Colonizado por espanhóis e portugueses, a América Latina conjuga de forma harmônica a combatividade hispânica com a doçura lusitana
Abaixo, estátua de Pedro Álvares Cabral, em Lisboa; na página da direita, “Dom Pelayo”, héroico combatente espanhol, cuja saga teve início nas montanhas de Covadonga, onde se encontra esta sua imagem

Desenvolvendo uma tese histórica que lhe era muito cara, Dr. Plinio nos mostra como, ao lado da galhardia e da firmeza próprias à Espanha, representada na América Latina pelos povos hispanos, a bondade portuguesa — herdada e cultivada pelo Brasil — desempenha o papel do “azeite” da harmonia e da conciliação.

Ao considerar o que discorremos a respeito do Brasil em anterior exposição, alguém poderia levantar a seguinte pergunta: “Doutor Plinio, pelo modo de descrever o Brasil, o senhor indica uma série de características que também existem nos povos ibero-americanos, embora de forma mais tênue. O senhor parece menosprezá-los… Qual o papel deles?”

Duas missões necessárias e complementares

Não me agrada velar os problemas. Por isso apresentei a questão com inteira clareza, e passarei a respondê-la.

Imaginem um magnífico pomar. Para conservá-lo e fazer com que suas árvores produzam saborosos e abundantes frutos, é necessário protegê-lo por uma cerca monumental. Assim, tudo quanto existe, por mais que seja dadivoso, comunicativo, precisa de defesa. Porque se perder a identidade consigo mesmo, a própria tarefa que exerce desaparece.

V. Domingues

Portanto, é fundamental que haja, ao lado da generosidade, o vigor de quem a defende. Analogamente, ao lado do princípio de conciliação e harmonia próprio ao brasileiro, deve existir o da resistência, proteção, polêmica, representado pelas nações hispano-americanas as quais completam assim a missão do nosso continente. Estas, então, em nível discreto, contribuem para que a grande unidade latino-americana possa influenciar poderosamente o mundo, pela bondade e pela combatividade.

De nenhuma maneira será o domínio pela força, mas sim a amizade banhada pelo azeite. Claro está que o Brasil tem combatividade e a América hispânica, doçura; porém, cada nação ou grupo étnico conserva sua tônica.

Com base nessa visão de conjunto, percebe-se que esse imenso continente vai entrando para a História.

A esse respeito tenho uma peculiar impressão, digamos uma hipótese e não certeza: por mais que a América Latina tenha recebido imigração de outros povos, ela é fundamentalmente constituída por portugueses e espanhóis. Ora, com a Espanha e Portugal aconteceu algo deveras curioso.

Excluídos do banquete do século XIX

Para o festim da civilização promovido no século XIX e grande parte do poluído século XX, todos os povos da Europa foram convidados, exceto duas nações, para as quais restaram apenas as migalhas do banquete: Espanha e Portugal, consideradas meio-termo entre a América Latina e a Europa.

Tem-se a impressão de que o grande progresso estacou nos Pireneus e depois penetrou naqueles dois países se arrastando, cresceu e dominou pouco. Porque a Revolução — tendo zombado dos Alpes e se encarapitado até no Mont-Blanc — sentiu entretanto que se transpusesse os Pireneus e desse importância a Portugal e Espanha, estes, pelos restos de sua fidelidade à Igreja, entrariam na festa com algumas cotas de Contra-Revolução, as quais lhe atrapalhariam. Então foram postos de castigo num quarto escuro enquanto a Revolução dançava ciranda com os outros povos europeus.

Creio que esta fidelidade terá seu prêmio. E não poderá consistir apenas no florescimento da América Ibérica, pois quando esta atingir seu apogeu, Espanha e Portugal se incorporarão a ela, formando um só todo. Não serão, portanto, como vitrines de museu, mas unidades vivas, cheias de tradição e glorificadas porque não comeram ou pouco se serviram do banquete da Revolução. E por terem sido desprezadas, serão recebidas com amor na mesa dos filhos de Nossa Senhora.

A Santa Igreja adornada pela riqueza de cada povo

Uma das glórias desse conjunto acima descrito é ser o mais parecido possível com a Igreja. Esta foi entrando, penetrando nas mais variadas nações e se “apropriou” de tudo quanto era aproveitável, com uma naturalidade assombrosa.

Por exemplo, a mitra e o báculo usados pelos bispos. Não se imagina a formidável ginástica histórica que tais símbolos representam. A mitra era um chapéu outrora utilizado pelos homens da Síria. A Igreja, através do “jeitinho”, o adaptou e o aperfeiçoou para ser o ornato da cabeça desses prelados.

Como senhora da alma de todos os povos, a Santa Igreja adotou e aperfeiçoou os melhores valores de cada um, além de adaptar certos costumes para transformá-los em ornatos de sua própria dignidade, como no caso da mitra e do báculo episcopais

Quanto ao báculo, a Igreja se inspirou no cajado de que se vale o pastor de ovelhas para elaborar esse distintivo do bispo, pastor das almas. E é toda a civilização pastoril dos tempos bíblicos que revive nas mãos dos incontáveis guias do rebanho de Deus espalhado pelas vastidões do mundo.

E assim a Igreja foi escolhendo as coisas com naturalidade e se adornando como senhora da alma de todos os povos, imergindo no que eles têm de mais interno. Tornando-se católica, cada nação permanece ela própria, e a Igreja realiza o papel de um azeite sagrado, abençoado, que se espraia pelos povos.

O inimaginável esplendor do Reino de Maria

Por fim, um ponto interessante.

Haverá missão mais parecida com a obra da Igreja no campo espiritual, do que a do Brasil? E povo mais feito para o pleno desabrochar da Esposa de Cristo do que o brasileiro?

A Igreja pacificou contendas, mas também lutou contra erros, teve de dizer “não”, e a epopéia da cavalaria marcou as páginas da sua história. Compreende-se, então, ser preciso o sangue espanhol para dar ao povo brasileiro um complemento sem o qual nem neste País nem na América Ibérica o todo estaria harmônico.

Tudo isso é magnífico, mas seria como a calçada que conduz a uma catedral, pois se refere ao aspecto temporal. O suco é a graça, que defluirá da Sagrada Eucaristia, através de Nossa Senhora, para os fiéis que rezarem seriamente. E Deus agirá de forma especial em cada um, constituindo avenidas novas de santidade, pelas quais há de trilhar gloriosamente a Igreja.

O piso externo do templo foi possível prever. Como será seu interior?

Se imaginássemos uma calçada feita de safiras e rubis poderíamos formar uma idéia do esplendor da catedral. Passeamos pelo pavimento. Peçamos a Nossa Senhora que nos conserve e desenvolva para sermos construtores da catedral. E que ainda nesta Terra possamos louvar o templo para cuja edificação tivemos a imerecida honra de sermos instrumentos. Será o Reino de Maria!