Comentando o filme “O homem que não vendeu sua alma” (¹) — sobre a vida de São Tomás Morus, martirizado em 1535, em defesa do primado do Papa contra as pretensões do Rei Henrique VIII — Dr. Plinio nos conduz por uma elevada análise da História.
Procuremos colocar diante de nossos olhos alguns aspectos do filme que nos tornam mais presentes a atmosfera, as particularidades e circunstâncias da época, refletindo o que considero “Ambientes, costumes, civilizações” ².
Antes de tudo, chamo a atenção para o seu lado simbólico, expresso de maneira muito fina e atraente. Por exemplo, logo no início, vêem-se alguns marrecos voando sobre o Rio Tâmisa, meio dispersos no céu. De repente, um deles faz movimento mais intenso numa direção e todos os outros o seguem. Esta cena — na aparência um incidente — tem um sentido simbólico. Ela insinua a versatilidade dos homens, assinalada pela versatilidade de certos animais gregários que vão indo sem rumo e, de súbito, um ou dois tomam determinado caminho, acompanhados pelos demais.
É bem este o papel que o rei representa no filme. Nação católica, a Inglaterra seguia seu curso. Mas, em determinado momento, por uma veleidade qualquer, Henrique VIII muda de atitude, e com essa transformação, o país inteiro abandona a Santa Igreja.
O desejo de liquidar as organicidades
Havia, porém, um sentido mais profundo para essa mudança.
Com a morte de São Tomás Morus a monarquia orgânica deixaria de existir na Inglaterra
Com efeito, no século XVI a Idade Média estava acabando de desaparecer, e com a morte de São Tomás Morus, a monarquia orgânica também deixaria de existir. Esta se baseava no princípio da subsidiariedade, segundo o qual cada corpo social deve tirar de si mesmo a solução de seus respectivos problemas, sendo apoiado pelo corpo superior apenas na medida em que não for capaz de resolver suas dificuldades.
Assim, na Europa medieval cada região e cada cidade possuía suas leis, instituições, vida e costumes próprios, o mesmo se dando com as corporações de ofício dentro das cidades, assim como com os pequenos feudos encaixados em feudos maiores. Os grandes só intervinham na existência dos pequenos para remediar as violaçoes da Lei de Deus e dos princípios da civilização cristã, ou para sustentá-los quando por si mesmos não podiam fazê-lo.
Acima dessa cadeia de subsidiariedades estava o Rei, que exercia o mesmo princípio em relação a todos os seus menores. Ele era o mantenedor de todas as autonomias e liberdades, como era também o coordenador e o estimulador de todas as atividades gerais de seu reino.
Entre essas autonomias, a maior e mais notável era a da Igreja. E quando se trata da Esposa Mística de Cristo não se poder falar em autonomia, mas de soberania. A Igreja é uma entidade soberana tanto quanto o Estado, e Ela, na sua esfera própria, não pode absolutamente ser governada pelo rei.
Ora, com a decadência da Idade Média, os reis começaram a se tornar absolutos, tomando como modelos os imperadores romanos, verdadeiros déspotas. E com a mania de voltar às fontes romanas, passaram a eliminar todas as autonomias inferiores, jogando-se particularmente contra a soberania da Igreja. Eles não A queriam como força superior — na sua esfera própria — ao poder temporal, e, portanto, independente do Estado, mas como instrumento para o governo do país.
Seguindo essa tendência, Henrique VIII declarou a igreja da Inglaterra separada de Roma, chamando para si a suprema autoridade também na esfera eclesiástica. Com isso ele atingia seu objetivo, ou seja, o domínio pleno e absoluto sobre todo o país.
Esse foi o fato trágico que se passou na Inglaterra daquele tempo.
A Cristandade em agonia simbolizada por São Tomás Morus
Voltando à análise do filme, percebemos nele um espetáculo de “ambientes e costumes” que apresenta ainda muitos aspectos medievais, misturados a outros de cunho renascentista. Donde uns contrastes chocantes de lados simpáticos e antipáticos — digo mais, revolucionários e contra-revolucionários³ — que cercam a atmosfera da coroa inglesa.
