Monte Saint-Michel, França

Numa conferência pronunciada na década de 60, Dr. Plinio ana­lisa duas concepções de vida, duas ordens de valores profundamente diversas: a católica e a anti-católica moderna. E pro­cu­ra mostrar que, acima das apa­rências, a razão profunda da oposição entre ambas é de caráter metafísico-religioso. Es­ta é a causa fundamental da di­visão dos espíritos. Oferecemos nestas páginas excertos dessa conferência.

P ode uma maneira de enca­rar os problemas do Universo encerrar uma ques­tão religiosa?

Considerando a Criação, pode­mos nos perguntar por que Deus, tendo em si toda a plenitude, desejou criar a imensa quantidade de seres que com­põem o universo.

Sendo infinitamente perfeito, não precisava criá-los. E se é verdade que não havia nenhum motivo que o impedisse de dar existência ao cosmos, de outra parte razão alguma existia que O obrigasse a fazê-lo. Em sua bondade e sabedoria infinitas, Deus assim o quis. E então, com que de um jorro, uma quan­tida­de in­contá­vel de se­res foi por Ele produzida.

Deus Nosso Senhor, além de ter em si todas as perfeições, vê tam­bém em si todos os graus de perfei­ção pos­síveis. Seu intuito, ao criar tão gran­de número de seres, foi fazer com que esses seres não só espelhassem a sua perfei­ção, mas a reproduzissem nos mais variados graus.

Assim se explica o caráter hierár­quico que Deus im­primiu ao universo. Esses graus de perfeição espelham convenientemente a Deus.

Não podia Deus criar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Não nos parece que esta questão possa ser con­siderada como objeto de uma opi­nião unânime dos filósofos, mas somos muitíssimo propensos a pensar que isso seria metafisicamente impossível. Deus criou o universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralida­de, de outro pela sua hierarquização, espelhassem de modo conveniente a per­feição divina.

A razão de ser da criação consiste, portanto, em dar glória a Deus, espelhando de modo completo e pleno as perfei­ções que n’Ele existem.

Essas considerações são importan­tes para a exata compreensão do que seja a “causa católica”. Poder-se-ia conceituá-la como sendo o ideal que visa a fazer com que a Criação dê gló­ria a Deus, considerada entretanto a Criação em seu todo, e não somente em um ou outro de seus aspec­tos parciais. É o conjunto das famí­lias, das cidades, das nações, da humanidade, e, em última análise, do universo inteiro, que se trata de fazer com que dê glória a Deus.

O princípio da unidade na variedade e suas leis

De acordo com a escolástica, a be­leza consiste na unidade posta na va­riedade. Julgamos um objeto belo quan­do seus elementos variados formam um todo uno. Os seres fragmen­tados, sem unidade, não têm nem be­leza, nem capacidade de atração. É a unidade que dá beleza aos seres, é ela que dá o valor por seus elementos diversos e variados. Portanto, a uni­da­­de é a forma da beleza; e a variedade é a sua matéria, elemento secundá­rio mas indispensável da beleza.

O característico é um sinal distintivo da variedade autêntica: por exemplo, um andaluz típico (foto ao lado) desperta um movimento de simpatia e admiração por suas inconfundíveis peculiaridades

De certo modo, cada ser tem em si essa unidade e essa variedade. É fácil percebê-lo em todos os seres concretamente considerados. Exami­nemos, por exemplo, a alma huma­na. Verificamos que ela tem inteli­gên­cia, vontade e sensibilidade. Eis a va­riedade na alma humana. Mas esta variedade está posta na unidade da pessoa do homem.

O princípio da unidade na varie­dade tem suas leis, que consubstanciam o que chamamos de estética do universo.

No estudo dessas leis encontra­mos a explicação de muita coisa da Idade Média que nos encanta.

Analisemos, em primeiro lugar, as leis da variedade.

