jueves, noviembre 28, 2024

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“O Senhor ouviu a voz do meu pranto”

Concluindo seus comentários ao Salmo 6, Dr. Plinio tece uma tocante análise do pecado, do pecador e do arrependimento sincero. Tal contrição não deve ser um choro estéril, e sim o verter de lágrimas regeneradoras, próprias a transformar um morfético em perseverante lutador de Deus.

Como dissemos na primeira parte de nossas reflexões acerca do Salmo 6, esses textos do Rei e Profeta David, inspirados pelo Espírito Santo, são próprios a avivar em nós o horror ao pecado. Falam da alma que chora suas lacunas e faltas, arrependida de as ter cometido e desejosa de receber o perdão divino.

Deus quer nos livrar do pecado

Então, o Salmista prossegue:

Volta-te, Senhor, e livra a minha alma; e salva-me pela tua misericórdia.

O pecador diz “volta-te”, porque Deus está com o rosto desviado noutra direção. Quando o Altíssimo, atendendo ao apelo dele, o observa, a prece continua: “Livra a minha alma, em perigo de recair nas garras do pecado; sinto nostalgias péssimas, desejos horrendos de praticar atos pavorosos os quais me deixaram saudades”.

Apenas Deus pode inteiramente livrar o homem destes apegos. Começando por lhe incutir horror e também a tristeza de O ter ofendido, acompanhados do desejo de ser salvo.

Deus quer sempre nos resgatar das presas do mal. É nosso Redentor e Salvador. Portanto, com confiança, humildade, rastejando no chão, porém com o olhar repleto de amor, devemos nos aproximar d’Ele.

Porque na morte não há quem se lembre de Ti; e na habitação dos mortos, quem te louvará?

Trata-se aqui da morte da alma — isto é, o pecado — e não a do corpo. O que se acha em pecado mortal tem menos propensão a se recordar de Deus, exceto se receber uma graça de arrependimento.

Este afastamento de Deus se refere não somente aos pecadores que permanecem nesta Terra, mas sobretudo aos lançados no inferno, a “habitação dos mortos”, onde tal separação é irremediável.

Os indizíveis tormentos do inferno

Para se ter pálida idéia a respeito desse lugar de sofrimento perene, suponhamos que nos fosse dado ouvir os brados de aflição, dor, ódio e inconformidade eternos a escaparem dali, bem como a sentir os maus odores exalados pelas matérias pútridas de que está semeado, e o calor proveniente das chamas inextinguíveis. Imaginemo-nos ainda vendo figuras hediondas, enquanto um anjo nos explicasse: “Observe aquele precito transformado num leopardo medonho cuja pele, em vez de manchas, tem feridas; anda de um modo grotesco, seus urros são ridículos, e todos os outros condenados o açoitam, jogam-no em fogueiras mais profundas, e um demônio mais poderoso o obriga a engolir brasas. O inferno dura para sempre, e nele não há dia nem noite, apenas tormentos, tormentos, tormentos…”

Poder-se-ia objetar: “Mas, no inferno há somente almas e não corpos”.

Respondo que, segundo o ensinamento da Igreja, quando houver a ressurreição dos mortos a carne do precito se unirá à sua alma no inferno, onde padecerão eternamente. De maneira que tais metáforas nos ajudam pela imaginação a compreender a realidade desse castigo. Aliás, é importante, fundamental mesmo meditar nessa verdade, para o bem de nossas almas.

A lição do pranto regenerador

Estou esgotado à força de tanto gemer; lavarei o meu leito com lágrimas todas as noites, regarei com elas o lugar do meu descanso.

Quer dizer, esse pecador arrependido geme durante o dia e à noite, chora. Enquanto o resto dos homens dormem tranqüilos nas cidadezinhas da Judéia, da Galiléia, etc., somente ele está acordado, porque sua consciência o atormenta, reprovando o mal que praticou. Está junto a seu leito, derrama tantas lágrimas que poderiam lavar o lugar de seu repouso.

Gostaria que minhas palavras fossem capazes de real­çar e tornar sensível a meus ouvintes a extrema beleza dessas figuras empregadas pelo Salmista.

