Ao longo de sua História, a Igreja tem engendrado inú­meros talentos artísticos, com estilos e realizações tão diversos quanto belos e enriquecedores para a piedade cristã. Nessa constelação de talentos, porém, uma estrela sobressai pelo seu brilho mais intenso e atraen­te: o bem-aventurado Fra Angélico, com toda a justiça considerado o pin­tor católico por excelência.

Segundo se conta, Nossa Senhora lhe aparecia no momento de retratá-La, donde o caráter celeste das pinturas nas quais Ela está presente. São obras de um frescor sacral incompa­rável; nelas os personagens de certo modo transcendem as fraquezas da nossa natureza decaída e — não por defeito do artista, mas pela elevação de seu estro — se nos afiguram qua­se sem a marca do pecado original.

Rei da arte pictórica, ele é também o mestre do feérico, conferindo esplen­dor inexcedível aos mínimos deta­lhes de seus quadros, a ponto de nos dei­xar desnorteados de encanto e admiração. De acordo com os estudiosos de seus métodos, ele mesmo fabricava suas magníficas tintas, muitas ve­zes triturando pedras semi-precio­sas, cujo pó, misturado a outros elementos, forneciam-lhe as melhores cores de sua extraordinária palheta. Se ele sabia utilizar, assim, uma safira, um to­pázio dourado ou um rubi, com efei­tos tão prodigiosos, que matizes não seria capaz de criar se pudesse fazê-lo com matérias-primas do Paraíso?! E como seria no Paraíso um quadro de Fra Angélico? É algo de simplesmen­te inimaginável.

Embora já vivesse na Re­nas­cen­ça, pelo seu espírito foi um ar­tista ca­racteristicamente medieval. Seus afres­cos e retábulos são um reflexo fiel das almas que fizeram da Idade Média a época áurea da Cris­tandade. Retra­tam homens para os quais esta vida terrena é antecâmara da celestial. Ele reproduz em suas pin­turas pessoas imbuídas de uma luz, claridade e leveza ine­xistentes no cotidiano real, expres­são de uma ordem superior e transcenden­te. Numa pa­lavra, o sobrenatural está representa­do em todas as suas obras.

Inspirado sem dúvida pela graça di­vina, ele logrou pintar seus santos, “Ma­donnas” e Cristos irradiantes de um certo brilho que parece desprender-se da pró­pria carnatura dos perso­nagens. Essa luminosidade está pre­sente, de modo muito particular, nas virgens perpetuadas em ma­ravilho­sas composições por seu ma­gistral pincel.

A virtude da pureza, quando bem guardada, proporciona as condições excelentes para o triunfo do espírito sobre a matéria. A castidade perfeita nimba quem a pratica de uma glória especial: a da criatura humana vitoriosa em seu elemento mais nobre, pre­valecendo sobre o menos nobre. Na pessoa pura se estabelece uma or­dem pela qual as apetências des­re­gra­das da carne estão dominadas; ela é toda espírito, toda alma, toda transparente de luz.

Virgens reluzentes, como dotadas de um fulgor que lhes vem de dentro para forma, iluminando todo o seu ser: é a irradiação do espírito puro, da santidade transparente de luz

Assim Fra Angélico pinta suas virgens reluzentes, como dotadas de um fulgor vindo de dentro para fora e que ilumina todo o seu ser. Porque o espí­rito é claro, enquanto a matéria é opa­ca. A intenção do artista é exatamen­te representar essa irradiação do espírito. É o pintor das virgens.

E dos anjos.

Os célebres anjos de Fra Angélico  têm uma expressão tão límpida, tão ho­nesta, que estão prontos para qual­quer espécie de vassalagem. Tão for­tes e conscientes de si, que estão pron­tos para toda espécie de suzerania. Tão pacíficos, que são anjos da paz. Tão guerreiros, que são anjos do comba­te contra o mal. Todos os contrastes extremos e harmônicos se encontram neles, numa síntese magnífica, fruto de uma forma de temperança extraordinária e perfeita.

Tomem-se, por exemplo, os anjos re­presentados com instrumentos musicais. Todos refletem um movimento de alma para o alto, pronta a voar. Co­mo anjos, não sujeitos à ação da gravidade, enlevados, fazendo ecoar suas melodias e anunciando a quem os contempla uma mensagem simples, clara, singela, cujo significado entretanto vai muito além da sensação deliciosa passada pelo quadro. No fundo, remetem nossos pensamentos pa­ra Deus. Diante da trombeta de um deles, vem-nos a pergunta subcons­ciente: “Que música será esta?”, e  nossa atenção se volta para o alto, para o olhar divino fitado pelo anjo, para o qual a sua música parece se dirigir.

São assim os anjos, são assim os san­tos e as virgens de Fra Angélico: neles se nota sempre algo de diáfa­no, representação do sobrenatural, co­mo acima dizíamos. Mas, insistimos, esse diáfano não transpareceria do mesmo modo se os personagens re­pre­sentados não fossem muito temperantes, possuidores de um senso das harmonias prévio a tudo. A virgem é meiga e delicada, mas traz consigo uma roda de martírio, símbolo de sua fortaleza heróica. O santo é plácido e feliz, mas está aos pés do Crucificado, meditando na crudelíssima Pai­xão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O anjo está fazendo algo de grandioso, mas mantém-se sereno e inteiramente en­tregue à proclamação dele.

Anjos e santos que demonstram nas suas atitudes uma temperança, um  senso das harmonias e do sobrenatural prévios a tudo, como aqueles da alma que os pintou…

Ora, só alguém com igual tempe­ran­ça, com o mesmo senso das harmonias, dos imponderáveis e do sobrenatural poderia retratar seres assim. Daí podermos vislumbrar como era a maravilhosa alma de Fra An­gé­lico.