Então, na cena da chegada de Henrique VIII à casa de São Tomás Morus, aquele tipo do Rei absoluto que pula como um porco para fora do barco, metendo os pés no lodo, é um tirano dos fidalgos que o acompanham. Depois de ver que fez uma asneira ao pisar inconsideradamente na lama, olha para eles e solta uma gargalhada. E todos respondem com gargalhadas. Eles não estavam achando graça em nada, mas riam porque o monarca os fitou com ferocidade, como quem diz: “Riam, porque eu quero que vocês riam”. E todos obedecem porque o Rei lhes dava uma vida alegre, luxuosa, cômoda, gostosa e brilhante, em que eles se compraziam.
Nessa cena aparece o aspecto revolucionário da corte, que começa a perder o sentido do dever, porque perdia o sentido da Religião: onde morre este, aquele desaparece por completo. E aí se manifesta, também, aquele domínio dos reis sobre os nobres, simbolizado pelos marrecos do início do filme.
Modelo de fidalgo católico, sabia que devia obedecer antes à Lei de Deus que ao seu Rei
Pouco adiante, vê-se a cena dos fidalgos na casa de Morus, conversando com a família. Quando o Rei decidiu sair, eles o seguiram sem se despedir do anfitrião, porque perceberam que este tinha brigado com Henrique VIII. É o modo absolutista, revolucionário, de viver a instituição da monarquia. Portanto, algo degradante.
O mesmo se nota na cena precedente, em que o Rei e Tomás Morus conversam sozinhos no jardim. Henrique VIII tenta induzi-lo a aceitar seu divórcio, tomando atitudes muito variáveis. Ora procura ameaçá-lo, ora assume ares de grande intimidade, como quem o respeita. Depois, com maneiras de crápula, tenta debochar do seu interlocutor, querendo colocá-lo na alternativa de romper com ele ou acompanhá-lo na aceitação do pecado.
E se percebe em Tomás Morus o tipo do cortesão medieval, sério, digno, inteligente, composto — ao contrário dos outros cortesãos, homens sem compostura nem dignidade — fiel à tradição católica de respeito para com o seu rei, mas de respeito também para com a sua própria consciência. Ele tem noção da existência da regra divina, superior à humana, que deve ser obedecida acima de qualquer coisa.
Ora, no diálogo do jardim aborda-se a questão do casamento do Rei. A Rainha, Catarina de Aragão, tinha sido esposa do falecido irmão dele. Então Henrique VIII, usando de um sofisma barato, diz que não podia ter se casado validamente com a viúva do irmão.
A tática de Tómas Morus, por sua vez, é de uma frieza política e bem calculada. Não adianta um só passo, espera o Rei chegar ao ponto e, no momento de se pronunciar, apenas diz:
— Não posso. Quanto a isso, dependo do Papa.
Vem a saída débil do Rei:
— Eu lá preciso do Papa para me dizer se estou em pecado ou não?
De fato, ele só necessitava do Papa para anular o seu casamento. E o diálogo composto pelo roteirista do filme está primorosamente tecido, de maneira a caracterizar os personagens. Então o Rei faz o cerco dele, uma verdadeira guerra de nervos bem planejada: ora agrados exagerados, ora ameaça de chacal; ora se mostra como tendo grande esperança numa solução, ora com uma forte tentação de desespero. E a personalidade do rei é inteira calculada nessa perspectiva de antagonismos, é um homem todo feito de contradições.
Elementos de grandeza e sacralidade
Outros interessantes aspectos do filme merecem ser considerados.
Tome-se, por exemplo, os trajes do Cardeal Wolsey. Enquanto tais, são de uma magnificência que exprime de modo esplêndido a dignidade cardinalícia e a nobreza dos que são os primeiros suportes do Papa.
Dentro do horror da apostasia, um “canto de cisne”, o perfume da última cerimônia católica
Bela também, sob diverso ponto de vista, é a mesma cena da chegada do Rei à casa de Tómas Morus. O barco que traz o monarca é estupendo, de madeira ricamente entalhada, tendo na proa a escultura de um animal mitológico que parece segurar toda a natureza com a mão, e por isso se acha na ponta como extraordinária figura dominadora. Henrique VIII vem sentado debaixo de um magnífico dossel, cercado pelos numerosos cortesãos que fazem sala para ele. Quando o barco aporta, o Rei se ergue, os remadores levantam os remos, que se pensava serem inteiramente brancos, e, de repente, vê-se que as extremidades espalmadas são vermelhas. Todos permanecem eretos até o soberano descer.