Lei do caráter típico

Para bem entendermos essa lei, va­mos servir-nos de um exemplo. To­memos uma sala com vários objetos: poltronas, quadros, lustres, tapetes, cortinas. Aí está a variedade de elementos. Em que condições, entretan­to, será autêntica essa variedade?

Só o será quando cada um dos obje­tos for muito tipicamente, muito ca­racteristicamente ele mesmo. As pol­tronas devem ser tipicamente elas mesmas; os quadros devem ser carac­teristicamente eles mesmos. Diga­mos que todos esses objetos fossem feitos de uma única substância — a ma­té­ria plástica, por exemplo — e que seus formatos não diferissem entre si como deveriam, parecendo-se o lustre com a poltrona e a poltrona com o lustre: não teríamos variedade. O ca­racterístico é, pois, um sinal distintivo da variedade autêntica, é nele que a verdadeira variedade se realiza.

É essa a razão pela qual tanto nos maravilhamos com aspectos ricos, ca­racterísticos e típicos que encontra­mos na organização política e social da Idade Média.

Por que, por exemplo, [ao conside­rarmos a Espanha] temos um movimento de simpatia e admiração para com um andaluz característico? É que nele estão muito nítidas todas as notas que o tornam diferente de um bis­cainho ou de um navarrês. Se nada houvesse senão o homem “standard” moderno, não haveria variedade. Jul­gamos bonito, na Espanha antiga, o soberano intitular-se “rei de todas as Espanhas”. Sim, porque cada uma de suas regiões era como que uma pequena Espanha, com sua arquitetura, suas danças, suas músicas, tudo mui­to característico.

Neste mesmo sentido, é muito interessante, na sociedade medieval, a diferença nítida que havia entre as classes sociais. Um guerreiro era ti­picamente guerreiro. Os monges, os comerciantes, os artesãos, os campo­neses, eram marcadamente aquilo que eram. Podemos imaginar uma rua de uma aldeia medieval: passa um nobre precedido de um cortejo, logo após um clérigo, depois um artesão, passa, por fim, um frade. O que torna esta cena interessante? É o fato de cada um desses elementos ser autenticamente ele mesmo.

Cortejo papal entrando na Basílica de São João de Latrão, em Roma: é no contraste entre o supremo poder pontifício e a humildade de seus inferiores que a variedade se reveste de toda a sua riqueza

O mesmo podemos admirar no es­­tilo gótico, que, sendo cheio de varie­dade, conserva uma profunda unida­de, e por isso é equilibrado e harmô­nico.

O necessário contraste para que a beleza seja mais completa

As diversas coisas devem também manifestar um certo contraste, uma certa oposição, para que sua beleza seja mais completa.

A Igreja Católica tem, em suas ins­tituições, muitas variedades que che­gam ao contraste. Imaginemos, por exemplo, um cortejo papal entrando no Vaticano. Notamos, desde logo, os Prelados da Igreja Oriental, com toda a pompa peculiar ao Oriente. Mais adiante, os frades franciscanos, vestidos de maneira paupérrima, com os seus simples buréis. Seguem os príncipes, representando a nobreza; mais atrás, os militares soberbamen­te fardados. Por fim, entra o Papa, rodeado de um fastígio de glória, enquanto humildes religiosas, rezando, inclinam-se à sua passagem.

Há magnífico contraste entre o Papa, que está no pináculo do poder, diante do qual todos se ajoelham, e um humilde irmão leigo, que protesta se alguém se ajoelhar diante dele. Essa oposição está cheia de harmonia. É precisamente nesse contraste, nesse extremo de aspectos antagônicos, que a variedade se reveste de toda a sua riqueza.

É doloroso verificar como, no mundo moderno, a beleza está mutilada pela uniformização.

Hierarquia cheia de diversidade e inteiramente harmônica

Quis a Divina Providência criar to­das as coisas hierarquizadas. Fazendo os minerais, os vegetais, os animais, os homens e os anjos, estabeleceu den­tro de cada uma dessas categorias uma imensa gama de graus intermediá­rios. Essa hierarquia, cheia de diversida­de, é ao mesmo tempo inteiramente har­mônica. Há uma infinidade de mati­zes entre os diversos graus, que faz com que neles não haja saltos bruscos.

