Não obstante a breve referência que dele se faz no texto sagrado, a figura do Apóstolo São Matias sugere a Dr. Plinio o perfil de um “varão bem-amado de Deus”, suscitado pela Providência para, com o exemplo de suas virtudes, apagar a mancha que o discípulo traidor deixara na história da Igreja.
Como se sabe, São Matias foi escolhido por meio de um sorteio, para substituir Judas Iscariotes no colégio apostólico. Sobre ele podemos ler alguns comentários, primeiramente em Dom Guéranger, abade de Solesmes. Escreve este:
Pouco se sabe sobre São Matias. Somente que foi escolhido, após a Ascensão do Senhor, para substituir o traidor Judas Iscariotes. De acordo com uma antiga tradição grega, pregou o Evangelho na Capadócia e nas costas do Mar Cáspio e foi martirizado na atual Etiópia.
Alguns traços de sua doutrina foram conservados por São Clemente de Alexandria, entre eles uma sentença que parece ter sido característica desse apóstolo em sua pregação:“É preciso combater a carne e servir-se dela sem deleitá-la com culpáveis satisfações. Quanto à alma, devemos desenvolvê-la pela fé e pela inteligência”.
“Dom de Deus”
Outra biografia assim nos apresenta a pessoa e a vida do jovem Apóstolo:
Matias é nome freqüente entre os judeus e quer dizer “dom de Deus”. É o apóstolo que recebeu o dom do grande privilégio de ser agregado aos doze, tomando o lugar vago deixado pela deserção de Judas Iscariotes. Sua eleição foi mediante sorteio, após a Ascensão do Senhor, pela proposta de Simão Pedro, que em poucas palavras fixou os três requisitos para o ministério apostólico: pertencer aos que seguiam Jesus desde o começo, ser chamado e enviado: “É necessário, pois, que, destes homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu no meio de nós, a começar pelo batismo de João até o dia em que nos foi arrebatado, haja um que se torne conosco testemunha de sua ressurreição”.
Espectador da vida e obra de Jesus
Matias esteve, portanto, constantemente próximo de Jesus desde o início até o fim de sua vida pública. Testemunha de Cristo e mais precisamente da sua ressurreição, pois a ressurreição do Salvador é a própria razão de ser do cristianismo. Matias, portanto, viveu com os onze o milagre da Páscoa e poderá com todo o direito anunciar Cristo ao mundo, como espectador da vida e da obra de Jesus “desde o batismo de João”.
Também as segunda e terceira condições — ser divinamente chamado e enviado — estão claramente expressas pela oração do colégio apostólico: “Senhor, tu que conheces o coração de todos, mostra qual destes dois escolhestes”.
A eleição de Matias por sorteio pode nos causar espanto. Tirar a sorte para conhecer a vontade divina é método muito conhecido na Sagrada Escritura. A própria divisão da Terra Prometida foi mediante sorteio, e os Apóstolos julgaram oportuna a conformidade com esse costume. Entre os dois candidatos propostos pela comunidade cristã — José, filho de Sabá, cognominado o Justo, e Matias — a escolha caiu sobre o último. O novo Apóstolo, cujo nome brilha na Escritura somente no instante da eleição, viveu com os onze a fulgurante experiência de Pentecostes antes de se encaminhar, como os outros, pelo mundo afora a anunciar “a glória do Senhor”.
Nada se sabe de suas atividades apostólicas, nem se morreu mártir ou de morte natural, pois as narrações a seu respeito pertencem aos escritos apócrifos. À tradição da morte por decapitação com machado se liga o seu patrocínio especial aos açougueiros e carpinteiros1.
Era necessário que o escolhido fosse um “anti-Judas”, um varão excelente na linha em que aquele foi péssimo, e admirável em tudo quanto o traidor se mostrou abominável
Atraente e intuída personalidade
Essas curtas descrições nos levam a imaginar o que poderia ter sido a pessoa e a vida de São Matias. Quem era ele, afinal?
A narração do Evangelho, em geral sucinta, nos revela diversas personalidades, das quais o texto diz muito pouco, mas, pela natureza da missão delas, nos é dado delinear o perfil que tinham. Então, a respeito delas, adivinha-se algo que é quase mais saboroso em sua intuição do que nos traços biográficos propriamente ditos.
Tal se verifica, por exemplo, com a figura de São José. Deste só conhecemos a missão que lhe foi confiada e a correção com que a desempenhou. Entretanto, a respeito da sua personalidade, na letra sagrada, há apenas a afirmação de que era um varão justo. Nada mais. Ora, há mil coisas que se pode adivinhar dele, pelo simples fato de ter sido esposo condigno de Nossa Senhora, escolhido pela Providência, com a conseqüente paridade em relação à esposa que o perfeito casamento exige. Portanto, de São José compreendemos coisas indizíveis, embora não o revele a narração evangélica.
Aquele que apagou a mancha deixada pelo traidor
Imaginemos, então, quem foi São Matias.
Uma imensa lacuna se produzira no colégio apostólico. E o mais doloroso da história de todos os tempos: essa lacuna foi causada por um apóstolo traidor, que prevaricou a troco de dinheiro. O lugar dele ficou vazio, e era preciso alguém que, por suas reconhecidas virtudes, reparasse perante a justiça Divina o mal praticado por Judas Iscariotes. Necessário se fazia que o escolhido fosse um “anti-Judas”, alguém excelente na linha em que aquele foi péssimo, um homem que se demonstrasse admirável em tudo quanto Judas se mostrou abominável e execrável.
Assim, através dessas características, nos aparece São Matias, o discípulo da fidelidade e do desapego, o apóstolo da honestidade e da lealdade.
Um comentário a respeito dessa sentença que lhe atribuem: “É preciso combater a carne e servir-se dela sem deleitá-la com culpáveis satisfações. Quanto à alma, devemos desenvolvê-la pela fé e pela inteligência”. Por bela que seja, essa afirmação não rompe inteiramente o silêncio que pesa sobre São Matias. De maneira que, acredito, somente no Juízo Final provavelmente saberemos algo sobre a vida dele. Então conheceremos como terá sido de fato esse varão bem-amado de Deus, que realizou a extraordinária missão de ser aquele que, pela luz de sua virtude, apagaria a mancha de Judas na história da Igreja.
(Extraído de conferência em 23/2/1966)
1) Um santo para cada dia, Editora Paulus, 406 páginas.