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O adversário

Conforme afirma Leão XIII na Carta Apostólica “Annum Ingressi”, a luta travada há dois milênios pela Igreja visa impedir que os homens sejam desviados da prática dos Mandamentos, e auxiliá-los a alcançar seu “destino sobrenatural”. Que adversário tem a perversa intenção de desviá-los?

No último capítulo, procuramos dar uma grandiosa visão do caráter militante das atividades da Igreja, e mostrar seus instrumentos lúcidos, vivos e ágeis para lutar pelo bem contra o mal, na peleja que Leão XIII tão eloqüentemente descreve. Luta que existiu “em todos os tempos”, como sublinha o Pontífice, não resultante de causas fortuitas, que poderiam cessar de um momento para outro, mas que nasce “necessariamente” da própria natureza das coisas.

Após havermos estudado um dos combatentes (a Igreja), analisemos agora o outro. Qual é ele?

Natureza decaída e demônio

Mostra Leão XIII que a ação da Igreja tem por primeiro obstáculo “as paixões que pulularam ao pé da antiga decadência e corrupção”. Essas paixões são “o orgulho, a cupidez e o amor desenfreado dos gozos terrenos”. Dessa tríplice raiz decorrem todos os “vícios e desordens” dos homens. Como tais paixões, vícios e desordens encontraram sempre na Igreja “a mais poderosa barreira”, resulta daí uma luta inevitável e inextinguível.

O outro adversário é o demônio, o “grande inimigo do gênero humano que, rebelde ao Altíssimo desde o início, é designado no Evangelho como o príncipe deste mundo”.

É nossa intenção estudar, neste capítulo, cada um desses inimigos, e suas mútuas relações. Posteriormente consideraremos a luta entre a Igreja e eles.

É mister, antes disso, tomarmos em consideração a doutrina católica sobre a criação do homem, sua elevação à ordem sobrenatural, sua queda e a Redenção. Do contrário, ser- nos-á impossível compreender a concepção de Leão XIII sobre o papel da Igreja na História do gênero humano. Isso nos leva a lembrar rapidamente os dados do Gênesis e a interpretação que lhes dá a Igreja.

Primitiva dignidade natural do homem

No corpo que formou com o limo da terra, Deus infundiu uma alma criada à sua imagem e semelhança (Gn 1,26). O homem foi criado, assim, como um ser composto de dois elementos: um espiritual e imortal, pelo qual ficou colocado “pouco abaixo dos anjos” (Sl 8,6), e outro material. Em razão deste último, o homem tem em sua natureza algo que o torna próximo dos seres inferiores, os animais, vegetais e minerais. Ele é, pois, um microcosmo que compendia em si, de algum modo, toda a criação, desde o anjo até a pedra.

O ser humano, que por sua natureza ocupava tão alto lugar antes da queda, não tinha em si as misérias que depois passaram a vexá-lo e afligi-lo. Sua inteligência, lúcida, ágil, vigorosa, não estava exposta a erro. Sua vontade, ordenada e forte, não sentia pendor para o mal. Sua sensibilidade, altamente equilibrada, não fazia nascer nele inclinações que não fossem inteiramente conformes aos ditames da razão.

Depois do pecado, as constituições pessoais naturalmente mais bem-dotadas nada são em comparação com a capacidade, a retidão e a força do homem antes da queda.

Para habitat de um ser tão eminente, destinou Deus as regiões paradisíacas do Éden, jardim de belezas e delícias que não desviavam, mas antes conduziam os homens até Deus.

Dignidade sobrenatural do homem antes da queda

Nada disto bastou à generosidade de Deus. Ele ainda elevou o homem a um grau de vida infinitamente superior, pois fê-lo participante da própria natureza divina (2 Pe 1,4).

A graça é um dom gratuito de Deus, no sentido de que é tão excelente que homem algum seria capaz, por suas próprias forças e virtude, de a merecer da justiça divina. Esse dom é sobrenatural, no sentido de que confere ao homem uma participação na própria vida interna da Santíssima Trindade, pela qual eternamente o Pai gera o Verbo, e do Pai e do Verbo procede o Espírito Santo. Tal dom sobrenatural é criado. Em outros termos, não existiu desde sempre, e recebendo-o, o homem não se torna Deus, e continua mera criatura.

O dom da graça foi dado por Deus também aos anjos. Se não o tivessem recebido, seriam inferiores ao homem elevado à ordem sobrenatural.

Adão e Eva foram elevados à ordem sobrenatural. Isto lhes dava a possibilidade de ver Deus face a face, o que, sem a participação da vida divina, ninguém alcança. As almas do limbo, por exemplo, não elevadas à ordem sobrenatural, conhecem a Deus pela inteligência, porém não O vêem face a face.

Os homens eram imortais, invulneráveis à doença, à dor, à fadiga, e tinham completo domínio sobre a natureza. Ao cabo de uma existência virtuosa e feliz no Paraíso terrestre, seriam elevados gloriosamente, e em vida, para o Céu.

