No número de agosto publicamos excertos da série de conferências que Dr. Plinio pronunciou em 1957 sobre o livro de Santo Afonso Maria de Ligório — “A oração, o grande meio da salvação”. Continuamos com alguns outros trechos da mesma, dada a grande importância que o tema representa para a vida espiritual de todo católico.
Para obter que Nosso Senhor nos abra a porta, basta ser importuno. Isso está dito textualmente e comentado por um Doutor da Igreja do porte de Santo Afonso de Ligório.
Devemos considerar, de uma vez por todas que, na oração, não são nossas misérias que entram em linha de conta.
A oração não é um cheque bancário contra Deus
A oração tampouco é um cheque que eu saco do fundo dos meus créditos e compro de Deus um favor. É preciso desfazer tal idéia, pois é um obstáculo para o desenvolvimento da nossa vida espiritual.
Oração é algo diferente. Ainda que eu não tenha nenhuma razão para ser atendido, sê-lo-ei pela minha importunidade. A importunidade do pecador abre as portas do Céu e obtém, afinal, tudo quanto possa desejar. É frisante, nesse sentido, a palavra de Nosso Senhor.
S. João Crisóstomo, grande Doutor da Igreja, comenta no mesmo sentido:
A oração vale mais junto de Deus do que a amizade ¹.
É uma afirmação que eu não teria coragem de fazer: estabelecer uma distinção entre a oração e a amizade com Deus, para concluir que a primeira vale mais que a segunda. Ora, isso foi dito por São João Crisóstomo, que Santo Afonso por sua vez cita. A oração vale mais diante de Deus do que a amizade. Entre uma pessoa em estado de graça, mas que não reza, e outra que reza mas não está em estado de graça, quem reza alcança mais favor diante de Deus.
A oração importuna e humilde abre para o pecador as portas do Céu, e alcança para ele tudo quanto possa desejar
Outro argumento interessante, invocado por Santo Afonso para justificar a tese de ser a oração do pecador eficaz e grata diante de Deus, é a passagem evangélica em que Nosso Senhor elogia a oração do publicano: “Assim é que se deve rezar!”
Qual é o título que o publicano apresenta diante de Deus para ser atendido? Não é o “cheque” que os fariseus apresentam: “Agora tu, Deus, que me pões uma barreira, tu tens que me dar um prêmio, porque eu fiz algo. Aqui está o que eu fiz!”
Na sua oração, pelo contrário, o publicano invoca o título de pecador: “Deus, sede-me propício, a mim que sou pecador”.
Ora, tendo alegado esse título de pecador, o Evangelho acrescenta:
… este (o publicano) voltou justificado para a sua casa (Lc 18,14).
Quando nós alegamos o título de pecador, somos atendidos.
É engano achar que devemos estar num alto grau de virtude para que nossas orações sejam atendidas por Nosso Senhor. É preciso abandonar essa idéia heterodoxa, se quisermos ter verdadeiro espírito católico.
Outra frase, também muito interessante, é tirada de uma oração do Profeta Daniel:
Inclinai, meu Deus, o vosso ouvido, e ouvi-me (…) porque nós, prostando-nos por terra diante da vossa face, não fazemos essas deprecações fundadas em alguns merecimentos de nossa justiça, mas sim, na multidão das vossas misericórdias (Dan 9, 18).
Essas palavras, ditas pelo Profeta, não constituem figura de retórica, como quem dissesse: “Vê tudo isto! eu ainda vou pôr mais um enfeite, vou dizer que não tenho nada. Mas, é para mostrar que eu sou humilde e, portanto, não digas que há contrabando na minha mercadoria. Dá-me agora aquilo que tu me prometeste!”
Não se trata disso. A humildade está presente na verdade, e na oração não pode haver mentiras. O Profeta Daniel, realmente, se dirige a Deus em nome do povo judeu, carregado de pecados e prostrado por terra. Esse povo judeu, prostrado pelo pecado, na condição de pecador, faz uma oração. Ele alega essa condição ao se apresentar ante Deus e é atendido.
É uma oração tirada da Bíblia, inspirada pelo Espírito Santo. Assim, compreendemos quanta confiança também nós devemos ter.
