Acostumados à vida agitada e irrefletida das grandes cidades, quiçá nos venha, vez ou outra, a idéia de que o mundo foi sempre assim. Grande engano… Ao recordar o ambiente da antiga “São Paulinho” dos anos 30, Dr. Plinio nos fará sentir verdadeiro refrigério de alma, bem como despertará em nós o anseio de que Deus envie dias melhores para a humanidade.
Atendendo à solicitação que me foi feita, prossigo na descrição do ambiente social e de outros aspectos que cercavam a prática da religião em São Paulo, agora nos fins dos anos 30 e início da década seguinte.
Para nos situarmos melhor naquele contexto, é preciso dizer que, entre 1938 e 1940, embora estivesse prestes a participar da Segunda Grande Guerra, o Brasil era ainda um país de importância relativa no cenário internacional. E São Paulo, sempre uma das nossas principais cidades, contava aproximadamente 1 milhão de habitantes.
Por outro lado, no meio eclesiástico brasileiro, e de modo particular no paulista — onde se deram os fatos sobre os quais falarei — prevalecia o ambiente que reinava na Igreja antes do primeiro conflito mundial. Por causa da guerra, as comunicações da Europa com o Brasil estavam muito amortecidas, e as notícias nos chegavam com bastante atraso. Convém lembrar que não existia aviação ligando o continente europeu e o americano, mas apenas navios comerciais ou de passageiros que gastavam perto de vinte dias na travessia do Atlântico. Portanto, ida e volta, mais ou menos quarenta dias. Compreende-se, pois, o quanto isto nos distanciava do Velho Mundo, assim como dos Estados Unidos, situado também no hemisfério norte.
É nesse panorama que veremos como se caracterizava o ambiente social — mesclado ao religioso — daquele tempo, e a presença de um certo fator sobrenatural que o impregnava.
Atualizados com a Revolução, mas presentes nas igrejas
Tal fator, procurarei defini-lo da seguinte maneira. Naquela época, no centro antigo de São Paulo, além do comércio comum, havia o de luxo, os melhores médicos, dentistas, advogados, engenheiros, os cinemas mais famosos, os lugares aonde todos iam para ganhar ou gastar dinheiro, o que o transformava no grande núcleo de circulação monetária.
Ora, quando se transitava por ali — de ônibus, bonde, táxi, de automóvel particular — tinha-se a impressão de que o ambiente, as mentalidades, os gostos, as conversas, as atitudes, etc., eram fortemente neopaganizados.
Em geral, o membro da família mais religioso pertencia ao clã dos sexagenários
Entretanto, as mesmas pessoas que pareciam assim tão atualizadas com a Revolução (no estágio em que esta se apresentava), dirigiam-se com freqüência às igrejas. Além disso, em todas as residências havia, não propriamente capelas, mas pequenos oratórios com imagens, diante das quais se rezava; em algumas casas mais piedosas existia uma pia de Água Benta, esta ou aquela pessoa da família possuía o Rosário, livro de Missa, etc.
Respeito pelas pessoas religiosas
Em geral, o familiar mais religioso pertencia ao clã dos sexagenários, num tempo em que se envelhecia e morria mais depressa do que hoje, e os indivíduos com 50 anos já eram considerados como tendo atingido uma idade provecta.
Lembro-me do idoso Arcebispo Dom Duarte Leopoldo, que faleceu aos 72 anos de idade. Eu o achava velhíssimo, e uma ou outra pessoa se atrevia a lhe dizer:
— Senhor Arcebispo, como está V. Excia.? Vai vivendo bastante…
E ele, ereto como uma bengala retilínea, olhava de cima e respondia com sua voz em majestoso falsete:
— É, até lá eu vivi; vossemecê viverá?
Ponderação muito razoável, pois tendo ele alcançado os 72, nenhum dos seus interlocutores, mesmo com 71 anos, tinha certeza de atingir aquela idade. Isso mostra, porém, como os velhos eram vistos naquele tempo. Conforme assinalei acima, constituíam eles — sobretudo as senhoras — a parte mais religiosa da família, e essa sua característica agradava ao resto dos parentes menos afeitos às práticas piedosas.