O Pecado Original

Será supérfluo inserir aqui a narração, para sempre famosa, da primeira queda. Menos supérfluo seria, talvez, acentuar que o fruto proibido não é, nesta narração, um símbolo para encobrir o pecado de impureza. A generalidade dos teólogos católicos entende que se trata de uma fruta no sentido próprio e literal da palavra.

No Paraíso terrestre, a par de desfrutarem de qualidades naturais excelentes e de outros dons preciosísismos, Adão e Eva foram elevados à ordem sobrenatural, o que lhes dava a possibilidade de verem Deus face a face
(O Padre Eterno aparece a Adão, no Éden — iluminura medieval)

A malícia da sugestão da serpente a Eva, e desta a Adão, consistia em desconfiar de Deus, insinuando haver sido por receio de que os homens se nivelassem a Ele que lhes proibira comerem do fruto. Consistia também na desobediência, pois conduzia à transgressão da vontade expressa do Criador. E por fim, segundo uma interpretação muito penetrante, implicava em magia, pois o homem, pela virtude de um objeto material – o fruto – e de um ato material, isto é comer, tentava roubar poderes divinos.

Os efeitos da queda

Adão e Eva compendiavam em si todo o gênero humano, de que eram fonte. Assim, embora a culpa pessoal fosse só deles, os efeitos da queda recaíram sobre eles e sobre toda a sua descendência.

Antes de tudo, o homem ficou privado da graça de Deus, e se trancaram para ele as portas do Céu. Ademais, sua inteligência se obscureceu e ficou sujeita a erro. Sua vontade se debilitou, e sua sensibilidade desregrou-se, solicitando-o para o mal. A partir desse momento, passou ele a ser um ente dividido em si mesmo, como diz São Paulo.

Por fim, tornou-se sujeito à morte, à dor, à fadiga, perdeu o domínio sobre a natureza, e foi expulso do Paraíso para esta terra de exílio: “in hac lacrimarum valle”.

De filho de Deus, o homem se transformou em criminoso. Extinguiu-se nele a vida sobrenatural. Passou a ser um condenado à morte e à perda do Céu, um ser débil, enfermiço, fatigado, devastado interiormente por problemas e lutas cruciantes.

Antes da queda, o homem não experimentava a menor dificuldade em pensar, sentir, querer e agir de modo reto no tocante a Deus, a si próprio, ao próximo e aos seres materiais sujeitos ao seu domínio. Todas as suas forças interiores o levavam, sem relutância, a ver a verdade a respeito de tudo e de todos, a amar cada ser na medida em que merecia, a apetecer as coisas segundo a ordem natural pedia, etc.

Como Deus é infinitamente sábio e santo, queria do homem essa retidão, de sorte que nossos primeiros pais viviam na plena sujeição à vontade de Deus.

Ocorrida a queda, essa situação interrompeu-se. A fragilidade da inteligência, o desregramento dos apetites, a fraqueza da vontade levaram o homem a se enganar sobre qual seria o reto modo de pensar, querer, sentir e agir em relação a Deus, a si mesmo, ao próximo e a todo os seres. Mais ainda: levaram-no a abraçar muitas vezes, e conscientemente, o erro e o mal.

Daí, para o homem, uma situação de tal obscuridade que, se Deus não lhe revelasse a Lei, promulgando o Decálogo, ser-lhe-ia impossível conhecê-la inteiramente.

Tenham presente que, de si, o conhecimento da Lei é acessível à razão humana. Não se dá o mesmo com referência a todas as verdades teológicas. Por exemplo, se Deus não tivesse revelado a existência de anjos, o homem, com a mera luz natural de sua inteligência, não teria noção deles. Mas, quanto à Lei, poderia por sua inteligência vir a conhecê-la na íntegra. Como, entretanto, sua degradação o impede disso, Deus a revelou.

O mesmo se diga da observância da Lei. Ainda conhecendo-a, o homem é incapaz de a praticar íntegra e duravelmente. Poderá ser bom filho, bom esposo, bom pai, ou ser correto nos seus negócios. Nesses pontos conformar-se-á com a Lei. Mas sente uma tal relutância, em todo o seu ser, em obedecer a ela por inteiro, que não lhe será possível chegar a isso só com suas forças.

Depois do Pecado Original, o homem ficou sujeito às misérias e aos desregramentos de sua natureza decaída. Conheceu a dor, a doença, a morte…
(O morto entrega sua alma a Deus, iluminura das «Ricas horas do Príncipe de Rohan» )

Conhecemos até que ponto são fortes as leis da natureza. Em conseqüência da queda, neste admirável universo de seres animados e inanimados, que se movem com serenidade, ordem e força ao império do amor de Deus – “l’amore che muove il sole e le altre stelle”, diz Dante (La Divina Commedia , Paradiso) – só o homem, ápice do mundo visível, é um ser desregrado. E esse desregramento aplica à destruição todo o poder das energias naturais inerentes ao ser humano.

