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“Porque ela se parecia com a Igreja”

Recordando o modo como Dona Lucilia lhe falava da doçura de Nosso Senhor e as narrações feitas por ela de episódios da História Sagrada, Dr. Plinio evoca seus primeiros encantos com o Divino Mestre e com a Santa Igreja, aos quais sua saudosa mãe lhe ensinou a amar desde a mais tenra infância.

Quando minha irmã e eu éramos pequenos, e nos preparávamos para a Primeira Comunhão, mamãe reforçava nosso curso de catecismo, contando-nos episódios da História Sagrada. E se hoje, passado tanto tempo, não sou capaz de distinguir os fatos que ouvimos dela e os que conhecemos na catequese, lembro-me entretanto do ambiente que mamãe criava ao narrar essa ou aquela cena do Antigo Testamento, uma parábola do Evangelho ou algum momento da vida de Nosso Senhor. Fazia-o de modo a nos imbuir dos sentimentos de piedade e devoção que um bom católico deve ter, ao se inteirar da história e da doutrina cristãs.

Fotos: Arquivo revista
Dona Lucilia aos 30 anos; acima, Rosée e Plinio

Salientava a doçura de Nosso Senhor e de Maria

Recordo-me de maneira especial que mamãe nos falava muito da doçura de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, fazendo-nos compreender tudo o que essa doçura tinha de carinho, afabilidade e bondade verdadeiramente penetrantes. Ao mesmo tempo, ao dizer que “Ele era bom”, esse “Ele” vinha impregnado da idéia de uma majestade superior à dos reis, da infinita nobreza divina refletida, pela união hipostática, na natureza humana d’Ele.

Então, pelas descrições de mamãe, percebíamos como tudo quanto Ele fazia era repassado de serenidade, de significado, e de uma sabedoria que transcendia a qualquer outra no mundo. Tais eram a bondade e a superioridade absolutas de Jesus, as quais Dona Lucilia nos apresentava ao nos contar os episódios bíblicos. Sem deixar de nos fazer ver também — cumpre notar — um fundo de tristeza que transparecia no Divino Redentor, por causa da Paixão que sofreria por nós. Esse aspecto estava igualmente presente nas narrações dela.

“Nas descrições dela, os desertos da Judéia pareciam poéticos como os arenais do Saara”

S. Patrício
Deserto da Terra Santa

Concepção lendária da Terra Santa

É preciso dizer, ainda, que mamãe imaginava um pouco lendariamente a Terra Santa. Quer dizer, para ela, os desertos da Judéia eram míticos e poéticos como os arenais de um Saara. Lembro-me de ela pronunciar certos nomes, por exemplo, Mar de Tiberíades: vinha de Tibério, imperador romano pagão, mas, ao dizer “Mar de Tiberíades”, na entonação da voz dela, parecia-nos ver as ondas se formando de modo prestigioso naquelas águas…

Quanto aos personagens do Antigo Testamento, mamãe os representava como profetas grandiosos, menos suaves e mais categóricos. Quando, mais tarde, conheci as imagens dos profetas do Aleijadinho, lembrei-me das descrições de Dona Lucilia e pensei: “Esses são bem os profetas que eu imaginava quando mamãe começou a me falar deles.”

Primeiros encantos com a Igreja

Pouco depois de nossa Primeira Comunhão, terminado o curso de catecismo, o meu vínculo estreito com mamãe me ajudaria a discernir outras riquezas da Igreja Católica. Eu ia com ela às Missas de domingo na Igreja do Coração de Jesus e, sentado ao seu lado, me punha a analisar o ambiente do edifício sagrado, e o conjunto que seus diversos aspectos formava com os ritos e simbolismos da celebração litúrgica. Então, considerava o som do órgão, do sino que tocava para anunciar a entrada do padre, as expressões de fisionomia desta ou daquela imagem, tal paramento, tal gesto, tal vitral que me parecia muito bonito — de tudo aquilo resultava uma soma, uma unidade incomparavelmente mais bela e preciosa do que a soma das pessoas ali reunidas.

De tal maneira que, quando aquelas pessoas saíam e o templo se esvaziava, essa riqueza do ambiente permanecia inalterada até a Missa seguinte, quando outros fiéis ocupariam aqueles espaços e encontrariam aqueles mesmos e precisos aspectos dispostos para a contemplação deles.

Na minha mente de menino formava-se a idéia — incipiente e confusa como só podia sê-lo na cabeça de uma criança — de que se tratava de uma graça do Divino Espírito Santo a pairar naquele ambiente, e que agia na alma das pessoas, levando-as a compreender e a amar as belezas da Igreja. Daí, também, a noção do sagrado do templo católico, casa de Deus, onde se entra para adorá-Lo.

“Querendo bem à Igreja, queria bem à mamãe”

A concepção artística do interior da Igreja do Coração de Jesus é muito própria a despertar essas impressões. Por exemplo, do banco onde mamãe e eu costumávamos ficar, podia-se ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus, na nave esquerda, e a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, do lado direito. Eu considerava aquelas imagens, que sempre me tocaram, analisava as decorações em volta, as pinturas que representam cenas bíblicas, as outras imagens de santos e, sentindo também a presença de mamãe, pensava: “Como ela se harmoniza tanto com todo esse ambiente! Como tudo isso penetra na sua alma e faz um com ela! Querendo bem a ela, quero bem a isso. Mas também, querendo bem a isso, quero bem a ela!”

“Se quis tanto bem a mamãe, foi porque percebi em sua alma um reflexo da graça que pairava na Igreja do Coração de Jesus”

M. Shinoda

Aspectos do interior da Igreja do Coração de Jesus, São Paulo

Embora eu não conhecesse o conceito de “reversibilidade”, na minha cabeça estava a idéia de que havia uma analogia, uma certa semelhança, uma como que reversibilidade entre a Igreja e mamãe.

Cumpre dizer que a Igreja me impressionava incomparavelmente mais do que mamãe. E se é verdade que o convívio com Dona Lucilia me ajudou a compreender a Igreja, mais ainda a Igreja me ajudou a amar mamãe, porque eu a amei por ser ela um reflexo daquela Igreja à qual eu devotei minha vida inteira. Se quis tanto bem a mamãe, foi porque percebi na sua alma um reluzimento da mesma graça que pairava na Igreja do Coração de Jesus.

Lógica e coerente, como o lado racional da religião

Essa idéia da reversibilidade entre o espírito de mamãe e a Igreja se acentuou ainda mais quando comecei a freqüentar o Colégio São Luís e, neste, além do contato mais assíduo com as práticas de piedade, fui conhecendo, pelos ensinamentos dos padres jesuítas, o lado racional da religião.

Como sempre tive particular apreço pela lógica, de um lado, e, de outro, como os jesuítas raciocinavam muito bem, diante de todo raciocínio bem feito por eles eu me extasiava: “Isso está direito, concatenado, é assim que se raciocina!”. E através daqueles ensinamentos, eu admirava o pensamento sério da Igreja que chega às últimas conseqüências. Encantava-me e me alegrava, com a alegria que a certeza tem de sentir-se a si mesma.

E então, voltava-me para a figura de mamãe: “Veja como ela é uma simples senhora, uma mãe de família, mas, naquilo que posso discernir dela, como é semelhante a tudo isso que me ensinam da Igreja. Como ela é lógica, coerente e direita! Portanto, eu a amo e a quero, porque ela se parece tanto com a Santa Igreja Católica!”

(Extraído de conferência em 21/9/1982)

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