Ao considerar o papel da Cristandade na história da humanidade, Dr. Plinio toma como base o pensamento de Leão XIII expresso na Carta Apostólica “Annum Ingressi”, de 1902. Conforme vimos no último número, para melhor compreensão do tema, ele passou a expor, de modo o mais sucinto possível, uma série de conceitos teológicos e filosóficos. Aqui continua esse estudo, para tratar em seguida do documento de Leão XIII.
O panteísmo afirma o contrário da doutrina católica: para ele, todos os seres existentes participam da natureza divina, não são senão essa mesma natureza mais ou menos transformada.
A História na concepção panteísta
Para certos panteístas, Deus é um ser pessoal que tem consciência de sua própria existência. Para outros, é um ser impessoal, identifica-se com o próprio universo, o cosmo, a natureza. Em todos os sistemas panteístas, porém, afirma-se que em certo momento houve um desastre no ser divino e, em conseqüência, sua natureza sofreu uma degradação em algumas de suas parcelas, dando origem ao homem e aos diversos seres dos três reinos: animal, vegetal e mineral. Trata-se de remediar essa catástrofe regenerando todos os seres, e elevando-os novamente ao nível do qual decaíram.
Os meios por eles indicados para apressar essa regeneração variam quase ao infinito: ritos mágicos ou cabalísticos, exercícios mentais, etc. Essa regeneração é paulatina e inelutável; é uma evolução. A História é, pois, para os panteístas, uma perpétua transformação de tudo, um reerguer-se constante de todos os seres, rumo a um estágio de perfeição outrora perdido. Quando essa evolução tiver realizado toda a sua obra, o homem, e nele todo o universo do qual é como que uma súmula ou compêndio, estarão divinizados.
O evolucionismo histórico
Muito afim com essa visualização panteísta da História é a evolucionista, marcada, todavia, por um cunho mais materialista.
Segundo o evolucionismo histórico, o homem não intervém senão subsidiariamente na sucessão dos fatos, que é obra do determinismo e do fatalismo. A natureza não tem elementos fixos e imutáveis, nem a ordem natural repousa sobre princípios perenes. A posição do presente em relação ao passado é sempre de ruptura e negação.
As crises que nesse desenvolvimento sacodem o mundo são derivadas de fatores puramente técnicos, materiais. Os fatores morais e espirituais são secundários no curso dos fatos. Cada ciclo histórico existiu no seu momento, teve o seu papel, e depois foi abolido, porque sua hora passou. Daí ser inevitável a contínua destruição de tudo quanto o passado edificou, construindo-se uma ordem de coisas oposta à anterior, a qual, por sua vez, será substituída depois, demolindo-se tudo quanto agora está sendo erguido.
O mundo vive, portanto, em irresistível (r)evolução, que se desenvolverá ao infinito ao longo dos milênios. Nesse caminhar da História, a humanidade atingirá uma idade de ouro, na qual o homem poderá realizar a sua perfeição intelectual e física.
O caráter basicamente ateu e materialista do evolucionismo é evidente, apesar das tentativas, em especial do Pe. Teillard de Chardin, de “batizá-lo”.
De passagem cumpre registrar a profunda afinidade entre a concepção evolucionista da História e a marxista-hegeliana, bem como a nazi-fascista, menos conhecida.
São, portanto, visões da História que se situam nas antípodas da doutrina católica.
A História do ponto de vista católico
Toda outra é a concepção católica da História: não pode deixar de levar em conta a existência de um Deus único, puro espírito, perfeitíssimo, onipotente e eterno, criador de todas as coisas, e de Jesus Cristo, Homem-Deus, “por Quem todas as coisas foram feitas”.
Havia um plano da Providência para os homens, considerado em função da natureza humana. Com o pecado original de Adão e Eva, o homem perdeu aquele equilíbrio das potências da alma com o qual fora criado. Dependente da graça divina para querer e praticar o bem, a humanidade passa a balançar durante a História entre épocas de soerguimento e de decadência, segundo a aceitação ou a recusa das graças concedidas por Deus.
