sábado, octubre 5, 2024

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O caráter militante da Igreja

A História, estudada de modo científico e imparcial, derruba os preconceitos levantados durante dois milênios contra a Igreja. Este é o ensinamento de Leão XIII, analisado por Dr. Plinio num trabalho inédito, cuja publicação continuamos aqui. No trecho hoje transcrito, ele comenta a guerra movida contra a Igreja pelo demônio e o mundo, e o caráter militante do catolicismo.

Mostramos os objetivos e os anelos de Leão XIII com o desenvolvimento da historiografia católica, no tocante a seu aspecto apologético.

Num sentido mais abrangente, o Pontífice considera a História como “magistra vitae et lux veritatis” (“mestra da vida e luz da verdade”), como afirma no Breve Saepenumero Considerantes. Nesse mesmo documento, dá ele algumas vistas históricas de conjunto, salientando como orientam bem os espíritos. Se, como vimos, esse Breve se voltava de modo especial para a Itália, a AnnumIngressi se ocupa em mostrar não apenas a história italiana, mas a de toda a civilização cristã como “magistra vitae” – mestra da vida.

O Breve Saepenumero é, pois, desse ponto de vista, apenas um importante passo no caminho em que a Annum Ingressi será o termo final.

Posto em evidência o pensamento de Leão XIII sobre a legitimidade, a necessidade e a nobreza da História como instrumento da Igreja, como mestra da vida, dando ao homem uma explicação do passado e uma base para a solução dos problemas do presente, consideremos o panorama histórico exposto pela Annum Ingressi.

Divisão geral da Carta Apostólica

Concluída a parte introdutória da Carta Apostólica, Leão XIII passa à demonstração de sua tese: “Segundo uma lei da Providência, confirmada pela História, não é possível calcar aos pés os grandes princípios religiosos, sem solapar conseqüentemente as bases da ordem e da prosperidade social”.

O Pontífice expõe, então, as grandes verdades filosóficas e teológicas nas quais se funda a concepção cristã da História. Por elas se explica a luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, a qual, desde os primeiros até os últimos dias da humanidade, sem jamais cessar, enche os anos, os séculos e os milênios.

Em seguida, mostra como se realizou esta luta nos acontecimentos, traçando um grande quadro de conjunto da História da Igreja e da Cristandade, à luz da Filosofia e da Teologia. Narra a crise da civilização ocidental cristã, e mostra que a ruptura crescente dos europeus com a Igreja é a causa da imensa crise em que a Europa se debateu no século XIX. É a demonstração da “lei da Providência na História”, enunciada na parte introdutória.

Leão XIII define, depois, a missão imposta por Jesus Cristo à Igreja, isto é, a salvação das almas. Para cumprir tal missão, é inevitável que a Igreja entre em choque com as paixões humanas desregradas, e sofra a guerra, essencialmente injusta, movida contra ela pelos adversários de sempre, quer dizer, o demônio e o mundo. É a continuação da guerra feita a Jesus Cristo.

São Paulo
São Pedro

Distinguindo a Igreja militante

Afirmando que “a Santa Igreja de Cristo teve de combater, em todos os tempos, contradições e perseguições pela verdade e pela justiça”, Leão XIII continua a exposição, enunciando uma verdade encontrada com muita freqüência nos documentos do magistério eclesiástico, que tem suas raízes na Sagrada Escritura e é do conhecimento corrente dos fiéis.

Sim, pois o Catecismo [de São Pio X] ensina a distinguir a Igreja Militante, existente na terra, da Igreja Padecente, formada pelas almas do Purgatório, e da Igreja Gloriosa, constituída pelas almas dos justos que já se acham no Céu. Para compreendermos o nexo entre esta verdade e os horizontes desvendados na Annum Ingressi, devemos considerar os modos pelos quais a Igreja, enquanto sociedade visível, dotada de fins definidos e de órgãos próprios, realiza seu caráter militante.

A revolta das paixões desregradas

Antes de tudo, notamos que ela o realiza na pessoa de cada um de seus membros.

Durante a vida terrena, o homem se encontra em estado de prova, e de luta. Com efeito, Deus o criou, a cada um, para a bem-aventurança eterna no Céu. Mas, a fim de preparar-se para essa felicidade, bem como para merecê-la, o homem deve praticar nesta vida a Lei divina, acrescida de todos os preceitos eclesiásticos.

