Adão e Eva sendo expulsos do Paraíso - Museu do Prado (Madri, Espanha).

Quando analisamos a História, vemos que a cólera e a misericórdia divinas se alternam segundo características que, muitas vezes, não compreendemos bem. De fato, há certos momentos em que a misericórdia reluz com uma candura que nos encanta; mas, existem outros em que a cólera dardeja com uma majestade que nos entusiasma…

O tema que vós levantastes para a reunião de hoje é ao mesmo tempo admirável e misterioso. Parece haver entre os dois adjetivos certa contradição. Pela etimologia, admirar provém de admirare; mirare significa olhar, e admirare, olhar para. Admirável é aquilo que merece ser olhado.

Como aquilo que merece ser olhado pode ter mistérios? Pois o próprio do olhar é tender a resolver o mistério. Não se diria que o misterioso não é admirável e que o admirável não é misterioso?

De fato, o homem é constituído de tal modo que, quando ele admira muito, há na ponta do que admira algo que não entende. Não é alguma coisa que seja contraditória, na qual se disfarce de tocaia um absurdo. Mas é algo que o homem percebe ter uma explicação possível, mas ele não atina com a mesma. E não atina porque sente que a explicação é mais alta do que ele; então olha admirativo: “Se na ponta do que eu olho há algo tão alto, o que haverá na ponta daquilo que não vejo?”

Nesse sentido podemos dizer que o céu — o céu físico, sideral — é admirável, quer durante o dia, quer durante a noite. Mas não ousamos fitar o Sol, que conserva para nós algo de misterioso na comunicação esplêndida de suas luzes. Naquilo mesmo em que é admirável e luminoso, ele impede de ser visto.

Vemos o céu noturno, os milhões de estrelas; porém o sentido conjunto daquela estética nos escapa, embora entendamos que deve ter uma estética. E, sobretudo, sabemos, discernimos que há uma série de estrelas luminosas que não vemos — por serem muito pequenas ou muito distantes — e assim se perdem no mistério. Mas o céu fica ainda mais bonito quando compreendemos que, além do que vemos, há aquilo que não vemos.

Alternância do castigo e da bondade: tema admirável e misterioso

Assim, o admirável e o misterioso se conjugam. Iremos desenvolver a doutrina a propósito do tema: a alternação do castigo e da bondade; da misericórdia, da complacência, da meiguice, da ternura, de um lado; e do furor em todos os seus graus, diapasões, todas as suas modalidades, de outro.

Veremos como se compaginam — no sentido mais exato da palavra compaginar, quer dizer, como uma página segue a outra para formar um livro sobre o tema.

A alternação da justiça e da misericórdia na História

Podemos fazer a seguinte comparação: quando, num dia bonito, entra-se em certas matas, florestas, cuja vegetação não é muito copada, olhando para o chão, veem-se sombras e luzes. Em certo momento há um jorro de luz, que conseguiu abrir caminho no meio da folhagem, iluminando intensamente uma pedra, um bichinho, uma folha seca, que ficam lindos porque cai sobre eles aquele raio de luz.

No meio de um arquipélago de luzes, há um rendilhado de sombras às vezes tão profundas que se vê ainda algo do limo da noite, em pleno meio-dia. O Sol está a pique, mas as folhas impedem a entrada da luz.

Assim também é a História. Quem não conhece a ramagem no alto, não sabe explicar aqueles desenhos embaixo.

No solo da floresta há um colorido e percebe-se que existe alguma ordenação, algum sentido, alguma razão para aquilo. Mas sem olhar para cima não se percebe qual seja.

Analisando a História, notamos que há alternações de misericórdia e de santa cólera, magníficas, e ambas as coisas nos encantam. Qual é o fio da meada? Qual é o sentido dessa alternação?

Podemos apanhar o ponto de vista pelo qual se distribuem a cólera e a indignação? E saber quando estamos nos aproximando da cólera ou da misericórdia?

No vértice da misericórdia, neste vale de lágrimas, pode surgir uma indagação às vezes assombrosa: quanto tempo ela durará? Até quando esta bondade acompanhará os meus passos, tolerando as minhas infidelidades?

E no vértice da provação, uma pergunta cheia de esperança: Até quando irá esta provação? Não virá logo o dia da misericórdia? Quem sabe se ao voltar de uma esquina, no virar uma página de livro, no rezar a próxima conta do terço, no receber a Comunhão de hoje, chegará a hora da misericórdia… Às vezes, a misericórdia vem sem hora marcada, não se percebe e de repente se está inundado por ela. E tudo fica suave em torno de nós.