Sem esses graus intermediários, aliás, o mundo seria agreste e inóspito. Imaginemos que o homem vi­ves­se num mundo em que só houvesse minerais, e que a Providência o fizes­se tirar daí o alimento indispensável ao seu sustento. Ele se sentiria mal, pois há um abismo entre o homem e os minerais. Porém, quando junto a si ele tem vegetais e animais, estabe­lece-se uma escala natural que produz nele uma sensação de bem-estar.

A hierarquia orgânica e cheia de gradações é agradável ao espírito ca­tólico, porque constitui uma unidade cheia de variedade. Esta lei da gra­dação, transposta para o campo po­lí­tico-social, produziu a sociedade me­dieval, em que as classes sociais formavam uma hierarquia suave, com uma infinidade de status  interme­diá­rios entre o vilão e o rei.

Consideremos de um lado um rei; de outro, um plebeu de baixa categoria; e, entre eles, toda uma gradação intermediária, de acordo com os prin­cípios de beleza que acabamos de expor. O rei e o plebeu se completam; a beleza do estado do plebeu vem, de certo modo, do fato de haver o rei, e a beleza do estado do rei vem do fato de haver plebeus.

Se só houvesse reis, e não plebeus, pouca significação teria ser rei. Pois é a existência do plebeu que dá ao rei um grande valor.

O espírito moderno não tolera o plano divino que estabeleceu a desigualdade entre as idades, aceita com tanta naturalidade pelas antigas gerações… (acima: pais e filhos, camponeses asturianos)

Tomemos o inverso. Imaginemos, numa botica medieval, o ourives trabalhando no lusco-fusco, algumas pe­dras preciosas aqui, um cálice acolá. Um pouco além, um agradável odor de saborosos quitutes, os móveis de carvalho, uma cançãozinha de criança. Em uma palavra, o bem-estar plebeu. Isto é evidentemente agra­dável; contudo, se o mundo todo fosse somente assim, seria sem graça.

Harmonia do movimento: elemento de formosura na Criação

Há ainda um outro interessante tipo da variedade: o da transforma­ção. Existe no mundo uma transformação constante, um movimento con­tínuo. Mas as variedades de movimen­to postas por Deus no universo são graduais, harmônicas, a exemplo das gradações da hierarquia que anali­sa­mos na lei anterior. Essa harmonia do movimento constitui um elemento de formosura na Criação.

Para exemplificar, consideremos o desenvolvimento da vida humana em um varão justo. O homem nasce, de­sabrocha com um movimento rico em harmonia na adolescência, e nobremente se torna maduro; envelhece em dignidade e, quando Deus chama a sua alma, é como que a colheita de um fruto precioso, que vai ser levado para o Céu. É uma bela trajetória.

No entanto, o que quer o espírito moderno? Ele pretende que o ho­mem deva ser mocinho até cair morto. Arranjados ou pintados, todos de­vem parecer ter a mesma e jovem idade.

Não se tolera o plano divino, que estabeleceu a desigualdade nas ida­des. Quando, entretanto, é forçado a reconhecer a sua existência — que não pode ser, aliás, objeto de contesta­ção — o espírito moderno procura fazê-lo com brutalidade, des­conhe­cen­do as gradações entre as ida­des, e desprezando a velhice que pa­ra nada serve, já que nada produz!…

Pode-se concluir isso observando a vida de uma família antiga e de uma família moderna. Na primeira, reúnem-se em uma mesma sala os avós, os pais, as crianças, os paren­tes, os amigos; as mais variadas ida­des convivem juntas, conversando: variedades na unidade. Na família moderna, se os pais promovem uma recepção, os filhos não devem comparecer. Se estes dão uma festa, os pais — e sobretudo a mãe — devem ausentar-se… Os pais são chamados pelos filhos de “os velhos”, e não querem com eles ter maior convívio.

(Continua no próximo número)