Cumpre ressaltar, a esse propósito, o que já tive oportunidade de comentar: os homens, jovens ou maduros, apesar de afastados do catolicismo, respeitavam muito a religião. A alma deles era como uma espécie de violão quebrado, em que uma ou outra corda ainda vibrava, embora as demais estivessem enroladas e não soassem. Ou seja, neles havia um resto de religião católica, e os mesmos que a atacavam, admiravam-na no fundo do coração.
Recordo-me de dois tios de minha mãe — meus tios-avós, portanto — que eram irmãos, ambos ateus declarados. Um deles sofreu derrame cerebral, e fui visitá-lo no hospital. Cumprimentei-o, etc., e em seguida lhe disse:
— Tio Augusto, o senhor precisa agora se preparar para a morte.
Ele, vendo que se aproximava o fim de sua vida, respondeu:
— Meu filho, tenho esperança de salvar minha alma porque nunca deixei de ter devoção a Nossa Senhora das Dores.
Esse era um homem que, diante dos outros, podia até falar mal da religião, porém no íntimo de sua alma rezava à sua Padroeira, sem dizê-lo a ninguém. E quando se sentiu mal, logo apelou para o socorro da Virgem Dolorosa.
Já o irmão dele viria a falecer poucos anos depois. Adoeceu, e mamãe, com seu zelo pela salvação do próximo, preparou cuidadosamente a conversão dele. Telefonou para um padre no qual tinha confiança e combinou de trazê-lo ao apartamento do tio, para atendê-lo em confissão. O sacerdote esperaria na porta do edifício por um sinal dela, e só então subiria.
Dona Lucilia fez várias visitas ao tio, conversava com ele, etc., predispondo-o para aceitar a presença do padre. Esse senhor, aliás, antes de ficar doente, era um homem muito bem-apessoado, um bon-vivant que empreendia freqüentes viagens à Europa, mas também muito rabugento. Em certos dias, caía em depressão e se punha a resmungar. Nessas horas, mamãe tinha angelicais paciências com ele, e em razão dessa solicitude, o Tio Américo, indiferente ao resto da família, manifestava uma espécie de xodó por mim. Isso, por sua vez, fazia com que minha mãe se inclinasse ainda mais a ajudá-lo.
Então, no dia e hora marcados com o sacerdote, ela foi à janela do quarto do tio, e disse-lhe:
— Tio Américo, veja que coisa curiosa. Daqui de cima estou vendo o Pe. Fulano lá embaixo. Seria tão fácil ele vir fazer uma visita ao senhor, e faria bem à sua alma…
Ele percebeu perfeitamente tratar-se de uma confissão. E disse:
— Bom, faça um sinal para que ele suba, é um homem de bem.
Dali a pouco o padre entrava no quarto dele. Cumprimentaram-se, etc., enquanto Dona Lucilia já deixava uma cadeira junto à cama do doente. Ela se retirou, e o sacerdote fechou a porta. Quando este saiu, algum tempo depois, disse a mamãe que o Tio Américo havia se confessado.
Ou seja, como a maioria dos ateus daquele tempo, ele não o era seriamente. No fundo, acreditavam em Deus, e quando se encontravam à beira da morte, recorriam à religião católica. Com o Tio Américo não foi diferente, a tal ponto que, às vésperas de render o último suspiro, confessou-se…
As várias espécies de público das igrejas
Esses exemplos concorrem para conferir realce ao que passarei a comentar sobre o ambiente nas igrejas paulistanas de então. Existiam várias espécies de público que compareciam às Missas, sobretudo aos domingos. As pessoas elegantes assistiam, em geral, as celebrações das onze horas e ao meio-dia, na igreja de São Bento (a de assembléia mais distinta) e nas paróquias dos bairros de bom nível, como Santa Teresinha e Coração de Jesus. Já as Missas na igreja do Coração de Maria eram muito freqüentadas por domésticas, governantas de casa, jardineiros, pequenos comerciantes, etc.
É curioso notar que, quanto mais matutinas as Missas, menos finas as pessoas que as assistiam. E, a meu ver, eram estas as celebrações eucarísticas com maior unção e piedade.
