Entre as diversas e esplêndidas características da arte medieval, que nunca me sacio de elogiar, há uma espécie de deformação que se reveste de uma seriedade, uma catadura, uma força e uma presença heráldica verdadeiramente magníficas.
Ora, algo parecido podemos encontrar nos profetas do Aleijadinho.
Em geral, homens feios. Porém, nada existe de mais belo, no Brasil, do que as célebres esculturas desse artista mineiro. São a sua obra-prima, considerada por todos os críticos modernos como filhas de inspiração medieval, embora a Idade Média há tempos já tivesse passado. São peças góticas, estupendas, que poderiam figurar sem demérito ao lado das imagens seculares que ornam as galerias e os nichos das maravilhosas catedrais européias.
Nesses personagens talhados em pedra-sabão, o Aleijadinho soube exprimir de maneira esplêndida o que deve ser um profeta. E a deformidade deles, como nas melhores produções medievais, não faz senão acentuar a expressão simbólica que o gênio artístico desejou imprimir na sua obra.
Caixas toráxicas largas, pescoços taurinos, pernas um tanto curtas, musculosas e atarracadas, os braços compridos. As cabeças grandes em relação ao corpo, as orelhas avantajadas. Os olhos, igualmente exagerados para o contorno das faces, denotam a magnitude da alma. Porque tê-los desproporcionais para o rosto, assim como a cabeça o é para o corpo, significa possuir tudo quanto é cognoscitivo maior do que o funcional. Detalhe que ressalta ainda mais a eloqüente representatividade das imagens.
Por sua vez, o desenho das barbas joga um papel peculiar na composição dessas figuras bíblicas: algumas volumosas, cheias, felpudas; outras, artisticamente talhadas, emoldurando os queixos proeminentes e vigorosos. Estas e aquelas simbolizando de modo extraordinário a força moral desses homens que atravessaram toda sorte de tormentas, de sofrimentos.
E todos aparentam uma saúde de ferro, física e, sobretudo, espiritual. Uma sanidade psíquica absoluta, objetividade completa, pensamento pão, pão, queijo, queijo; rudes e francos, paladinos da verdade sem simplificações nem relativismos. Homens dispostos a dizerem tudo a que foram destinados, ainda que o cumprimento de sua missão implique na luta e no holocausto da própria vida. Guerreiros dotados de extrema coragem, imbuídos do espírito profético no que este tem de mais elevado.
Gestos altamente expressivos, porque tocados por um vento também profético. Na verdade, nunca percebi vento animar tanto a pedra como nos profetas do Aleijadinho. É algo único e fantástico.
Se os olhos são grandes, fitam entretanto um ponto indefinido no horizonte, como o homem que traz a cabeça povoada de subidas cogitações. Contemplativos, acham-se na atitude de quem tirará dessas reflexões uma invectiva. Descansam da descompostura que acabaram de passar, e se preparam para a próxima. Instrumentos das recriminações divinas, polêmicos, determinados, movidos por uma superior certeza, nobres, sérios, sublimes.
Não há um deles que não seja, também, modelo de honra. Cada qual, a seu tempo, foi um enviado de Deus, com visões místicas, com “flashes” próprios, com todo o direito de transmitir às gentes as mensagens recebidas do Senhor dos senhores. Falavam, proclamavam, e suas vozes reboavam como o som de bronzes tangidos gravemente.
Nada neles procura se desviar para outra coisa que não seja a missão de divulgar a palavra divina. Nenhuma de suas virtudes é fingida, nenhuma dissipação em nenhum sentido. Vivem somente para o que foram criados. A honra do profeta é essa retidão integral, essa dignidade excelente, reconhecida pelos povos. Ele incute respeito.
Numa palavra, não conheço na iconografia católica figuras que exprimam tanta fé como esses profetas de Aleijadinho, que rugem um rugido eterno de pedra, hieráticos, imóveis, impassíveis. Figuras postas contra o firmamento, como se raspassem o Céu e tocassem quase em Deus, símbolos de um poder descido do alto.
Daí que não se poderia imaginar lugar mais propício para estarem. Encontram-se ali com uma tal ênfase, constituindo uma espécie de carrilhão em que cada um toca seu sino peculiar, e fazendo ouvir um conjunto que é só deles e de mais ninguém na História, que não se os concebe instalados em outro local.
Eles não ficariam bem dentro de uma igreja, de um templo, por mais colossal que fossem. Não. Dir-se-ia que a abóbada celeste é o único templo proporcional a eles, e tudo atrai para vê-los numa perspectiva do céu, para serem admirados em função das nuvens. Existem para o ar livre, para aquele descampado, ombreando as elegantes palmeiras imperiais que lhes servem de moldura.
Sem dúvida, uma obra-prima de encher a alma!
Resta a pergunta: como, na Minas do século XVIII, quando a arte gótica estava mais no seu fundo e na sua desconsideração no mundo civilizado, surge um gênio como o Aleijadinho, apoiado por uma certa equipe de homens de considerável senso artístico, e revive uma Idade Média que, a meu ver, foi a época áurea da arte?
Como explicar que naquele Brasil das colônias se deu essa restauração, antecipando o próprio “renouveau” da Idade Média que aconteceria na Europa do século XIX?
Aquela corrente artística então submersa, nas solidões brasílicas recobra vida, pelo indiscutível talento de um aleijado. E nos fundos do sertão mineiro, as maravilhas medievais renascem, alcançando uma expansão e um florescimento com raro esplendor. Como?
Profetas lapidados para o ar livre, para o descampado, tendo a abóbada celeste como templo, ombreando as elegantes palmeiras que lhes servem de moldura…
Penso que só há uma resposta possível: foi por uma ação da graça, uma disposição misteriosa da Providência, desejosa, talvez, de fazer luzir em outros panoramas outras tantas belezas artísticas inspiradas pela Igreja — filhas daquelas que levaram a Civilização Cristã aos seus mais rutilantes dias de glória.