Como será o Juízo Final? Cogitando a este respeito, Dr. Plinio aponta a relação existente entre o conjunto dos homens, a influência angélica na História e — no centro de tudo — a vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A fim de entendermos Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Rei, Profeta e Pontífice, convém fazer uma espécie de ligação entre a História e o Juízo Final.
Procuremos focalizar a cena do Juízo Universal, não de maneira puramente pictórica, figurativa, mas dando-lhe tanta realidade quanto possível, saindo da mera imaginação artística.
Os cojuízes
Creio que não devemos imaginar o Juízo à maneira terrena, onde Deus Nosso Senhor julga cada pessoa que desfila diante d’Ele, e todas as outras figuras permanecem mudas, não sabendo bem o que fazem dentro da cena. Isso não exprime a realidade inteira do Juízo Final.
Diz Nosso Senhor aos Apóstolos: “Em verdade vos digo: no dia da renovação do mundo, quando o Filho do Homem estiver sentado no trono da glória, vós, que me haveis seguido, estareis sentados em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel.”1 Como podemos nos representar essa cena?
Nunca tive tempo de estudar isso; pensando de cá e de lá, elaborei algumas idéias que coloco evidentemente à apreciação da Teologia, do Magistério da Igreja. É provável que precisem ser retocadas em algum ponto; meu objetivo não é o de fixar-me em pormenores, mas elaborar uma linha geral. Queira Deus que, pelo menos nessa linha geral, esteja tudo inteiramente certo.
A História da salvação
A linha geral é a seguinte: não devemos imaginar o Juízo como se nele fossem julgados apenas indivíduos, pois os atos que praticamos estão dentro da trama da História. Qualquer ação individual, por pequena que seja, atinge de algum modo a História, repercutindo na salvação ou na perdição de muitos homens.
Assim, cada ação tem, além do individual, um alcance maior, de ordem coletiva. Quer dizer, deve ser considerada como elemento de uma grande batalha.
Nossa própria luta individual não é apenas para fixação de nosso destino, mas um elemento da batalha entre Nosso Senhor Jesus Cristo e Satanás, para a conquista das almas. E, no plano de Deus, esta conquista não é somente individual, mas trata-se de preencher — com as almas conquistadas — os tronos deixados vazios pelos anjos rebeldes. Tenho a impressão de que o julgamento deve dar-se no contexto dessa batalha.
Quer dizer, o julgamento individual constitui um elemento dentro dessa cena, mas não posso imaginar que seja só isso.
Deus, centro da História
Outro ponto essencial a considerar: a Lei de Deus que devemos observar tem fundamento na realidade metafísica, e possui uma beleza de caráter estético.
No dia do Juízo Final o pecado que uma pessoa cometeu, por exemplo, insultando gratuitamente outra na rua, não será visto apenas enquanto consistindo uma injustiça praticada pela primeira contra a segunda; o caráter preponderante é a Lei que ela transgrediu, Deus enquanto insultado, e a ordem profunda dos fatos traumatizada pela atitude que tomou.
Tudo será considerado em função do Absoluto, portanto de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pontífice, Rei e Profeta; poderíamos analisar como o pecado atinge cada um desses atributos, e [influencia] no conjunto da batalha.
Dessa forma, o menor pecado, como o menor ato de virtude, praticados nesta Terra, são vistos nesse contexto.
Então, o Juízo Final é o julgamento que, devido às nossas limitações humanas, precisamos imaginar à maneira de um filme simultâneo de todas as ações, desde o começo até o fim do mundo, praticadas e vistas nessa perspectiva.
Nada faz tanto bem ao senso moral do que ter isto diante dos olhos. Compreendo que esse quadro complicado não pode ser apresentado numa aula de catecismo; entretanto, dever-se-ia encaminhar os alunos para que possam depois entendê-lo, deixando umas pontas de trilho para explicá-las posteriormente.
Creio que para dar aos acontecimentos essa morfologia, deve-se ter como centro a vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo e, depois, a História da Igreja.
Crescendo em graça e santidade
Recordo aqui uma teoria — seria preciso ver que fundamento tem na Teologia, mas julgo que alguma base possui, e não pequena — de que todos os fatos dessa luta são, em algum sentido, desdobramentos da batalha que Nosso Senhor teve em sua vida terrena.
Lançarei agora uma hipótese para que seja discutida, ventilada e, desde já, estou pronto e com entusiasmo a ser retificado em nome da Igreja:
Pela afirmação de que Nosso Senhor ia crescendo em graça e santidade perante Deus e os homens, entende-se que Ele tinha inteligência, vontade e sensibilidade na sua Humanidade Santíssima. Condicionado às várias idades pelas quais passava — não se sabe qual era o regime de revelações da Divindade com a Humanidade —, em sua Humanidade Ele ia aos poucos meditando, pensando, tendo em vista a situação do mundo, a História da salvação e até a própria Escritura. E a oração no Horto foi o ápice dessa cogitação.
Percebe-se — isso é tão santo — haver algo de verdadeiro nessa hipótese, e me agrada muito em meditar dessa forma.