Há ocasiões de uma decadência tremenda, em que o homem chega a uma incapacidade quase total de discernir entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal. Introduz-se a desagregação no mundo, explodem desordens, domina a intranqüilidade e vale a lei do mais forte.
Nos tempos de correspondência, a virtude é favorecida, reina a moralidade, a lealdade, a justiça, a caridade, os mais fracos são defendidos, o trato entre os homens se torna mais doce e fraterno, a sociedade se aperfeiçoa. Na época anterior à Era Cristã, só o povo hebreu se aproximou às vezes dessa perfeição.
Cristo apareceu no mundo como uma luz, para dissipar as trevas. E, na ordem das realidades visíveis, a vitória da luz consistiu na instauração da civilização cristã que, ao tempo de sua integridade, embora com as falhas inerentes ao que é humano, foi autêntico Reino de Cristo na terra: as relações entre o homem e a sociedade, a organização política, a economia eram regidas pela lei de Deus.
“O Juízo Final” (Hôtel-Dieu de Baune): Quando soarem as trombetas anunciando o fim da história terrena, ter-se-á cumprido o plano de Deus para a humanidade
O Espírito Santo sopra continuamente sobre as almas de todos os fiéis, ao longo da história da Igreja. É esta ação que torna o homem capaz de atos morais aos quais a sua natureza normalmente não poderia se elevar.
No fim do mundo, que será também o fim da História, ver-se-á que o plano de Deus para a humanidade foi cumprido de modo cabal e perfeito.
Essas são as noções a se ter em conta, ao passarmos aos textos de Leão XIII.
Um último esforço do Pontífice no serviço de Deus
A Carta Apostólica “Annum ingressi” é, ao que parece, o mais importante dos documentos de Leão XIII sobre a História. Os demais textos do Pontífice servem para esclarecê-la ou completá-la. Dentre esses, sobressaem por sua importância as Encíclicas “Saepenumero considerantes”, “Humanum genus” e “Tametsi futura”.
Na “Annum ingressi”, depois de uma introdução em que manifesta seu agradecimento a Deus pela longevidade que lhe concedeu, e pela inesperada duração de seu pontificado, Leão XIII afirma seu propósito de empregar no exclusivo serviço de Deus os seus derradeiros anos e últimos alentos.
Externa depois seu agradecimento ao Episcopado católico pelas “preclaras e múltiplas provas de religioso obséquio” que lhe deu no decurso de seu pontificado, e mais especialmente durante o ano jubilar . Esta união dos Bispos de todo o orbe católico com o Romano Pontífice, “centro e sustentáculo” de todo o Episcopado, é particularmente importante no início do século XX, em razão das “forças hostis” que, com o intuito de “abalar e arruinar a grande obra de Jesus Cristo, combate a Igreja num duplo front: no campo filosófico e teológico, procurando “destruir na ordem intelectual o tesouro da doutrina celeste”; no campo social, “subvertendo as mais santas, as mais salutares instituições cristãs”.
Ela está na origem da “avalanche de preconceitos, de falsos sistemas e de erros” que penetram “a mancheias no seio da multidão”.
Quantos meios pérfidos são empregados para perder as almas, “quantas ciladas se arrumam em torno das almas crentes”, exclama o Papa, quantas tentativas de embaraçar as atividades católicas com o intuito de “enfraquecer e, se possível, tornar nula a ação benéfica da Igreja”.
E enquanto se desencadeia essa dupla ofensiva no terreno ideológico e social, os adversários da Igreja escarnecem dela, acusando-a de decrepitude, por não poder mais opor diques às paixões humanas desencadeadas. Acusação injusta, pois, se a Igreja não desenvolve toda a fecundidade de sua atuação, é porque de todos os lados se cerceia sua ação.
