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Profundo carinho de mãe

Com o correr dos anos acentuava-se a soledade de Dª Lucilia. Aos poucos as pessoas de seu tempo iam sendo levadas pela voragem da vida. Como ela continuasse sempre igual a si mesma, um distanciamento inevitável se estabelecia em relação às gerações que iam surgindo: tinham estas os olhos voltados para a modernidade; ela colocara os seus na eternidade.

Além disso, uma progressiva dificuldade de audição foi contribuindo para aumentar seu isolamento. Mas sua inteira conformidade com a vontade de Deus a ajudava a suportar resignadamente esses sofrimentos.

“O seu relógio é o Plinio!”

Um conforto lhe ficava, e não pequeno. Era o crescente afeto de seus filhos, que assim procuravam aliviar-lhe o peso da cruz. Dª Lucilia retribuía empregando todo o seu tempo, não só para “aconselhar e aperfeiçoar”, mas para rezar cada vez mais por eles.

Certa feita, quando a família acabava de almoçar, chegou Dª Yayá, uma das irmãs dela. Ao entrar, disse num tom de muita intimidade:

— Como é? Vocês ainda estão almoçando?! Eu já acabei de almoçar há muito tempo!

Dona Lucilia tomava as refeições mais tarde, para acompanhar Dr. Plinio, pois ele seguia horários que não eram os do comum das pessoas. Por isso, Dª Yayá logo acrescentou:

— Lucilia, você podia pegar os relógios que há nesta casa e guardá-los todos.

— Mas, por que isso, Yayá? — indagou calmamente Dª Lucilia.

— Porque o seu relógio é o Plinio. O tempo inteiro você toma como ponto de referência os horários dele: é a hora de Plinio se levantar, a hora de Plinio sair, a hora de Plinio voltar, a hora de Plinio almoçar… De maneira que relógio para você não vale nada!

O comentário de sua irmã correspondia à realidade, em boa medida, pelo que Dª Lucilia o tomou com inteira naturalidade, respondendo apenas com um sorriso afável, como quem diz: “É isso mesmo…”

Para tal mãe, que levava a estima por seu filho a ponto de regular seu horário pelo dele, muito custou um período durante o qual ele teve de se ausentar inúmeras noites seguidas.

O empenho de Dr. Plinio em consolidar o grupo do «Legionário» e outras circunstâncias inevitáveis não raras vezes comprometiam a habitual «prosinha da noite», tão esperada por Da. Lucilia…
(Ao lado, a casa da Rua Timbiras, onde Dr. Plinio teve de morar por algum tempo)

Expectativa ansiosa

Sucedeu que, em razão de certas exigências da lei de inquilinato, foi preciso Dr. Plinio morar por algum tempo numa casa de sua propriedade, situada na Rua Timbiras. Por esse motivo, ele já não voltava para a Rua Vieira de Carvalho após as reuniões com os membros do “Grupo do Legionário”, nessa época realizadas na Rua Martim Francisco, no bairro de Santa Cecília. Ficaram assim suspensas, enquanto durou essa separação forçada, as “prosinhas” da meia-noite com Dª Lucilia.

Para tornar menos penosa a sua mãe a falta de sua companhia, Dr. Plinio telefonava-lhe todas as noites. Essas ligações, no entanto, eram em horas diferentes. Um dia Dr. João Paulo descreveu a seu filho a cena:

— Você precisa ver sua mãe à noite, à espera de seu telefonema.

— Mas, como assim?

— Ah! para ela, à noite, o acontecimento é seu telefonema. Um bom tempo antes de você ligar, senta-se numa poltrona, ao lado do telefone, e se põe a rezar, à espera de sua chamada. Porque assim que o aparelho soa, no primeiro toque ela quer atender. Fica, então, nessa expectativa por um tempo enorme.

Tais palavras encheram de emoção a Dr. Plinio, pois o fizeram perceber, uma vez mais, todo o imenso carinho com que o cercava sua querida mãe.

