O desenvolvimento do senso do ser, a construção da mentalidade e das reflexões no homem fiel à sua inocência batismal era tema sobremaneira caro a Dr. Plinio, a respeito do qual discorreu em diversas oportunidades ao longo de sua vida. Sempre permeando tais exposições com expressivos e didáticos exemplos, como poderemos constatar nas considerações transcritas a seguir.

Pediram-me que tratasse sobre a inocência, tema tão vasto quanto complexo. Por isso, abordarei apenas um aspecto dele, fazendo o apanhado do ponto de vista filosófico-prático, sobre a coerência e a contradição na alma do inocente.

Aceitação, rejeição ou indiferença

Imaginemos uma criança nos passos iniciais de sua vida. Ainda não fala, exprime-se por gestos ou pelo balbucio de algumas sílabas, e em sua mente desenham-se esboços de pensamentos. Ao lhe ser mostrado algo, ela tem um conhecimento elementar e superficial, do qual decorrem três atitudes: deseja aquilo e estende a mão para apanhá-lo; rejeita-o, afastando-o ou virando o rosto para outro lado; ou pode não manifestar reação alguma em relação ao objeto. Portanto, a criança toma uma dessas posições: aceitação, rejeição ou indiferença.

Antes mesmo de formar um juízo a respeito do que tem diante de si, a criança toma uma atitude de aceitação, rejeição ou indiferença

Então, antes mesmo de formar um juízo elaborado a respeito do que tem diante de si, ela sente e assume uma dessas três atitudes.

Suponhamos que o menino esteja deitado num berço, coberto na parte da cabeceira por pequeno dossel. Alguém toma uma bonita bola, brilhante, usada para enfeitar árvore de natal, e a pendura no dossel. A criança pode ficar encantada e querer segurar a bola, ou permanecer indiferente, ou, se for de maus bofes, olhar meio vesga e fazer careta.

Por que razão ela toma tais atitudes? Se alguém analisasse várias rea­ções assim de uma criança, poderia discernir alguns movimentos que irão determinar a orientação dela durante a vida?

Tais indagações me vinham freqüentemente ao espírito no tempo em que havia muitas crianças passean­do na Praça Buenos Aires1, conduzidas por uma nurse, Fräulein, mademoiselle, babá, ou pela própria mãe. Eu notava suas reações diante dos fatos. Passava, às vezes, um caminhão fazendo seu barulho característico e medonho, o menino permanecia indiferente. Dali a pouco um cachorro latia, a criança se assustava. Mais adiante via uma flor e queria apanhá-la. Sucedia em certas ocasiões que, levada pela mãe, esta encontrava uma pessoa conhecida e parava para conversarem. A amiga fazia um agrado no pequeno, e este virava o rosto, causando desapontamento na sua progenitora, desejosa de provar que seu rebento herdara o bom gênio da família…

Notícia e seletivo

Qual a razão desse movimento? O que se passa na alma da criança? Ela já conhece algo, tanto é que reage. Se não conhecesse, não reagiria.

Na realidade, ela não tem propriamente ciência, mas o que, em filosofia, chama-se notícia. A visão e os demais sentidos lhe transmitem notícia sobre os fatos. Mas, nota-se que a criança possui um seletivo. Selecionar é uma operação que supõe aceitação de umas coisas e recusa de outras. E esta última, por sua vez, apresenta duas modalidades: rejeição na sua totalidade (a qual é manifestada, por exemplo, empurrando o objeto que lhe é mostrado); e a segunda, por indiferença. Como já dissemos, se a criança aceita, ela procurar segurar o que lhe interessa.

Esse seletivo possui certos critérios de escolha antes mesmo de a inteligência ter elaborado raciocínios. Essa faculdade trabalha ainda de um modo rudimentar, incompleto, enquanto o seletivo já inicia seu operar.

Tal tabela de valores, de preferências, recusas e indiferenças é desenvolvida pela criança ao longo de sua vida, sofrendo algumas modificações, de vez em quando perdendo algum atributo, adquirindo outros, etc., mas em suas linhas gerais ela o conserva até o fim da existência.

Manifestação do senso do ser

Retomamos, então, a pergunta: quais são esses elementos iniciais, esse ponto de partida no qual se acha escrito o fim da vida?

Pensemos naquela criança deitada no berço, olhando a esmo para o ambiente que a cerca. De súbito, uma mão materna, afável, pendura diante dela uma bola lustrosa, azul bleu-de-roi, dourada ou vermelha, presa por uma fita de seda cor-de-rosa ou azul claro. Ela tem noção de que ali não estava a bola, que em determinado momento surgiu à sua frente.

O bebê não se pergunta por que a bola apareceu, quem a pôs, etc. Sua reação simples, primária, é: a bola. Talvez nem saiba dizer “bola”, mas o primeiro pressuposto consiste na noção de que ele é e a bola é, e daí se estabelece uma relação entre os dois, aceitação ou recusa, etc.