A mim me deslumbra considerar a natureza humana d’Ele crescendo e até recebendo revelações da própria Divindade, num regime interno de relações que é insondável, transcende a toda cogitação. Porque Ele se sabia Homem-Deus, desde o primeiro instante de seu Ser. E, portanto, Rei, Profeta e Pontífice, conhecendo essa tríplice vocação ainda em criança. É lindíssimo cogitar como tudo isto foi evoluindo.
Ele, com trinta e três anos, viveu todas as idades. Tudo quanto se poderia deduzir desse crescer do pensamento d’Ele é uma coisa fabulosa! Tenho impressão de que a linha geral da História é o crescer da Igreja até chegar aos últimos tempos, à sua perfeição final.
Assim como Nosso Senhor Jesus Cristo cresceu em graça e santidade até chegar o momento do consummatum est, também a Igreja vai crescendo.
O acontecer humano não se cifra à mera “vidinha”
Assim, todas as ações são, no fundo, julgadas capitalmente segundo esse nexo.
Quer dizer, o Juízo Final é nesse ponto diferente do Juízo pessoal, que toma o indivíduo particularmente. A finalidade daquele é julgar os homens em conjunto, creio que para tornar sensível essa trama coletiva do acontecer humano, e promulgar solenemente as punições individuais que, postas no seu conjunto, são uma réplica nesse acontecer.
Tenho impressão de que isso acentua muito a verdadeira finalidade da vida humana: o homem nasce para entrar nessa luta e ter nela o seu papel, nesse quadro. Se ele procura apenas salvar a sua própria alma — abstraindo ou sendo indiferente a esse quadro —, sua vida não corresponde ao próprio fim; isto é próprio do “heresia branca”2.
Afirmou São Paulo: “…tornamo-nos um espetáculo para o mundo, para os anjos e a humanidade”.3 Ou seja, todo o acontecer humano não se cifra à minha vidinha, pois o Céu está vendo essa luta continuamente. Sem compreender isso, não há vida espiritual bem levada, a meu ver.
Mesmo a expressão muito boa “lutemos pela salvação das almas”, precisa ser vista com essa profundidade.
Nosso Senhor agiu em sua vida terrena e continua atuando no Céu, como Cabeça do Corpo Místico, e o grande lutador até o fim do mundo é fundamentalmente Ele.
Reversibilidade, luta dos anjos e dos homens
Por causa da reversibilidade existente em toda a Criação, devemos imaginar que há uma analogia entre a luta dos anjos e essa.
Os anjos nos ajudam, os demônios nos tentam, a mesma batalha continua. A esse título, cantar-se-á no dia do Juízo Final a glória de uns e se execrará a torpeza de outros, pela parte que tiveram no que na Terra se passou.
“Em verdade vos digo: no dia da renovação do mundo, quando o Filho do Homem estiver sentado no trono da glória, vós estareis sentados em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel.”
Há aqui uma coisa para a qual nunca encontrei explicação e que enuncio apenas colateralmente: lanha-me a idéia de uma luta de anjos que não tem nada a ver com a da Terra. Essas reversibilidades me são essenciais.
Sei que os anjos não podem mais crescer em mérito, e os demônios em culpa; mas eles fazem incontáveis coisas, respectivamente boas e más, ao longo desse tempo. E como a seu modo toda boa ação recebe um prêmio, e toda má ação um castigo, a intervenção deles nessa luta já deve ter sido premiada ou punida antes.
Em algo eles participam das glórias dos vencedores ou da vergonha dos derrotados. Então, a esse título, toda a Criação entra no Juízo Final.
Mais ainda, no fim do mundo, creio que serão lançadas no inferno todas as sujeiras da Terra, a qual ficará rebrilhando, repleta de ordem.
Coruscar simultâneo ou sucessivo do Juízo Final
Para compreendermos o sentimento que todos os bons terão em conjunto, no Juízo Final, consideremos um episódio qualquer, no qual se faça justiça. Por exemplo, o pai ou a mãe que dão algum presente ao filho bom, e castigam o outro ruim.
Uma outra criança, que não tem nada a ver com o fato, assiste a cena e é tomada de uma profunda solidariedade com o ato de justiça: possui uma alegria, a qual não é a da criança que ganhou o brinquedo, mas uma alegria em estado de néctar.
Teríamos, então, que imaginar as duas alegrias juntas: a do indivíduo que se sente posto na ordem universal, com a punição do mal, e, acima disso, a alegria por causa de Deus, que castigou. Esta é a melhor, o néctar.
Se o Juízo fosse simultâneo, num só instante haveria um imenso hosanna de todos os bons; se sucessivo, um mar de deleites para os justos, vendo que em todas as coisas foram postos os pingos nos is. Tudo isso nos dá uma idéia do gáudio que os bons teriam.
Compreendo que pode haver, no domínio ascético, certo risco de se entregar a essas considerações, porque facilmente o elemento inferior pode prevalecer sobre o superior. Mas desde que se faça isso ordenadamente, não existe esse perigo.
O elemento inferior, que é legítimo, entra também; porque do contrário somos introduzidos um pouco na ordem dos fantasmas, do irreal. Precisamos compreender que entra a realidade global, para nos sentirmos atraídos por inteiro.
Assim, poderíamos entender o coruscar simultâneo ou sucessivo do Juízo Final.
Continua no próximo número…
(Extraído de conferência de 8/12/1982)
1) Mt 19,28.
2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.
3) 1Cor 4,9.