No alto de uma janela, um halo prateado…

Cessados os meses durante os quais o acontecimento da noite era, para Dª Lucilia, o telefonema de seu filho, bem podemos imaginar como passou novamente a esperar seu regresso para a habitual “prosinha”. Porém, o tempo disponível de Dr. Plinio ficara um tanto mais exíguo: a consolidação do pequeno “Grupo do Legionário” exigia dele um empenho total, em detrimento do convívio com sua terna mãe.

«Todas as noites eu a via no mesmo quadriculado, olhando o grupo que conversava na porta do Fasano. E os reflexos da luz da rua faziam cintilar furtivamente seu cabelo prateado…»
Ao lado, o prédio da Rua Vieira de Carvalho, onde morou Da. Lucilia; abaixo, interior do restaurante Fasano, na época em que Dr. Plinio o freqüentava com seus amigos

Em agosto de 1948 transferiu ele para o sexto andar da Rua Vieira de Carvalho, nº 27, a sede do mencionado Grupo. Todas as noites, terminada a reunião nesse local, descia com seus companheiros de luta para o Fasano, restaurante localizado bem em frente, do outro lado da rua. Iam comer algo antes de meia-noite, hora em que começava o rigoroso jejum eucarístico daquele tempo. Dona Lucilia ficava no quarto andar, aguardando pacientemente no salão o regresso dele. Enquanto as horas passavam, ela desfiava as contas de seu rosário, rezava suas novenas ou permanecia absorta em reflexões, seguindo seu filho com o coração.

“Ocupávamos, muitas vezes, uma mesa próxima a uma das janelas do restaurante”, contava Dr. Plinio. “Ela sabia a hora em que estaríamos lá e, da janela do apartamento, olhava em nossa direção…”

A conversa no Fasano, atraente e elevada, prolongava-se depois na calçada, até que partissem todos para suas casas. Mas, bem ao modo brasileiro, a despedida se arrastava com um comentário deste, um dito daquele… Assim, enquanto a prosa se espichava, Dr. Plinio, correndo maquinalmente os olhos pelo prédio em frente, divisava numa das janelas um halo de cabelos prateados emoldurando uma fisionomia estuante de afeto.

“Todas as noites, eu a via sempre no mesmo quadriculado, olhando o grupo que conversava na porta do Fasano ”, recordava Dr. Plinio. “Não sei por que, ela mantinha o salão no escuro, talvez para não aparecer, e os reflexos da luz da rua faziam cintilar furtivamente seu cabelo prateado. Aquela figura me comovia a um ponto que eu não saberia exprimir! Ainda hoje, quando me acontece de ir à Rua Vieira de Carvalho, olho com muitas saudades para aquela janela”.

Assim ficava ela à espera de que seu filho subisse para poderem conversar um pouco, entremeando às alegrias do convívio seus cuidados com ele e seus amigos. Certa vez, ao comentar como gostava de vê-los na calçada, aproveitou para aconselhá-lo a nunca se distraírem, pois notara que um carro quase atropelara um dos rapazes, por demais próximo à rua.

Doce proposta de mãe

Certa ocasião, Dª Lucilia fez a seu filho uma proposta tentadora: pedia uma mudança de horários que, no fundo, era um “roubinho” de tempo em favor dela e em detrimento dos rapazes do sexto andar…

— Meu filho — disse-lhe de modo afável — você, que é tão bom garfo, sempre janta e almoça em casa para me fazer companhia. Por que você não inverte seu programa? Jante fora com seus amigos e… à noite venha conversar comigo.

Era a doce proposta de um plano, arquitetado por certo nas incontáveis horas de solidão, em que o afeto pelo filho batalhador transbordava em desejos de convívio. A sugestão dela trazia implícita uma perplexidade, pois não entendia claramente por que motivo seu filho dedicava tanto tempo a seus amigos. Já que gostava muito de conversar com ela, bem podia favorecê-la com mais alguns minutinhos…

Mas os deveres de apostolado exigiam dele uma atitude inflexível. Dr. Plinio deu uma resposta a mais amável possível, deixando o assunto no ar. E, embora penalizado, não fez a mudança que ela desejava. Com sua serenidade invariável, Dª Lucilia continuou todas as noites sua paciente vigília enquanto esperava a volta dele.