Não raras vezes, eu estudava até as quatro, cinco horas da manhã, e, antes de me deitar, aproveitava para ir ao Coração de Jesus assistir à primeira Missa do dia. Podia observar, então, umas mulheres sofridas que se arrastavam pela bruma, rumo à igreja. Eram senhoras pobres, abandonadas pelo marido, viúvas, ou com o esposo doente, dos quais tratavam. Torturadas pela dor, elas usavam chapéus que tinham perdido a forma, vestidos cujas cores haviam desaparecido, sapatos igualmente disformes, gastos; bolsas enormes, porque nelas deveriam caber os legumes comprados na quitanda, o pão, remédios, o caderno do filho… Assim essas mulheres iam para a igreja. Era comovedor.
De manhãzinha, as ruas ainda escuras, o templo com as luzes acesas e pouca gente. Aquelas senhoras, espalhadas no recinto sagrado, às vezes sussurrando o terço, com um murmúrio que mais parecia um gemido, ou então todas silenciosas.
Missas mais matutinas, pessoas menos finas, celebrações com maior unção e piedade
Em geral, o celebrante era o padre mais jovem da paróquia, que suportava o ônus de levantar cedo. Via-se então o sacerdote moço, há pouco vestido de preto, e agora com os paramentos, voltando-se para os fiéis, dizendo:
— Dominus vobiscum.
E o sacristão, cujo tipo humano deixava um tanto a desejar, respondia:
— Et cum spiritu tuo.
E o padre continuava a Missa:
— Orate fratres…
No final do Santo Sacrifício, ele dava a bênção, e os presentes começavam a se retirar, saindo para mais um dia de sua laboriosa existência. Naquelas circunstâncias, chamava-me a atenção a diferença entre o jovem ministro do altar e as velhas devotas, a mocidade dele florescendo entre as anciãs. Quer dizer, uma juventude que iniciava a caminhada no meio da velhice, do vestido preto, e, portanto, afastado dos falsos prazeres do mundo. Isso incutia um imenso respeito ao sacerdócio.
Uma atmosfera santa
De outro lado, mesmo nas Missas freqüentadas pelas pessoas mais mundanas, verificava-se o fato curioso de que a bondade existente no fundo da alma delas vinha à tona. E a manifestação desse lado bom dos presentes formava um todo que, em contato com o ar sobrenatural do edifício, o ambiente de oração, de recolhimento, as imagens, os vitrais, o órgão e, sobretudo, os Sacramentos, elevava o nível da igreja e constituía uma atmosfera propriamente santa. Refletida, é claro, nos diversos atos de piedade ali praticados.
Por exemplo, as confissões. Uma pessoa sensível aos imponderáveis, como eu, podia passar diante de um confessionário e, sem precisar ouvir nada, facilmente perceber que o padre estava apertando o penitente. Terminada a confissão, o modo de o fiel se retirar dali era característico: levantava-se com fisionomia compungida, olhava discretamente para os bancos e se dirigia a um deles, onde se ajoelhava para cumprir a penitência que o padre havia imposto.
Via-se que, quando entrara no confessionário, ele como que se enfurnara num outro mundo. E ao sair, sua alma se encontrava de fato lavada. Asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor — “Vós me aspergireis com o hissope e serei purificado; vós me lavareis, e me tornarei mais branco que a neve”. Dessa frase eu me lembrava, ao observar certas pessoas deixando o confessionário. Retiravam-se realmente purificadas.
Aliás, tenho o testemunho de minha própria experiência. Eu entrava no confessionário, e tudo se passava de maneira muito séria: o padre perguntava, re-perguntava, com cortesia, afabilidade, etc., de sorte a fazer o penitente se confessar em regra. O resultado é que este aliviava o peso que podia estar agravando sua alma, e se sentia profundamente reconfortado com a absolvição recebida no tribunal da penitência.
Todos esses fatores concorriam para causar uma impressão da qual o homem de hoje não faz idéia. E o melhor dos melhores era esse algo de sobrenatural que pairava sobre todas as coisas, mais ou menos como um raio de sol pode pousar numa flor e avivar as suas cores. Assim também, quando se entrava nas igrejas, percebia-se que nas almas ali presentes pousava a graça divina.
Razão pela qual eu, ao freqüentar uma igreja, sempre o fiz com veneração e bem-estar inexprimíveis em palavras. E não só ao penetrar nos edifícios sagrados, mas também nos conventos, nas casas paroquiais, etc., pois em tudo isso há um transbordamento dessa atmosfera santa da Igreja Católica Apostólica Romana.