A cena é de uma grandeza, de uma seriedade, numa palavra, de uma sacralidade verdadeiramente estupenda!
Um “canto de cisne”
Outro trecho igualmente muito bonito como decoração tradicional, evoca um episódio tristíssimo: o momento em que os bispos da Inglaterra aceitam a supremacia do Rei sobre a Igreja. Começa a tocar um sino, entram vários prelados em cortejo, paramentados de acordo com a sua dignidade, e se formam sobre um alto estrado. Atrás deles se vê um grande Crucifixo. Dali a instantes surge um arauto do Rei e anuncia que este exigia a separação de Roma. Nesse momento o filme focaliza os rostos dos bispos, com expressões de dúvida e hesitação…
Do lado “Ambientes e Costumes”, esta cena de apostasia nos faz compreender a bela e dramática história da Igreja na Inglaterra. Assim como, segundo narram as lendas mitológicas, o cisne proferia a sua mais bonita canção no momento de morrer — o chamado “canto do cisne” — assim se pode dizer que aquele episódio foi o “canto do cisne” da Igreja na Inglaterra. Na hora de expirar, ainda deitava o perfume de sua última cerimônia, maravilhosamente linda, dentro do horror que se praticava.
O filme se “escurece”: o processo
A partir do momento em que São Tómas Morus se demite do cargo de Chanceler do Reino, o filme passa a ser escuro, transcorrendo em ambientes pequenos.
O escritório do Cromwell, por exemplo, é um pequeno porão onde se faz a contabilidade do palácio, sem nada da instalação digna de um ministro de um grande reino.
Já na cena do processo, a fita decai bruscamente. Dir-se-ia ter entrado outro diretor, e todo o ambiente — que é o objeto de nossa preocupação — passa a ser sem graça, sem interesse, enquanto, pelo contrário, a parte de narração toma importância.
O filme torna-se mais teatro que cinema, onde os diálogos primam sobre os cenários e os jogos fisionômicos. Os personagens são todos melados e exagerados, como o Cromwell, que representa de maneira demasiada a traição e a brutalidade. Há uma coerência, sim, entre o físico dele e a sua oratória de acusação. A voz é vulgarmente sonora, ou melhor, sonoramente vulgar.
A cadeira de São Tomás Morus está colocada a uma bonita distância dos três dignitários, assentados sob um dossel e um vitral. O problema distância reveste-se de uma importância peculiar, porque confere a verdadeira dimensão à solenidade da cena. Quanto maior a distância, mais grave é a situação do réu, maior a imponência, e tanto mais a cena ganha em esplendor. Mas, passando-se dessa medida imponderável — toda ela dependendo de senso — para uma distância ainda maior, o réu vai diminuindo e se apagando.
No julgamento, São Tomás Morus aparece como um homem completamente só; todos votaram a sua morte
Poder-se-ia desenvolver toda uma teoria das distâncias, ligada ao porte, ao tom da voz, à elevação do que Morus diz, a convicção com que ele fala e a dramaticidade do julgamento. Um conteúdo dramático aumenta a necessidade de distância. Pelo contrário, se ele estivesse sendo julgado por um crime passível de seis meses de prisão, aquele espaço seria ridículo. Para um homem prestes a receber a pena de morte, é uma bela distância, adequada ao ator, ao contexto dentro do qual ele falava e ao tema que estava sendo tratado.
Aí nos deparamos com São Tomás enquanto homem completamente só. Ele discute com uma lógica tal que encosta todos os seus acusadores na parede. Em vários momentos, as pessoas ficam sem saber o que dizer, e algumas até começam a dar razão a ele. Porém, no fim todos votam a sua morte.
“Bonum” e “verum” separados do “pulchrum”
Fica-me a lembrança do belo traje do homem que traiu São Tomás Morus.