Na Terra Santa, os cenários noturnos são em geral estrelados, irisados de luares estupendos, em contraste com a natureza meio calcinada e pobre, deixando-se admirar, aqui e ali, uma flor ou uma folhagem bonita. Imaginemos uma noite quente, sem vento nem brisa, tudo quieto e em silêncio, interrompido de vez em quando pelo ruído de um animal perseguindo e devorando outro. Todas as pessoas se recolheram, exceto um homem, de pé na soleira da porta de sua casa.

Ele fita o firmamento e cada estrela, com o pulsar de sua luz, lhe dá a impressão de ser um anjo que lhe diz: “Ladrão, ladrão, ladrão; adúltero, insincero, falso, pérfido!”

Isso lhe comprime o coração. Entra em sua casa e, não sentindo bem-estar em local nenhum, começa a chorar. Ao fim do pranto ele escreve uma carta para Deus: o Salmo 6.

Fotos: S. Hollmann
Deus se compadece do pecador contrito, e acaba por ouvir a súplica dele — em favor de si mesmo e de seus inimigos
O filho pródigo acolhido de volta pelo pai – Vitral da Catedral de Bourges, França

Dessa forma, sem saber, ele ensina a todos os homens dos séculos vindouros a terem horror de seus próprios pecados, e chorarem de compunção. Essa é a grandiosa concepção desse belo texto sagrado.

Chamo a atenção para a frase: “regarei com as minhas lágrimas o lugar do meu descanso”, que encerra um paradoxo. Pois o lugar do repouso do homem de consciência tranqüila não é adequado para chorar e muito menos ser lavado com lágrimas. Seu leito é limpo, arrumado durante o dia pelas mãos castas da esposa ou da filha, e perfumado com ervas aromáticas. Isso para o homem justo, mas não para ele, pecador, que somente se alivia quando chora. Contudo, se não vigiar, pode cair num círculo vicioso — recordar seus pecados e chorar, derramar lágrimas e lembrar-se de suas faltas — que só será interrompido por um socorro vindo do Céu.

Lágrimas em oposição ao riso

Os meus olhos se turbaram por causa do furor: envelheci no meio de todos os meus inimigos.

É uma linda expressão: “os meus olhos se turbaram por causa do furor”. Quer dizer, ele perdeu parte do lúmen de seu espírito, da clareza de sua inteligência, cujo símbolo é a vista humana. Tendo se convertido a Deus, ele rompeu com os maus que o odiavam, tornando-se estes seus inimigos. Ele, vivendo no meio dos adversários, envelheceu. Enquanto os ímpios estavam em festas, dançavam, riam e pecavam, ele, mergulhado em dores, rezava o Miserere, o De profundis, procurando um jeito de sair da encruzilhada em que se encontrava. Era o homem do pranto, e os maus, as pessoas da gargalhada.

Que contradição! Poderia ele afirmar: “Fui um servidor da gargalhada e hoje o sou das lágrimas. Senhor, fazei com que pelo menos meu choro seja útil para minha alma e para vossa glória.”

Estado de espírito modelar

Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniqüidade, porque o Senhor ouviu a voz do meu pranto.

A graça de Deus vai dando força a este homem, até então um pecador que tremia inteiro. Agora ele se volta com coragem para os artífices de sua degradação moral e lhes invectiva: “apartai-vos de mim!”

O senhor ouviu a minha súplica, o Senhor ouviu a minha oração.

Finalmente, Deus teve pena desse pecador arrependido e este, num gesto de decisão, de vitória sobre o respeito humano que não tinha tido antes, entrou em luta contra seus inimigos e os escorraçou. Diante de Deus, ele era um doente, um morfético, transformado subitamente num guerreiro.

Sejam confundidos, e em extremo conturbados todos os meus inimigos; retirem-se e sejam num momento cobertos de vergonha.

É valioso o ensinamento contido neste último versículo do Salmo: se pedimos perdão a Deus e fomos atendidos, devemos querer também que Ele perdoe nossos inimigos.

O estado de espírito desse penitente é modelar. Ele almeja a cura tanto para si quanto para os outros que lhe fizeram mal.

Porém, aos que resistirem à graça e combaterem contra Deus, quer que sejam confundidos, e o sejam até o extremo.

É a postura justa e necessária de um verdadeiro filho e servo amoroso de Nosso Senhor.

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