Se os indivíduos e os grupos sociais têm obrigação e possibilidades de fazer apostolado, o que dizer das nações? É uma pergunta que nasce da matéria exposta por Dr. Plinio, transcrita em nosso último número. A resposta que ele dá permite melhor situar a atuação da Igreja na História, e traz à tona as idéias de Estado católico e de Cristandade, tão bem desenvolvidas por Leão XIII.¹
Consideramos, aqui, a nação na plenitude de sua realidade, isto é, constituída em Estado soberano.
Em tese, a nação católica não pode constituir um Estado acatólico, ou seja, laico. Se o Estado não é senão a nação politicamente organizada, qualquer contradição entre Estado e nação é aberrante, pois fere o princípio de contradição, segundo o qual não se pode ser e não ser algo ao mesmo tempo.
Contra isso só se poderia objetar que, sendo o Estado uma entidade temporal, é radicalmente inapto a tomar posição no terreno religioso, que é espiritual. Pio IX condenou no Syllabus essa posição. Os argumentos da Igreja para justificar tal condenação são muito conhecidos, expostos que estão nos seus documentos oficiais e em numerosos outros escritos, como, por exemplo, os de Luigi Taparelli D’Azeglio e os de Victor Cathrein. Leão XIII trata largamente do assunto na Encíclica “Immortale Dei” e em outras como “Au milieu des sollicitudes” e “Cum multa”. Dispensamo-nos de reproduzir aqui todos os argumentos.
Assim como aos indivíduos, também a certas nações Deus confia missões providenciais, a exemplo do que fez com o povo Hebreu. O dever que elas têm de zelar pela Religião Católica foi reiteradas vezes assinalado pelo Papa Leão XIII e outros pontífices
(Na pág. ao lado, reis e profetas de Israel – vitral da Abadia de Westminster)
Sabe-se menos, entretanto, no que deve consistir um Estado oficialmente católico.
Aplica-se à nação o que se diz do indivíduo e dos grupos sociais
Na acepção plena da palavra, Estado oficialmente católico é aquele que reconhece como única religião verdadeira a Católica Apostólica Romana, conforma todas as suas leis e instituições com a doutrina católica, desenvolve suas relações com particulares e com outras nações segundo os ditames da Moral católica, e põe todos os seus recursos à disposição da Igreja para lhe facilitar a tarefa de conservar, incrementar e propagar a fé. Todas as obrigações que têm os fiéis e as pessoas coletivas constituintes da nação, tem-nas de modo correspondente, na esfera própria, o Estado, pessoa jurídica suprema da ordem temporal, que contém em si todas as pessoas naturais e jurídicas – de direito ou de fato.
Aplica-se, pois, ao Estado, mutatis mutandis , tudo quanto dissemos sobre as sociedades e grupos sociais. Essa noção está em consonância com numerosas passagens da Sagrada Escritura segundo as quais as nações são capazes de atos de virtude coletivos, ou de pecados, e, tanto quanto os indivíduos, recebem prêmios ou castigos de Deus. Santo Agostinho diz que elas, não podendo ser recompensadas nem castigadas na outra vida, recebem aqui mesmo o prêmio de suas boas ações e a punição de seus crimes. É neste sentido a palavra do Evangelho sobre os pecados coletivos do povo hebreu, e os castigos em que incorreria (Mt 24,15-21; Lc 13,34-35; Lc 21,20-24). Na famosa visão de Daniel (10,3-22), os Anjos protetores da Pérsia, Grécia e Judéia discutem entre si e oram aos pés de Deus, advogando a causa dos respectivos povos.
Por fim, assim como a Providência suscita certas pessoas para obras especiais, assim também há nações às quais Deus confia missões providenciais. O caso mais característico é o dos hebreus, mas há outros exemplos.