O pior do pecado é o desespero
Há outro trecho, dessa vez tirado de São Mateus:
Vinde a mim todos que andais em trabalho e vos achais carregados que eu vos aliviarei (Mt 11, 28).
Segundo São Jerônimo, Santo Agostinho e outros, qual é essa categoria de gente que está em trabalhos?
São os pecadores que têm algum pesar de ter cometido pecado. Esse é o sentido da palavra trabalho, neste contexto. É para esses pecadores que Nosso Senhor disse: “Vinde a mim que Eu vos aliviarei”.
Quanta cordura e quanto amor ao pecador! Quanto desejo de atraí-lo! Que absurdo, que aberração comete o pecador se ele se desespera! O pior do pecado dele não é a falta, é o desespero. Enquanto ele conservar a confiança ele pode voltar, e há torrentes de razão para confiar.
Outra citação, também muito interessante:
“Não desejas — diz São João Crisóstomo dirigindo-se ao pecador — tanto a remissão de teus pecados quanto Deus deseja perdoar-te”.
São João Crisóstomo, ao ver um pecador querendo sair do seu pecado lhe diz: “Deus deseja mais que tu te convertas, do que tu mesmo o desejas”.
Compreende-se, portanto, quanta confiança deve ter um pecador quando ele pede sua conversão a Deus. Ele pede uma graça que o próprio Deus deseja mais do que ele. Como não ter toda a confiança?
Se há lugar no mundo onde nós podemos ir, certos de não estarmos sobrando, é aos pés do Santíssimo Sacramento
Importunidade, o principal requisito da oração
Ainda São João Crisóstomo, ao comentar São Mateus, diz:
“Não há o que não obtenhas pela oração, ainda que estejas carregado de mil pecados, contanto que a oração seja instante e contínua” (Hom. 23 in Matth.).
Note-se bem que São João Crisóstomo é um dos grandes Doutores da Igreja.
Sua frase condensa o que acima afirmávamos. “Não há o que não obtenhas pela oração”, diz ele. Ou seja, ele inclui tudo. “Ainda que estejas carregado de mil pecados…”, não de um só pecado.
Para se obter o que se pede, a condição será ter firme propósito ou qualquer outra coisa? Não, não é. “Contanto que a oração seja instante e contínua”, não é necessário mais nada.
É preciso ser importuno. A oração obtém tudo na medida em que é insistente, caso contrário não é boa oração. Mais claro não podia ser. Ou as palavras humanas não têm sentido, ou o sentido é esse.
Mais adiante é citado um trecho de uma epístola de São Tiago:
Se algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá com abundância e não impropera (Tg 1, 5).
Sabedoria é juízo, sabedoria é critério, sabedoria é conduzir-se bem, é não ter algum dos defeitos que levam ao pecado. Se alguém precisa disso, peça. Deus dá com abundância a qualquer um que pede.
Como Deus é generoso! Como Ele é misericordioso! E como é taxativo!
“Se alguém precisar, peça, Eu darei”. Ou Deus não existe, ou Ele é mentiroso, ou isso é verdade. Não há outra alternativa.
Santo Afonso se pergunta o que querem dizer estas palavras: “Deus dá com abundância e não impropera”.
Citando mais uma vez São João Crisóstomo em abono de suas teses, ele explica que os poderosos da Terra, quando se lhes pede algo, não dão com abundância e ainda por cima improperam.
É bem verdade. Quando dão, dão pouco e de má vontade. Com Deus é diferente. Deus não impropera quando se Lhe pede. Santo Afonso demonstra que Deus impropera quando não se lhe pede. O que O ofende — contrariamente ao que se dá com os homens — é não ser importuno com Ele. Sendo importunos não O ofendemos, mas Lhe somos agradáveis. Esta é a realidade.
Deus nunca nos acha “cacetes”
Meu avô costumava dizer o seguinte à minha mãe, que rezava muito:
— Deus deve te achar muito cacete, embora você seja uma boa menina. Porque até eu, que te quero tanto bem, se você falasse tanto comigo como fala com Deus, acabava te mandando embora e te achando cacete. E assim eu também acho que você deveria rezar menos.