Contra tal observância levanta-se um primeiro obstáculo nas paixões desregradas: o orgulho, a inveja, a avareza, a luxúria, a gula, a cólera e a preguiça. Daí São Paulo escrever: “Encontro, pois, em mim esta Lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal. Deleito-me na Lei de Deus, no íntimo do meu ser. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?…” (Rm 7,21-24).

Dois odientos inimigos: o demônio e o mundo

Outros obstáculos provêm de dois lados: as tentações do mundo e as seduções do demônio: “Sede sóbrios e vigiai”, diz São Pedro. “Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (1Pd 5,8).

Para vencer tantos adversários interiores e exteriores, deve o homem lutar rudemente, e esta luta é de tal maneira o sentido profundo de sua vida, que São Paulo define toda a existência humana como uma prova. Tudo se resume na exclamação de Jó: “Militia est vita hominis super terram” — “a vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7,1).

Cada membro da Igreja é, pois, militante por definição, na esfera mais circunscrita e mais íntima de sua existência individual, isto é, na luta travada dentro de si mesmo — ignorada por todos e presenciada só por Deus, cujo olhar sonda o coração e os rins (Sl 7,10) — e por suas ações exteriores, para vencer os obstáculos que lhe detêm o passo no caminho para o Céu.

Mas o caráter militante da vida de cada fiel não poderia ser considerado apenas neste âmbito, e como mero esforço para a salvação individual.

Vivendo em sociedade, o católico deve exercer seu caráter militante ao zelar pela salvação do próximo: seja enquanto membro de alguma associação religiosa, seja no campo especificamente temporal (ao lado, uma confraria de leigos católicos na Normandia francesa)

Ação de todo católico na escala social

O homem é naturalmente sociável. Como tal, vive ele em contato contínuo com outros indivíduos ou grupos sociais, e com a grande coletividade, que é a sociedade humana, da qual é membro. Esse contato, ele o realiza na família, na profissão, nos lazeres, em mil diferentes ocasiões. Assim, forma relações que lhe impõem o grave dever de estado de velar pela salvação eterna do próximo. Esse é um segundo modo pelo qual todo fiel realiza em si o caráter militante da Igreja. Com efeito, velar pela salvação do próximo implica não só favorecer tudo quanto possa concorrer para o levar ao bem, como ainda em contrariar e combater todas as influências que o podem arrastar para o mal. Os pais, os patrões, os superiores, por exemplo, têm grave dever de velar pela salvação de seus filhos, empregados ou súditos. Se não fizerem uso, para esse efeito, da influência que a justo título sua situação lhes dá, sujeitam-se à merecida punição dos que não fazem frutificar os talentos confiados a eles por seu amo (Mt 25,14-30).

Mutatis mutandis pode-se dizer o mesmo das obrigações entre irmãos, parentes, colegas, etc. E até da obrigação dos filhos, alunos e súditos, de velar pela salvação de seus pais, mestres, patrões e superiores.

Dever de fazer apostolado

Há um terceiro aspecto da realização do caráter militante da Igreja em seus fiéis. Independente das obrigações individuais, e dos deveres de estado decorrentes, para o fiel, da situação que eventualmente ocupe na sociedade temporal, é ele obrigado a fazer apostolado.

Esta obrigação lhe vem do simples fato de ser católico, e pode ter por objetivo a salvação de pessoas a que está vinculado por pertencerem à mesma Igreja, e até pelo fato ainda muito mais genérico de serem criaturas humanas. Em outros termos, enquanto membro de uma Igreja militante, o fiel é obrigado a militar por ela. Pio XI e Pio XII insistem muito sobre esse dever do apostolado, que toca a cada filho da Igreja, abrangendo uma esfera de ação certamente mais vasta que a dos deveres de estado decorrentes da situação de cada qual na sociedade temporal.

Não nos cabe entrar, aqui, no problema por vezes complexo de saber até onde vai essa obrigação. Mas, se um católico fizesse apostolado apenas no cumprimento de seus deveres de estado na sociedade temporal, sem jamais atuar fora desse âmbito, não poderia sentir-se bem com sua consciência. Faria abstração de que é membro não só da sociedade temporal, mas da Igreja, sociedade espiritual, o que lhe impõe também deveres de estado, um dos quais é tomar parte na luta pela conquista de toda a humanidade.