Daí o terrível “pulular” de paixões descrito na “Annum Ingressi”.

Os anjos rebeldes

A esse conjunto de forças de destruição, acrescenta-se outro fator: o demônio, que, “grande inimigo do gênero humano, rebelde ao Altíssimo desde o início, é designado no Evangelho como príncipe deste mundo”.

A respeito da existência de demônios e de sua ação malfazeja sobre o homem, o Antigo e o Novo Testamento são formais. Leão XIII pressupõe conhecido e aceito pelo leitor o que a Igreja, com fundamento nos Livros Sagrados, ensina sobre os anjos decaídos.

Os anjos são puros espíritos, criados por Deus antes do homem. São dotados, por sua própria natureza, de imortalidade, conhecimento intuitivo e lucidíssimo, vontade fortíssima. Em tudo são desiguais, pois cada anjo tem uma natureza própria. Tais desigualdades resultam na constituição de uma hierarquia, na qual os mais elevados governam os inferiores.

Segundo os desígnios da Providência, todos os anjos deveriam ser, como os homens, promovidos à vida sobrenatural da graça, estando, portanto, chamados a gozar eternamente da visão beatífica.

A prova

A Escritura não diz taxativamente qual foi a prova imposta por Deus aos anjos (ver, por exemplo, Ap 12,7-9). Más é certo que, antes de os admitir definitivamente à bem-aventurança eterna, o Criador exigiu um ato de submissão ao qual muitos deles não se sujeitaram.

Segundo certos teólogos, ofereceu-lhes a elevação à ordem sobrenatural. A aceitação desse dom altíssimo e gratuito acarretava, para os anjos, um grau de vida que não era inerente à sua natureza, e a esse título pedia uma especial humildade em relação a Deus.

Segundo outros teólogos, Deus lhes teria revelado que ia criar a humanidade santíssima de Jesus Cristo, ou a Santíssima Virgem, e teria exigido um ato de antecipada homenagem a esses dois altíssimos seres. Sendo a natureza angélica superior à do homem, isso constituiria para eles uma prova de especial humildade.

De qualquer forma, Deus quis deles um ato de amorosa submissão.

São Miguel e seus Anjos precipitam o demônio no inferno (gravura de Gustavo Doré)

Revolta e queda

Os que se recusaram submeter-se, pecaram por orgulho; manifestaram-se, ipso facto, desejosos de se nivelar com Deus, pois Lhe negaram a plena e suprema autoridade. Deus esmagou a revolta por intermédio do ministério dos anjos fiéis. Fez-se, assim, entre os espíritos que venceram a prova pela humildade e os que a perderam pelo orgulho, “uma batalha no Céu”(Ap 12,7).

Precipitados no inferno, os anjos rebeldes guardam em sua natureza toda a lucidez e força angélicas. Não obstante, tendo-se constituído em sede e foco de todos os defeitos morais, odeiam a Deus inteiramente. Odeiam, pois, o ser humano e todas as criaturas de Deus, odeiam todo o bem, porque Deus é a própria Bondade, e querem arrastar todos os homens ao pecado, ao vício, à eterna condenação.

O inimigo é um só

Estamos, portanto, em presença de dois fatores distintos: a natureza decaída e o demônio, que nos empurram para um mesmo fim.

Quais as relações entre ambos?

Leão XIII mostra-nos Satanás e seus satélites soprando nos homens o “desmedido orgulho e espírito de independência” a que normalmente nossa natureza já é propensa depois do pecado original. De fato, a Igreja ensina que o demônio recebe de Deus o poder de agir sobre nossa sensibilidade, exasperando nossas paixões desregradas, toldando com isso nossa inteligência e solicitando para o mal nossa vontade.

Assim, os efeitos do pecado original são, por si mesmos, poderosos aliados do demônio, e podem ser instrumentos sobre os quais ele age à maneira de um pianista sobre o teclado, para obter os sons – melhor dizendo, a cacofonia – que deseja.

Os efeitos do pecado original, que são desregramentos, não podem ter senão resultados desencontrados. O demônio, pelo contrário, é capaz de planos articulados. Ele pode receber permissão de Deus para tentar individualmente as almas, por meio de insídias sabiamente urdidas, assim como para suscitar escolas filosóficas, teológicas, políticas, sociais, econômicas, artísticas, capazes de empolgar multidões e perder nações inteiras. Pode, do mesmo modo, suscitar guerreiros, estadistas, legisladores que destruam ou subvertam nações, implantem leis iníquas, proscrevam todo o bem e favoreçam todo o mal.

Os homens morrem, o demônio não. Em tese, nada obsta que dure séculos, em determinadas condições, o poder de influenciar a fundo o desenvolvimento de um ciclo histórico, a formação e progresso de vícios e heresias, etc.

Essa ação será possível na medida em que Deus permita. Vencerá ou será vencida, na medida em que o homem queira ou não queira servir-lhe de instrumento.

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