A lei histórica desprezada
Esse panorama patético faz pensar em Jesus Cristo manietado e alvo de escárnio. O Papa reconhece que a tristeza desse panorama não condiz com os sentimentos de alegria próprios ao ano jubilar. Mas “as graves provações da Igreja” e “as condições da sociedade contemporânea”, que caminha para a ruína, não comportam linguagem festiva.
A sociedade contemporânea se encontra nessa triste situação, porque desprezou “uma lei da Providência confirmada pela História”, de que “não é possível solapar os grandes princípios religiosos, sem solapar conseqüentemente as bases da ordem e da prosperidade social”.
Esse estudo é o testamento de Leão XIII
O objeto dessa Carta Apostólica é estudar a confirmação dessa lei pelos fatos, analisando “em sua origem, em suas causas, em suas múltiplas formas” a ação implacável movida contra a Igreja.
Estas graves considerações só podem desalentar os pusilânimes. Aos espíritos de têmpera cristã, servem para “recuperar alento, reabastecer-se na Fé e coragem”, pois têm uma utilidade relevante: “apontam o remédio”, para a tristíssima situação do mundo.
De outro lado, podem atrair para a Igreja “os dissidentes e infelizes incrédulos”, pois fazem compreender melhor a Religião Católica.
Assim exposto o objeto da Carta Apostólica, Leão XIII conclui: “Que essas palavras ressoem como o testamento que nós, estando perto da eternidade, quisemos deixar à humanidade, com o nosso mais afetuoso desejo de fazer bem aos povos” .
Apesar disso, a “Annum Ingressi” é dos documentos menos conhecidos de Leão XIII. Sua difusão foi, por exemplo, incomparavelmente menor que a da Rerum Novarum, da Aeterni Patris, da Libertas e de outros documentos desse grande Pontífice. Os poucos que a citam às vezes dão-lhe até uma designação imprópria. No Brasil, figura ela com o título “Sobre a Igreja Católica”, com o subtítulo Parvenu. A edição da Bonne Presse de Paris (Actes de Lion XIII, vol.VI) dá-lhe também o título Parvenu à la 25 année.
Foi com esse nome que o “testamento espiritual” de Leão XIII parece ter passado para a posteridade, e não, como seria normal, com o título do texto oficial latino, publicado em 1903 na Acta Leonis XIIIPontificis Maximi.¹
A Igreja, a melhor amiga e benfeitora
Bastaria o fato de Leão XIII ter dado a esse documento o caráter de testamento espiritual, para lhe assegurar um relevo, não só na História da Igreja, mas na própria História Universal.
Acresce que essa Carta Apostólica não deve ser tida apenas como um dos documentos importantes de Leão XIII, mas é como que a chave de cúpula de todos eles. Com efeito, ao longo de seus anos de pontificado, Leão XIII teve o evidente objetivo de realizar, em suas diversas Encíclicas, uma obra doutrinária una, que equivalesse a uma verdadeira tomada de posição do Papado ante a dupla ofensiva — no plano das idéias e dos fatos — desferida em seu tempo contra a Igreja, como ele afirma.
Diante desse assalto contra a Cidade de Deus das doutrinas mais diversas, mas intimamente lidas entre si, Leão XIII resolveu opor uma longa e homogênea contra-ofensiva: “Desde o início [do Pontificado], propusemo-nos a trabalhar constantemente para reparar os danos infligidos à Igreja pela Revolução e pela impiedade… E como os inimigos se esforçam por subtrair à Igreja por todos os modos, toda a influencia social, e por torná-la com toda sorte de ardis, suspeita e como que inimiga, nós, de nossa parte, fizemo-la ser vista sempre como é na realidade, a melhor amiga e benfeitora dos príncipes e dos povos”. Nesta contra-ofensiva, as Encíclicas ocuparam, é claro, lugar de relevo em todo o seu Pontificado.
(continua)
1 Os documentos vaticanos, como por exemplo, a Encíclica “Pacem in terris”, de João XXIII, citam essa Carta Apostólica de Leão XIII com o seu título correto, de “Annum ingressi”.