para o tema
Para melhor compreensão do pensamento de Leão XIII, passamos a resumir as principais afirmações da doutrina católica sobre o homem, sua natureza, sua razão de ser e seu fim último, pois toda a Filosofia da História, e “a fortiori”, toda a Teologia da História tem necessariamente como ponto de partida uma tomada de posição perante esses assuntos, ainda que essa tomada de posição consista numa negação absoluta.
Exporemos aqui o ensinamento comum da Igreja, tomando como ponto de referência o Catecismo Romano para adultos, e a Suma Teológica, de São Tomás de Aquino. Como esses ensinamentos se encontram em abundância nos documentos de todos os Papas, não há interesse maior em fundamentá-los especialmente com textos de Leão XIII. Deste último só citaremos os tópicos mais característicos, ou que pela originalidade do pensamento doutrinário, da exposição ou da aplicação a fatos concretos mereça especial registro.
Deus
Não é possível compreender inteiramente o que a Igreja nos ensina sobre o homem, sem conhecermos o que ela nos diz sobre Deus.
Ensina a Igreja que Deus é ato puríssimo, e não potência*, essência simplicíssima e única, espiritual e infinitamente perfeita. A razão nos mostra que Deus tem por atributos a imortalidade, isto é, que Ele permanece desde todo o sempre e sem fim em um mesmo ser e realidade substancial, e também no conhecimento e no amor de si mesmo. Deus é eterno, isto é, Ele enche os tempos como a imensidade enche os espaços, e igualmente está fora do tempo. Deus é imenso no sentido de que está fora do espaço e, sem mudança de si, está presente em tudo. Deus é omnisciente, perfeitamente livre, omnipresente, e rege com sabedoria e bondade, por sua providência natural, todo o universo.
Esses atributos de Deus, que a simples razão pode demonstrar, a Teologia os encontra afirmados na Revelação, e lhes acrescenta mais um: a providência sobrenatural. Este último atributo não deve ser confundido com o da providência natural, que pouco antes mencionamos. Por sua providência, Deus destinou aos seres um fim conforme à natureza de cada um. Por sua providência sobrenatural, Deus destinou o homem a um fim superior à natureza humana, a um fim que enche e, ao mesmo tempo, supera seu fim natural: a vida sobrenatural e a visão de Deus face a face, que se realiza em germe nesta vida pela fé e que pela graça, e se realizará na outra vida pela glória, da qual só serão privados eternamente os réprobos condenados ao fogo eterno do inferno. Voltaremos, mais adiante, à distinção entre a ordem natural e sobrenatural quanto ao homem e, conseqüentemente, entre a providência natural e a sobrenatural.
A criação
Deus é uno, mas há n’Ele três Pessoas realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.
O Pai, pelo conhecimento que tem de si mesmo, gera uma outra Pessoa divina, que é o Filho. Essas duas Pessoas divinas se amam infinitamente. O amor que d’Elas procede é o Espírito Santo. Três Pessoas eternas, que existiram desde todo o sempre, e não terão fim. Elas são absolutamente iguais entre si. O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. E essas três Pessoas realmente distintas formam um só Deus. Nisto consiste o dogma da Santíssima Trindade.
Deus criou o universo invisível — os anjos — e o visível, isto é, as criaturas materiais inanimadas ou animadas. Criou também o homem. Mas o modo pelo qual as pessoas da Santíssima Trindade procedem uma da outra nada tem de comum com o que a Igreja chama de criação, ou, mais precisamente, empregando a expressão consagrada pela Teologia: a criação ex nihil, isto é, do nada.
Com efeito, o primeiro sentido de “criar” é dar existência a um ser do qual todos os elementos constitutivos não existiam anteriormente. Um pintor não cria, pois não dá existência à tela, nem à tinta, nem aos outros elementos constitutivos de seu quadro. Sua ação se limita a confeccionar com meios preexistentes um ser novo, que é o quadro.
Assim, o conceito de criação é essencialmente oposto ao de “geração”, que indica as relações entre o Pai e o Filho, e o de “processão”, que indica as relações do Pai e do Filho com o Espírito Santo. Acentuamo-lo para melhor fazer ressaltar a diferença entre a concepção criacionista da Igreja e a concepção panteísta comum a tantos sistemas religiosos e filosóficos contemporâneos.
Ensina a Igreja que as Três Pessoas da Santíssima Trindade, pelo fato de procederem uma da outra, têm a mesma natureza. De fato, se um ser procede do outro, recebe deste a sua própria natureza. Pelo contrário, um ser criado, pelo próprio fato de ser tirado do nada não pode ter a natureza do Criador. Enquanto o Criador é um ser eterno, absoluto, perfeito, que subsiste por si mesmo, a criatura é um ser finito, imperfeito, contingente. De si mesma, a criatura nada tem de comum com a natureza divina.
(Continua no próximo número)
* A especificação do ser em potência e ato é o princípio fundamental da ontologia tomista. Ato significa realidade, perfeição; ao passo que potência quer dizer não-realidade, imperfeição, mas capacidade para receber uma perfeição. A passagem da potência ao ato constitui o vir-a-ser, que depende do ser que é ato puro, imutável, e faz com que tudo seja e venha-a-ser.