É o contrário! Deus nunca nos julga cacetes. Se há lugar no mundo onde nós podemos ir, certos de não estarmos sobrando, é aos pés do Santíssimo Sacramento. E onde haja uma imagem de Nossa Senhora, ali somos sempre bem recebidos, ainda que nos consideremos os piores mulambos da Terra. Em todos os outros lugares, não devemos ter dúvida nenhuma, sempre há uma determinada situação na qual nós podemos ser cacetes aos olhos de alguém.
E o melhor argumento nessa linha, talvez sejam estas palavras do Evangelho de São Lucas:
“Se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial dará espírito bom aos que lho pedem” (Lc 11, 13).
Se um homem qualquer sabe dar um bom presente quando o filho pede, podemos acaso conceber que Deus, quando Lhe pedimos o bom espírito, não nos atenda? Certamente atenderá! É questão de pedirmos.
Nos períodos melhores, pedir graças para suportar os piores
Há um ponto que eu tenho muito empenho em desenvolver: é o problema da oração de quem está em estado de graça para não cair em pecado.
Santo Afonso mostra o seguinte: quem está nas alturas, animado, deve rezar pedindo graças para quando estiver na provação e no desânimo. Porque é quando este sobrevém que se corre o risco de rezar menos.
O desânimo congela a vida espiritual de uma pessoa, diminuindo nela a coragem e a resolução de rezar
O desânimo é um estado de alma que congela toda a vida espiritual de uma pessoa, e no qual a coragem e a resolução de rezar minguam.
Deve-se fazer provisão de orações para quando vier o desânimo. Isso de dizer “eu rezo quando estiver tentado”, é mais ou menos como quem acha que vai converter-se quando estiver para morrer.
No momento da agonia a pessoa estará pensando no pé que está doendo, no coração que está parando, na vista que já não está enxergando a não ser à curta distância. Ela estará vendo a morte se aproximar e estará pensando no próprio corpo. Não estará pensando na alma, ou terá muita dificuldade em pensar nela, e por isso quando se está saudável deve-se rezar pela hora da morte.
O mesmo se dá conosco, quando estamos bem na vida espiritual. Devemos nessa hora rezar pedindo proteção para o momento em que vierem as tentações, pois não há homens invulneráveis em matéria de vida espiritual.
E eu tenho visto diminuir o brilho das estrelas no céu!… Não quero dizer apagar-se, mas passar por temporárias eclipses. Ou porque, de repente, a pessoa é afligida por um vendaval tremendo e reage estupidamente, com uma brutalidade idiota; ou então é uma dúvida que começa a surgir, e ela pensa: se houver isto haverá aquilo, se houver aquilo haverá mais aquilo, e eu farei não sei o quê, e de repente se apega a algo a que não deveria apegar-se, e quando se vai tentar ajudar, já é tarde.
Nesta hora, chegar junto de alguém e dizer: “Agora reze!”… É necessário! Mas não seria muito melhor se a pessoa tivesse aproveitado a hora do fervor para rezar?
É muito ruim ser olímpico na hora em que se está num auge de vida espiritual. Devemos, isso sim, nessas horas, armazenar cargas de oração.
Santo Afonso menciona um texto do Concílio de Trento (seção 6ª cap. XIII):
“Não se pode obter essa graça senão d’Aquele que tem poder de conservar a quem está de pé, de sorte que persevere com fé” (Seção 6ª cap. XIII).
Quem está de pé deve pedir perseverança Àquele que o conserva neste estado. O que é mais importante: rezar para nos levantarmos quando já tivermos caído, ou rezar para não cair quando estamos de pé? Evidentemente, o segundo tipo de oração é o mais importante: rezar para não cairmos.
Ele menciona também outro trecho do Concílio de Trento, no qual é citado Santo Agostinho:
“Esse dom de Deus, a perseverança, pode merecer-se suplicando, isto é, se pode conseguir pela oração” (De don. persev., c. 6.).
Se nós queremos perseverar, por mais firmes que nos sintamos, peçamos essa graça da perseverança.
Recorrendo à autoridade de São Tomás, Santo Afonso cita a seguinte afirmação do Doutor Angélico.
Se quisermos entrar no Céu, cumpre que nossa oração seja contínua; nada há que justifique o não rezar
“Depois do batismo, é necessário ao homem a oração contínua para ele poder entrar no céu”.