Blocos reais ou imaginários de nações
O mundo hodierno está dividido em vários “blocos”. Os mais notórios são, de um lado, o das nações livres, e, de outro, o da URSS e seus satélites². Segundo a “doutrina de Monroe”, também a América inteira formaria um “bloco”. Fala-se de outros blocos: o anglo-saxão, o latino-americano, o europeu, o pan-africano, etc. Todos esses “blocos” são constituídos (ou imaginados) segundo critérios étnico-culturais, lingüísticos ou geográficos. Só um deles é encarado do ponto de vista religioso: o grande bloco maometano, que se estende do litoral atlântico da África até a Oceania, abrangendo zonas geográficas e elementos étnicos e lingüísticos dos mais díspares.
Um “bloco” cristão teria sentido? Antes de responder a esta pergunta, são necessárias algumas considerações a propósito das obrigações do católico para com o próximo.
É fora de dúvida que o católico tem deveres de justiça para com todos os homens, e em todos deve ver um “próximo”. Entretanto, não se pode considerar igualmente próximo de todos, pois seus parentes, amigos, “domésticos”, conhecidos e benfeitores lhe são evidentemente mais “próximos” do que as pessoas com as quais não tenha senão o nexo genérico de união entre todos os homens.
O fato de duas pessoas serem filhas da Igreja cria entre elas vínculos, direitos e obrigações especiais? O católico é mais “próximo” de outro católico, do que de outro homem qualquer? Em que medida? Por que motivo?
Amar a Deus sobre todas as coisas é o primeiro dever do católico. O cumprimento desse preceito implica outro: amar sobre todas as coisas, abaixo de Deus, a Igreja Católica. Amá-la em sua doutrina, em suas leis, em seus sacramentos, em suas instituições, em sua hierarquia, em seus membros. A doutrina da Igreja é a própria Revelação feita por Deus, interpretada e ensinada pelo órgão que Jesus Cristo instituiu e que o Espírito Santo assiste para que jamais caia em erro; as leis da Igreja são feitas em rigorosa coerência com a Revelação, em virtude do poder de ligar e desligar; os Sacramentos foram instituídos pelo próprio Jesus Cristo para abrir aos homens o tesouro da graça formado para nós por seus padecimentos e sua morte infinitamente preciosos; suas instituições, modeladas com a assistência da graça por varões santos e doutos ao longo dos séculos, constituem o que há de mais benfazejo, sábio e nobre sobre a face da terra; sua Hierarquia e seus fiéis formam uma sociedade visível, fundada pelo Homem-Deus, a mais antiga, a mais gloriosa, a mais venerável das sociedades já vistas pelos homens. Mais. Ela é um corpo, Corpus Christi Mysticum , no qual todos vivem de uma seiva real, celeste e sobrenatural, que é a graça, participantes da vida divina por sua união mística com Jesus Cristo, a cabeça desse corpo.
Elementos de incomparável união entre os católicos
Desse primordial amor à Igreja decorre, para os católicos, um profundo amor entre si, tão inerente à sua situação religiosa que o próprio Jesus Cristo o apontou como a grande característica que os deve distinguir aos olhos do mundo pagão.
Tal amor é alimentado por um elemento de união dos mais vigorosos: a afinidade de idéias e de personalidade. Dois católicos, ainda quando de povos ou raças profundamente diversos, estão conformados no mais recôndito de sua alma pelos mesmos princípios, pela mesma moral, pela participação intensa nos mesmos ideais. Há entre eles o nexo de mil convicções e mil modos de sentir, mil aspirações e mil anelos em comum, que não são professados nem sentidos por quem não tem a mesma Fé.
Do amor primordial que os católicos devotam à Igreja resulta o profundo amor que manifestam entre si, alimentado pela comunhão de princípios, anelos e ideais…
Eles se alimentam, ademais, na participação de uma mesma luta. O fiel, o “bonus miles Christi” , deve ver em cada irmão um companheiro de armas, com o qual luta na mesma trincheira, sob a mesma bandeira, e a quem deve apoio, conforto, auxílio corajoso e leal, no próprio interesse da causa comum.
