Ao narrar os episódios ocorridos no seio de sua família nos primeiros anos vividos em São Paulo, Dª Lucilia costumava ressaltar a paz, a distinção e a benquerença dos tempos em que formou sua mentalidade. Habituada a esse tom superior, conservava porém na alma o gosto pelas diversões singelas.
Dedilhando o bandolim
Entre os passatempos caseiros, encontramo-la já bem cedo voltada para a música, arte em que se refletia aquele seu estilo de relacionamento com os outros, todo imbuído de inocência. Além de dominar com facilidade o piano, encantava-se também com o bandolim. Deslizava suavemente os dedos entre as cordas e as madrepérolas de um desses instrumentos, presenteado pelo pai, e que ela conservou com carinho até seus floridos 92 anos.
Dona Lucilia deslizava suavemente os dedos pelas cordas e madrepérolas do seu bandolim, conservado por ela com carinho até o fim da vida
Sensível à beleza da natureza vegetal, agradava-lhe, nos verdejantes parques da pacata e distinta São Paulo de então, colher algumas flores. Por ocasião da Semana Santa, desabrochava a do maracujá. Notava-se nela peculiar coincidência em relação ao tempo litúrgico, pois possuía algumas particularidades que lembravam os instrumentos da Paixão. Razão pela qual é conhecido como “Flor da Paixão”. A essas características da flor se acrescia ainda a de um raro e agradável sabor da fruta, tornando-as, uma e outra, alvos das atenções de Lucilia, que as colhia em um pé existente perto de sua casa. Comprazia-se em mostrar a beleza que há no fato de a Providência ter feito uma flor para conter, como num relicário, as lembranças dos sofrimentos de Nosso Senhor. Assim, algo tão frágil lhe trazia austeras reflexões; talvez, por seu simbolismo, a considerasse a rainha das flores e não a rosa, como correntemente os poetas imaginam.
Apesar do elevado tônus de sua vida doméstica, das elegantes festas, das visitas entretidas ou passeios agradáveis, ou ainda das atraentes músicas, Lucilia sentia falta dos bosques, prados e pomares. Após a aquisição, por seu tão querido pai — já muito mais experimentado nas coisas do campo — de uma propriedade em São João da Boa Vista (SP), em 1895, pôde ela satisfazer seus anseios.
Saudades de umas boas galopadas
Primorosamente organizada, com uma área de 1800 ha, a fazenda Jaguary era adornada por um lago e cortada de fora a fora pelo rio Jaguari-Mirim. Este carreava pedras translúcidas que, à distância, pareciam preciosas, atraindo as crianças a com ela brincarem, e os adultos — menos poeticamente — a transformarem-nas em fichas de jogo.
As viagens à fazenda eram facilitadas pela proximidade da estação da estrada de ferro, cujos trilhos cortavam a propriedade. Durante as temporadas que ali passava, um dos grandes atrativos da jovem Lucilia era cavalgar — com sela de senhora, bem entendido. Muitos anos depois, recordar-se-á numa carta: Quando era moça, gostava imenso de umas boas galopadas a cavalo, e é com saudades que guardo esta lembrança de meu passado, sobretudo porque esses passeios eram sempre feitos em companhia do meu muito querido pai.
Sua candura, aliando-se facilmente aos encantos da natureza, desenvolveu-lhe na alma um acentuado gosto por lugares abertos. Apreciava o frescor da vida do campo, desde as flores selvagens até o leite gordo, os bolos saborosos e os legumes colhidos na hora.
Pescarias em águas cristalinas, breves caminhadas em trilhas que se embrenhavam um tanto na mata, o canto de graciosos pássaros e o belo colorido das borboletas azuis, quanto esse conjunto a empolgava!
Mas os passeios de Lucilia não se limitavam às suas viagens ao interior paulista. Muitas vezes, Dr. Antônio passava temporadas com a família em Santos, no Hotel Parque Balneário, habitualmente freqüentado pela boa sociedade de São Paulo. Levava-o a isso, entre outros motivos, o fato de ser sócio de uma firma exportadora de café, nessa cidade portuária. Em outras ocasiões, ia à Petrópolis de ares imperiais.
Visitas à cidade imperial
Além de gozar de todo o prestígio de uma encantadora cidade-filial do Rio, possuía Petrópolis as mil amenidades do alto de montanha. Embora não tivesse mais a importância desfrutada no tempo do Império, significativos restos de vida social ainda nela coruscavam.
De outro lado, continuava a ser uma espécie de subcapital e sede permanente das Legações Diplomáticas. Nesse antigo centro de colonização alemão, onde outrora se desenvolvera a distinção e o charme da vida de Corte, todos os tratados internacionais ainda eram firmados, e tanto embaixadores quanto as melhores famílias do Rio de Janeiro continuavam a manter ali suntuosas moradias. O palácio do velho Imperador estava agora fechado, envolto em silêncio, habitado apenas pelas reminiscências felizes e saudosas de uma era que passara…
Isso não impedia os alegres cariocas de aproveitarem o clima aprazível que as alturas ofereciam, e lá se refugiarem do calor da Capital, na época mais quente do ano. Nesse período a cidade serrana fazia reviver, em sua atmosfera, algo da animação do passado. As ruas readquiriam movimento, os carros puxados a cavalo voltavam a encher os ares com seu ruído característico, os palacetes reabriam suas portas e os hotéis regurgitavam de hóspedes distintos. As senhoras não perdiam ocasião de retirar de seus imensos baús belos vestidos, cujo corte elegante a última moda de Paris ditara.
Para lá afluíam também de outros pontos do Brasil, em especial de São Paulo, famílias tradicionais. Dona Gabriela e os seus se hospedavam habitualmente no Hotel Europa, chegando mesmo, em alguns anos, a lá passar o réveillon. Tendo a família Ribeiro dos Santos muito bom relacionamento com a elite do Rio de Janeiro, era a jovem Lucilia convidada para as festas que com freqüência se organizavam.
Acostumada aos ambientes paulistas, onde a gravidade era a nota dominante, aliada até a uma certa monumentalidade — da qual a ilustre matriarca Dona Gabriela era um característico exemplo — ela terá por certo notado quão diferente eram os cariocas com seu risonho charme.
Dessas inesquecíveis estadias guardou, para toda a vida, inúmeras recordações. Uma delas foi a relação de amizade que sua família travou com o ministro plenipotenciário da Rússia Imperial no Brasil, Conde Maurice de Prozor.
Naquele tempo em que a arte de conversar era a principal distração da vida social, muito devem ter impressionado o espírito de Lucilia as histórias que o Conde de Prozor contava de sua longínqua terra natal, marcada pelos faustos da corte do Czar, uma das mais esplendorosas do mundo.
Anos mais tarde, por ocasião da Revolução Bolchevista, as relações entre os dois países ficaram suspensas. Não obstante, o simpático Conde de Prozor continuou a morar no Brasil, mantendo o contato com os Ribeiro dos Santos.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias; publicado parcialmente na “Dr. Plinio” número 11)