Obrigações dos grupos sociais

A sociedade temporal se compõe de grupos sociais: famílias, corporações, instituições, classes, municípios, regiões, estados, províncias, etc. Cada um desses elementos realiza certa parcela das funções da sociedade temporal. Nisto consiste o fim peculiar de cada qual, e deste fim lhe vem sua forma, atribuições específicas, direitos e deveres. Em uma palavra, sua situação dentro do conjunto.

A par do fim temporal, têm os grupos sociais a obrigação de militar pela Igreja?

Sem nos referirmos a associações de fim especificamente religioso, tais como Ação Católica, Congregações Marianas, etc., consideramos o caso daquelas com um fim especificamente temporal. Um clube de colecionadores de selos, por exemplo, tem a obrigação de se declarar católico e fazer apostolado? Desde que seja composto de católicos, não poderia ser laico. (Abstemo-nos de tratar dos grupos sociais religiosamente ecléticos, questão complexa, que exigiria um grande desenvolvimento.)

A Praça de São Pedro durante um Congresso da Ação Católica

Os modos pelos quais uma associação pode mostrar-se oficialmente católica são sugeridos pelas tradições de nosso passado cristão. Poderia, por exemplo: ter a imagem de algum Santo em sua sede; promover orações coletivas antes e depois das reuniões, pedindo a proteção divina para suas atividades; ter um padroeiro em cuja festa promova cerimônias religiosas; sufragar as almas dos sócios falecidos, etc.

Não queremos dizer que toda associação de católicos seja obrigada a essas atitudes, sob pena de ser laica. Trata-se apenas de exemplos. Porém, é necessário conformar-se, em tudo, com os ditames da Fé e da Moral ensinadas pela Igreja, e isto não só nas relações da sociedade com seus sócios e com terceiros, como ainda no modo de realizar suas atividades específicas. Estas devem se desenvolver segundo o espírito da Igreja, ser lícitas e, na medida em que sua natureza comporte, ortodoxas. E devem aproximar os homens de Deus.

Não há sociedade, por mais que seu campo pareça alheio a Igreja, à qual não se possam de algum modo aplicar estas normas. Não exemplifiquemos com entidades em que tal possibilidade é obvia, como a família ou a escola. Tomemos de novo uma sociedade filatélica. Os estudos de filatelia envolvem referências a episódios históricos, personalidades, costumes e instituições. Ainda quando sumárias, tais referências são suscetíveis de exprimir oposições, preferências, atitudes ideológicas. Os selos falam pelo que contêm e pelo que calam. Houve tempo no Brasil em que o laicismo chegou a banir os temas religiosos dos selos. Um filatelista católico julgará isto importante e o mencionará com o devido destaque.

Além disso, é certo que o católico pode encontrar, na filatelia, meios para se elevar até Deus. Essa associação, portanto, agirá bem se promover cursos, conferências, etc., que facilitem a seus associados a “elevatio mentis ad Deum” nesse campo.

As sociedades que assim agem fazem apostolado

Bem se compreende a utilidade de uma associação assim para a formação de seus membros. Trata-se de verdadeiro apostolado, que poderia até transpor o âmbito do quadro social, levando ao conhecimento do público tudo quanto no campo da filatelia o possa elevar a Deus. Essa associação, agindo assim, participa eficazmente, em seu campo e a seu modo, do caráter militante da Igreja.

Em resumo, as sociedades e outros grupos sociais, como pessoas coletivas, têm em relação à Igreja obrigações e possibilidades de ação idênticas, mutatis mutandis, às dos fiéis. Imagine-se o que não seria de um povo no qual todos os grupos — famílias, escolas, entidades culturais, recreativas, profissionais, econômicas, cinemas, rádios, livros, jornais, revistas, costumes regionais, sede social — fossem imbuídos de catolicismo na sua essência e ação! É indubitável que os obstáculos à salvação teriam caído ao nível mínimo, e a missão da Igreja se realizaria em condições ideais.

E um povo tão voltado para as coisas do Céu não deixaria perecer seus interesses terrenos legítimos. É uma questão sobre a qual exporemos adiante o pensamento de Leão XIII.

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