Depois do batismo, quando todos os pecados do homem foram apagados por virtude desse sacramento, o que é preciso? Oração contínua! Não há o que justifique o não rezar.
Outra citação interessante:
“Vigiai, pois, e orai em todo o tempo a fim de que vos torneis dignos de evitar todos esses males que têm de suceder — quer dizer, as tentações — e de vos apresentardes com confiança diante do Filho do Homem” (Lc 21, 36).
Portanto, não é sempre no tempo mau, mas em todo o tempo.
O mesmo diz o Eclesiastes:
“Nenhuma coisa te impeça de orar sempre” (Ecl 18, 22).
Não há razão para não estarmos rezando sempre.
Outra frase, dessa vez de Tobias:
“Bendize a Deus todo o tempo e pede-lhe que dirija os teus caminhos” (Tob 4, 20).
Todo o tempo, quer dizer, no tempo bom também.
Ainda, numa epístola de São Paulo: “Orai sem intermissão” (1 Tes 5, 17).
Não é, portanto, com as intermissões do tempo de virtude.
Outra é da Epístola de São Paulo aos Colossenses:
“Perseverai na oração, velando nela com ação de graças” (Col 4, 12).
Perseverai sempre na oração. Não é só quando se está em pecado, ou se está sem pecado, mas é sempre.
Também na Epístola a Timóteo:
“Quero pois que os homens orem em todo o lugar” (1 Tim 2, 8).
E o próprio Santo Afonso de Ligório comenta:
Muitos pecadores com o auxílio da graça chegam a converter-se a Deus e a receber o perdão; mas, porque deixam depois de pedir a perseverança, tornam a cair e perdem tudo.
Ou seja, a pessoa chegou, com a graça, a emendar-se, mas depois não pediu a sua própria perseverança. Não pediu, logo perdeu. Então, quando se está em dificuldade é preciso lembrar-se disso, e rezar para conseguir a perseverança. E quando se vai bem na vida espiritual, é de uma importância capital ter essa humildade, esse medo de cair e implorar a graça da perseverança.
No Padre Nosso, Deus nos ensina a pedir a perseverança
E, por fim, temos a petição do Padre-Nosso: “Não nos deixeis cair em tentação”.
É súplica para, na hora da tentação, eu ter o suprimento necessário do que eu pedi quando não estava tentado. Nosso Senhor ao formular a oração perfeita estabeleceu, exatamente, esse pedido de não sermos abandonados no momento da tentação.
Este momento é tremendo. É como um turbilhão pavoroso, ou como uma idéia das mais sedutoras. Nessa hora a pessoa já está, às vezes, quase impossibilitada de rezar.
Dois conselhos valiosos
Por isso recomendo duas coisas:
Primeiro, incluir na nossa rotina uma oração para que Deus nos conserve numa perseverança perfeita.
Em segundo lugar, assegurarmo-nos de uma outra forma, ou seja, pedindo que se celebrem missas e que se façam orações em conventos, por nós.
Devemos pedir o auxílio das orações de freiras e religiosos contemplativos; sobretudo, importa recorrermos à infalível intercessão da Santíssima Virgem em nosso favor
Deus já estabeleceu que haja freiras, religiosos contemplativos, para recitarem as orações que nós não podemos fazer. Por que não nos munirmos desses recursos incomparáveis?
Se desconfiamos que não somos capazes de rezar bastante, por que não recorrer às orações de outrem? Mas, estas práticas devem constituir uma rotina, sobretudo quando se está em perigo, em situações difíceis, mas também quando se está em situações boas. Não há recurso melhor do que recorrer às orações de uma religiosa, para ter uma alma que carregue a cruz conosco, e nos ajude a levar aquilo que pesa demais para nós.
Mas a melhor pessoa para rezar por nós, já sabemos, é Nossa Senhora. Devemos pedir muito à Santíssima Virgem. O alfa e o ômega de tudo isso é a oração d’Ela e a oração a Ela.
Nossa Senhora nos concederá tudo de que temos necessidade.
1 Santo Afonso Maria de Ligório, A Oração, o Grande Meio da Salvação, Editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1956, 3ª edição, págs. 90 e 91.