Junto com o conhecimento, vem a idéia de que devemos ser completados, e uma ação seletiva a respeito do que nos falta


Verifica-se aqui o processo mental humano de se desprender da noite do não-criado para o criado, do não-ser para o ser. A criança é, mas há pouco tempo atrás ela não era. Vê-se que na primeira atitude tomada por ela há um primeiro olhar da inteligência, no qual seu espírito capta, pelos dados que lhe fornecem os sentidos, o fato de que algo é: “a bola é, eu sou”.

O que significa o verbo “ser”? O menino nem chega a definir isso, a primeira noção é que ele é, e a bola é. Segunda: ela e a bola não são a mesma coisa. Terceira: uma vez que as duas coisas são, tem de haver uma relação entre ambas. Normalmente a criança não pode ser indiferente à bola e talvez a bola não seja, sob certo aspecto, indiferente a ela. O menino vê a bola e acha que esta constitui um bem para ele, o completa em algum ponto, estende a mãozinha e pega a bola. Logo depois, instintivamente, a põe nos lábios. É a idéia incipiente de que aquele bem contido na bola fica participando dele, se a lamber e morder.

O grande problema da vida: somos incompletos

Portanto, esse movimento vem acompanhado da noção obscura, profunda, de que a ela, criança, faltam coisas existentes em outros seres. Ela tem vontade de se apropriar daquilo que contém um grau de beleza que não sente em si mesma. E não só de possuir, mas também de comer. Suponhamos que ela visse uma bonita cereja ou nêspera. Estando ao seu alcance, ela iria diretamente comê-las, pois sente a necessidade de complementação.

A criança tem, então, a impressão de que algumas coisas a completam, e outras não. Ela quer as primeiras e afasta as últimas, pois as julga malfazejas. Assim, juntamente com o conhecimento de que ela é, aparece a idéia confusa, instintiva, tendente a ser quase um circuito de sensações, pela qual percebe no que é completa, e, por outro lado, os pontos em que não o é. E procura rea­lizar em si uma totalidade de algo que ela sente não ter. Começa aí, para cada um de nós, o grande e verdadeiro problema da vida: eu sou incompleto. Sinto falhas, lacunas em mim, talvez instintivas, não sou capaz de exprimi-las em palavras. E sinto-as de tal modo que algumas coisas causam-me a impressão de me completarem, outras, pelo contrário, constituem uma demasia e me deformam. Outras, ainda, me deixam indiferentes.

Esse problema da complementação de si mesmo vai se estender ao longo de toda a vida do homem. E embora sem dizer, se formos analisar tudo quanto ele procura na sua existência, perceberemos tratar-se de algo que acha necessário ter; e todas as coisas que evita, o faz por julgá-las supérfluas ou nocivas. Ele tem, portanto, um seletivo originado de um conhecimento instintivo e elementar de si próprio, de suas atrações, fobias, bem como do que lhe é conveniente ou inconveniente.

Errôneo seria pensar que a criança não é passível de engano nessa seleção. Afirmo mesmo o contrário: com freqüência ela se equivoca. Por exemplo, deseja comer a bola a qual não é comestível e lhe causaria graves danos se fosse ingerida. Além disso, a criança toma toda a aparência como contendo a realidade, pensa que a bola é maciça, feita de uma substância daquela cor. De fato, a bola é vazia e quebradiça, como tantas outras coisas da vida.

A pergunta interessante que se põe é como seria esse seletivo no homem antes do pecado original. Suponhamos que Abel — o perfeito, o predileto, pré-figura de Nosso Senhor Jesus Cristo — tivesse sido concebido por Adão e Eva antes da queda, e nascido no Paraíso terrestre. Como seria a inocência de Abel? Como ele tomaria contato com as maravilhas do Paraíso? Qual seria a conduta dos animais, das plantas, etc., para com Abel pequenino?

Respondendo a essas indagações teríamos idéia do plano A de Deus2 quanto aos homens, e como se desenvolveria a inocência da criança de modo perfeito, sem as claudicações e desordens oriundas da culpa original.

Disso trataremos em próxima exposição.

1) Situada em frente ao apartamento em que Dr. Plinio residia com seus pais, desde o início da década de 1950.

2 ) Conforme ensinava Dr. Plinio, para cada pessoa, família, nação e até para a humanidade, Deus tem um plano, cumprido o qual elas atingem a perfeição e, assim, dão glória ao Criador: é o plano A. Sendo infiéis a este desígnio primeiro, o Altíssimo lhes oferece um plano B. Mas, além de ser justo, Deus é misericordioso. E, na sua infinita bondade, a alguns que não seguiram seu plano A, Ele lhes proporciona um plano A+A.