… Assim como pela veneração e obediência ao Papa, personificação da Igreja, cuja proteção galvaniza toda a Cristandade
(Acima, juramento da Guarda Suíça; à esquerda, multidão de fiéis aclama o Papa na Praça de São Pedro)
Quem é membro da Igreja? Segundo os dizeres de Pio XII (na Encíclica “Mystici Corporis”), são membros dela todos os batizados que “professam a verdadeira fé, sem terem se separado voluntariamente do organismo do corpo [místico], ou sem terem sido dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas” . E isto é assim mesmo para aqueles que se encontrem em estado de pecado mortal, excetuando os casos de cisma, heresia e apostasia. O pecado grave não os faz perderem de todo a vida sobrenatural (“conservam a fé e a esperança cristã”) , mas os priva da caridade e da graça santificante, tornando-os incapazes de mérito sobrenatural.
A alma em estado de graça tem uma participação da vida da Santíssima Trindade. A graça é um dom criado, mas muito superior à vida humana natural, mais ou menos como esta em relação à vida animal. Pode-se dizer que a dignidade de uma pessoa em estado de graça é maior que a de quem não a possui, como o homem é superior ao animal, o animal à planta, e esta ao ser inanimado.
A Cristandade
Ora, se se admite que o laço vital étnico é um elemento suficiente para vincular os homens num grande bloco, por cima das fronteiras nacionais, é preciso reconhecer que a participação na vida da graça tem de constituir um nexo muito mais profundo. Assim, as nações cristãs constituem um “bloco” pela própria ordem real e profunda das coisas.
Esse bloco tem, a uni-lo, a afinidade de mentalidades, instituições e costumes análoga à que une, no nível “pessoas”, os católicos individualmente considerados. Como os simples fiéis entre si, as nações católicas têm, portanto, o dever de se proteger umas às outras contra o infortúnio (acidentes, epidemias, calamidades), e contra a agressão injusta, externa ou interna.
Elas constituem, pois, de fato um “bloco” definido, e nitidamente diferenciado das demais nações. Diferenciado , dizemos, e não oposto . Uma nação cristã não negará solidariedade a uma nação infiel, mas considerar-se-á sempre mais obrigada aos deveres de solidariedade em relação às nações cristãs.
A solidariedade entre as nações cristãs atinge naturalmente sua mais alta expressão quando se trata da proteção da Igreja. E como a Igreja se personifica no Papa – ubi Petrus ibi Ecclesia –, a proteção do Papado é a mais típica e mais alta manifestação da atividade desse “bloco”.
A esse “bloco”, como chamá-lo? A melhor palavra é sem dúvida “Cristandade”, isto é, a comunidade dos Estados cristãos.
Como toda comunidade tem a tendência natural a se definir, a acentuar seus elementos essenciais e típicos, e passar do estado de nebulosa para o de corpo orgânico, seria natural que essa família de povos formasse uma estrutura temporal supra-nacional. Foi o que a Cristandade procurou realizar, na Idade Média, com a fundação do Sacro Império.
O caráter militante da Igreja realizado nela mesma
Vimos até aqui como a Igreja marca com seu caráter militante, em todas as esferas, desde a particular até a internacional, a vida das sociedades temporais cristãs. Consideramos os fiéis e o modo pelo qual realizam, na esfera temporal, quer como indivíduos, quer como elementos integrantes de grupos sociais e nações, o caráter militante do Corpo Místico de que são membros.
Falta vermos como a Igreja realiza seu caráter militante em si mesma, enquanto Poder Espiritual.
(Continua no próximo número)
1. O presente artigo faz parte de uma série na qual transcrevemos, em sua quase totalidade, um livro inédito no qual Dr. Plinio comenta o papel da Igreja como centro da História.
2. Tenha-se em vista que Dr. Plinio redigiu o presente trabalho no fim da década de 1940.