Tenho a impressão de que cada povo possui um talento especial para manusear determinada cor ou grupo de cores. O francês, por exemplo, com o bleu de roi, o ouro sobre azul. Os ingleses, no meu entender, dominam o verde. Em primeiro lugar, o dos seus gramados, simplesmente fenomenais. Eles plantam esmeraldas! E tiveram a maestria de fazer jardins bastante simples, imensos, às vezes sem flores nem adornos, apenas o verde. Mas, quem tem aquele verde, tem também o direito e até o dever de proceder assim.
E a beleza da vestimenta do traidor está nos seus vários tons de verde, combinando com a cor dos olhos dele e o seu modo de ser. Ele é esbelto, um pouco elegante de atitudes, vivo e sabe movimentar-se de maneira a tirar dos verdes todos os matizes possíveis. É, de longe, o personagem mais decorativo da cena inteira.
Agora, esse verde é posto intencionalmente na roupa do traidor, para acentuar o conflito entre o verum e o bonum de um lado, e o pulchrum de outro. É como um punhal que penetra na carne para dividi-la. O espírito desprevenido fica sem coragem de elogiar o verde, por repulsa à traição. Entretanto, é preciso saber desprezar a traição e dizer: “Pena que esse verde não seja para ornar um varão de Deus!”
Mas, note-se, não qualquer varão de Deus. Tem de ser um inglês, porque para este é que o verde cairia bem.
O martírio: algo voltará
No fim, a cena do carrasco. Este é apresentado ali do mesmo jeito como o viam na Idade Média, isto é, um executor a mando do Estado. Donde aquela atitude característica que nos causa uma espécie de arrepio. Além disso, os outros aspectos da cena eram rigorosamente fiéis à realidade da época, inclusive a forma do machado usado para decapitar São Tomás Morus, e o fato de o carrasco se ajoelhar pedindo que a vítima o perdoe por matá-la. Era uma antiga tradição, uma forma de caridade cristã, como quem diz: “Se esta sentença é injusta, em nome dos homens eu lhe peço perdão, antes de tirar-lhe a vida”.
Tomás Morus o perdoa e lhe dá uma gratificação em moedas, num gesto que encerra grande nobreza, sem deixar de ser tremendo: é a idéia cavalheiresca de recompensar todo serviço manual, ainda que seja o de pôr termo à existência do condenado.
Personificava o que havia de bom no país inteiro; sua fidelidade não permitiu que o caniço fosse por completo quebrado
A cena em que o carrasco abre a camisa de Morus está bem executada, com uma certa brutalidade de quem prepara o outro para a morte: “Agora se cumprirá o seu destino, e sobre você cairá a cólera do Rei”. Ele morre com um só golpe de machado e termina a história de São Tomás Morus.
Termina? Não. Ele personificava o que havia de bom no país inteiro. Quebrado esse homem, quebrar-se-ia o país. Porém, uma vez que o homem não se quebrou, quebra-se o resto? Sim, mas a nação fica como um caniço partido, embora não inteiramente cortado. Então podemos dizer que, se hoje o anglicanismo ainda conserva pompas, ritos e cultos parecidos com os da Igreja Católica, é porque a fidelidade de São Tomás Morus não permitiu que o caniço fosse por completo quebrado.
Concluo esses comentários lembrando que há uma particularidade na vida de São Tomás Morus não explicada, nem no filme nem nas biografias do santo. Ele previa a aproximação de sua morte e, entretanto, não tentou fugir para a França, como fizeram muitos outros ingleses ameaçados. Por que não procurou se subtrair à vingança do Rei?
Não sabemos. Contudo, haveria uma explicação à altura dele. Era bom que o seu sangue fosse vertido em cima desse crime, para que, consumada a maldade, um resto permanecesse: este mesmo sangue de um mártir católico, semente e promessa de futuros dias de glória para a Igreja na Inglaterra. Algo voltará.
Eis o fundo da história de São Tomás Morus.
1 “A Man for all Seasons”, EUA, 1966.
2 Assim se intitulava uma seção do antigo jornal “Catolicismo” escrita por Dr. Plinio.
3 As palavras “revolucionários” e “contra-revolucionários”, têm o sentido que Dr. Plinio lhes deu em “Revolução e Contra-Revolução”, de 1959.