Uma bela gravura do século XVIII1 retrata uma cena quotidiana na Praça Santa Maria Novella, em Veneza. Local de pequenas dimensões, no qual se leva, sem dúvida alguma, uma existência de intimidade. Entre os personagens ali presentes, entre as próprias casas, nota-se uma espécie de fraternidade. Essas moradias parecem irmãs, aconchegadas umas nas outras, assim como as pessoas, envoltas numa certa suavidade, uma certa familiaridade.
Porém, cumpre observar, trata-se de uma intimidade cerimoniosa. Nessa praça não há ambiente, por exemplo, para se sair de pijama. Há, sim, uma calma feita de tradição, uma forma de bom gosto difuso em todos os seus aspectos. Cada coisa manifesta seu estilo: duas ou três fachadas, discretas e bonitas; um palacete ao mesmo tempo exíguo e pomposo, ornado de uma coroa de conde e com seu átrio imponente. É um valioso detalhe no cenário.
Observando-se a movimentação dos personagens, tem-se a impressão de que houve, ou haverá uma representação teatral sobre um palco armado num dos lados da praça. Ao fundo ergue-se a fachada da igreja paroquial, de graciosos contornos e, sobretudo, a torre do campanário, elegante, de linhas harmônicas e distintas; a parte inferior forte e vigorosa, como que suportando a leveza do segmento superior e contrastando de modo bonito com o ligeiro do resto.
Na fachada de uma das casas, mais bela que as outras, embora de tamanho comum, apenas com um jogo de distância e proximidade de janelas obteve-se um efeito de muita categoria. Compõe-se de duas partes: uma, feita de aberturas estreitas, cujo exíguo é compensado pela grandeza das portas embaixo e pela base robusta. A outra parte constitui quase uma fachada diversa, e essas duas frentes juntas dão idéia de largueza agradável, movimentada, interessante.
Talvez fosse exagero qualificá-la de uma obra-prima, mas é preciso reconhecer que a escola segundo a qual isto foi construído é uma grande escola. Não se trata de investir mais ou menos dinheiro na edificação. É questão do bom gosto, do critério acertado, do espírito, da alma bem orientada que deu forma a isto e o situou de maneira esplêndida neste local.
As moradias parecem irmãs, aconchegadas umas nas outras, assim como as pessoas, envoltas por uma serenidade e uma familiaridade cerimoniosas…
Outras fachadas também nos chamam a atenção pela simetria e o estilo bem trabalhado. Algumas compensam a simplicidade pelo jogo de janelas, pelas portas grandes e ricas, e por quaisquer imponderáveis, presentes aqui e ali, conferindo singular beleza a tudo.
Vale notar como essa praça ficaria falha se não houvesse o poço no centro dela. Na verdade, faltar-lhe-ia alguma coisa, e ela pareceria imensa, desproporcional. Donde o papel extraordinário do poço, que constitui o que poderíamos chamar de centro psicológico superior.
Também nos fazem sorrir alguns aspectos que indicam a presença do povo. Este constitui o elemento calorífico das coisas. Onde há povo, há calor humano. Sem ele, o ambiente se transforma numa espécie de cristaleira… Então se vê, por exemplo, uma chaminé, verdadeira maravilha no seu gênero, e uma escada apoiada nela. Logo imaginamos o italiano que a limpa, coberto de fuligem, cantarolando sua ária preferida. Dali a pouco ele encosta os esfregões e desce para almoçar. Enquanto ele se distancia, sopra um vento forte, toca na escada e a derruba: ela vai caindo sobre uma menina que passa brincando, mas a matrona na casa em frente invoca Santo Antônio e a escada desvia. É um momento da vida na Praça Santa Maria Novella!
Todos esses pormenores me parecem assaz pitorescos. Como é pitoresco o gradeado que serve para se bater os tapetes das casas: chega até ele a mamma, braços roliços acostumados a amassar o macarrão, estende o tapete, a cortina, a colcha, etc., e começa a espaná-los vigorosamente. Claro, trocando animados comentários com a vizinha, enquanto a poeira sobe e se confunde nos ares da praça. Noutro canto, vê-se um instrumento para servir a alguma arte manual, ele também maravilhosamente encaixado neste panorama urbano.
Analisada assim essa gravura, poder-se-ia dizer que fizemos uma forma de contemplação. Pois a consideramos com espírito contemplativo, procurando discernir naquele ambiente do século XVIII o que ele possuía de afim com o espírito católico, buscando perceber e apreciar a alma humana que o engendrou, uma alma naturalmente virtuosa, que seja a imagem de Deus e para Ele se oriente.
Se nos acostumássemos a observar as coisas desse modo, imitaríamos o sábio que faz reflexões sobre a vida, que a conhece e a entende, inspirado pelo senso comum dos valores da existência que elevam seu espírito ao mais alto, até a Sabedoria infinita.
1) Essa gravura decorava a sala de trabalhos e atendimentos de Dr. Plinio, na sede principal de seu movimento, em São Paulo.