Dr. João Paulo, que sempre teve o hábito de se deitar cedo, perguntava às vezes a sua esposa por que também não se recolhia. Ela respondia com alguma amável evasiva e continuava aguardando a “prosinha” com o filho. Num bilhete enviado de Santos por Dr. Plinio, este pitorescamente se refere à atitude que seu pai tomava em relação àquelas conversas em horas tardias:

30-VI

À querida Mãezinha, com um longo e saudoso beijo, envio muitas saudades.

Diga a Papai que agora, hora em que escrevo, são doze e meia da noite, hora de nossa prosinha e dos resmungos dele. Mando-lhe um abraço,

Plinio.

O seminário dos jesuítas, em Itaici

“De tanto pensar em Itaici, tenho a impressão de conhecê-lo!”

Entre as crescentes atividades do “Grupo do legionário”, ao qual se tinham somado novos elementos, estava um retiro anual, que Dr. Plinio nunca dispensava mesmo em meio às mais absorventes ocupações. De um destes, realizado no seminário dos jesuítas, em Itaici, em 1949, dá ele notícia a sua mãe, em carta transbordante de carinho:

Luzinha, minha flor,

Aí vão os tão almejados garranchos, para lhe dizer que vou bem, e passando uma temporada excelente. Com efeito, o lugar é admirável, o clima bom, e a comida ótima.

E a Sra., minha flor, como vai? E Papai?

Se houver telegramas, mande pelo Adolphinho. O resto da correspondência deixe ficar aí. Não quero amolação.

Um abraço para Papai. Para a Sra., minha Marquesinha, mil e mil beijos do filho que lhe pede a bênção.

Plinio.

Em resposta, Dª Lucilia conta a visita que fez à Fräulein Mathilde, então hospitalizada. Manifesta assim, mais uma vez, à antiga governante de seus filhos, a gratidão pela formação que lhes deu. Quase ao término da carta, revela o quanto Dr. Plinio estava presente em suas cogitações, de tal modo que lhe parecia conhecer os lugares aonde ele ia, sem nunca tê-los visto.

S. Paulo, 14-4-949

Meu filhão querido!

Tua cartinha, tão meiga e boa, foi recebida com o máximo carinho, alegria e… “mil gracias”! Espero em Deus, que, com teus bons amigos, continues a gozar deste bom repouso para ti, e [para] o telefone.

Fui ontem, com Rosée, visitar Fräulein Mathilde no hospital Sta. Catarina, e levar-lhe umas flores em teu nome. Ela ficou muito satisfeita, e pediu-me para que te dissesse muitas cousas boas em seu nome, que te repito com o teu habitual ta-ta-tá, e ta-ta-tal!

Fui hoje com teu pai à missa, e comunguei na igreja de Sta. Cecília. Fomos depois à da Boa Morte, onde fizemos a guarda ao Santíssimo.

Acabaste afinal, por pedir-me a correspondência que te envio. Deus permita que não traga motivos para dor de cabeça.

As saudades são tantas, que de tanto pensar em Itaici, tenho a impressão de conhecê-lo! Dou graças a Deus pelas boas notícias trazidas pelo Adolphinho, mas… estimo bem que venhas logo! Me fazes deveras uma grande egoísta… “mea culpa”.

Recomenda-me ao bom grupo todo, e recebe com minhas bênçãos, saudosos abraços, e muitos beijos de tua mãe extremosa,

Lucilia

* * *

Em breve novas separações, desta vez bem mais longas, haveriam de lacerar o maternal coração de Dª Lucilia. Impelido pelas conveniências de seu apostolado, empreendeu Dr. Plinio duas viagens à Europa, nos anos de 1950 e 1952, a fim de estabelecer contatos com movimentos católicos do Velho Continente.

Fruto das muitas saudades que tão prolongadas ausências motivaram é o grande número de cartas, felizmente conservadas, que Dª Lucilia escreveu a seu “filhão querido”, como veremos nos próximos artigos.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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