Como pegar o fio da meada de maneira a estarmos fora da meada da justiça e dentro da meada da misericórdia? Como decifrar isto para nossos pobres olhos de homem aqui na Terra?

A chave do enigma está em uma coisa mais profunda, que é a seguinte:

Figuremos todas as belezas que Deus pôs no paraíso terrestre, bem como a Lua, as estrelas. Podemos imaginar o que a natureza paradisíaca tem de inebriante, reto, próprio a pôr de pé e a elevar ao auge todas as inocências.

E havia o paraíso interno do homem. Sua alma inocente entrava em comunicação com aquilo que é santo, bom, verdadeiro, belo, passeando pelo Éden. Ficamos impressionados pensando no paraíso. Que maravilha!

À tarde sopra uma brisa, e vem Deus conversar com Adão.

Tanto quanto nossa inteligência limitada pelo pecado original — e pela nossa condição de homem — pode entrever, Deus ou se manifestava a Adão diretamente, mas socorrendo-o para ele não desfalecer ou se desfazer, mísera criatura nas mãos do Criador; ou Deus, pelo contrário, fazia com Adão “Ambientes e Costumes” do Paraíso1, sem Se mostrar, mas ajudando-o a olhar as coisas. Algum pobre rubi espalhado pelo chão, um pássaro de ouro, uma águia que parecia feita de esmaltes, um beija-flor mais delicado e mais doce do que todos os beija-flores da Terra.

Adão olha para tudo aquilo encantado, e o Criador lhe sopra ao ouvido: “Isso Me explica de tal maneira, aquilo de tal outra.” E Deus, cuja ciência é infinita, penetrando até o fundo da alma de Adão, vendo as reações dele, amando-as; e produzindo-as uma depois da outra, com afago, contentamento, comprazimento com que um artista lapida uma pedra e vai compondo uma joia: Deus vai formando a mentalidade de Adão, o primeiro homem no qual estão contidos todos os homens e o sexo feminino que será tirado, numa hora de sono, de uma de suas costelas.

O momento misterioso em que Deus se afasta de Adão e o deixa sozinho com a serpente

Podemos bem imaginar qual é a ternura de Deus para com Adão. Há, entretanto, um momento — momento arcano, misterioso — em que o admirável muda de cor e passa de luminoso para misterioso. E, caso se pudesse dizer isto de Deus — não se pode —, Ele Se afasta de sua obra-prima, ganha distância e deixa Adão sozinho.

Em determinado momento, entra a serpente que Deus criou, e incubada nela está o demônio que se revoltou contra Ele. Deus permite que o ente imundo, leproso, execrável, infame, penetre no paraíso embuçado como uma serpente e vá tentar Adão e Eva.

Sagrado Coração de Jesus – São Paulo, Brasil.

E no momento da tentação, é certo que Deus continua a ajudar, e dá a Adão e Eva uma proteção até generosa, mas não tão grande por onde eles não possam pecar. Ele lhes concede — se quiserem usar uma expressão própria a esta Terra — todas as antitoxinas, mas permite que o animal tóxico os morda.

Nesse instante, dir-se-ia que o afago cessou e o Juiz está contemplando. E de repente uma distância infinita se faz sentir entre Deus e Adão e Eva; e o drama começa a se desenrolar.

Na véspera, na hora da brisa, Ele tomava a alma de Adão, a osculava, estimulava; naquele dia o Criador olha para a alma de Adão com o mesmo sentido de investigação, mas sem manifestar comprazimento, Ele está julgando: “Quem é este, e como agirá contra Mim? Chegou o momento em que vou pedir contas de tudo quanto lhe dei.”

Nesta hora a misericórdia, sem desaparecer da cena e continuando a atuar, ficou de um lado. Mas, do outro lado o furor começa a se armar sob a forma de uma simples expectativa, no começo: “Que dará esse homem?”

À medida que o homem vai cedendo às inflexões da voz divina, o Criador é todo misericórdia. Se Adão não a escuta, essa voz clama por justiça: “Eu dei, fiz, ensinei, expliquei, afaguei, acariciei, em tal dia, tal outro. Agora, quero saber que proveito tiras disso. Entra na minha presença e age. Chegou o momento de tu pagares aquilo que recebeste. Mais ainda, pelo muito que te dei, cobro-te pouco, mas o pouco que te cobro tem esse corolário: Eu quero tudo que estou cobrando!”

A misericórdia se condensa em justiça

Em determinado momento a misericórdia se conecta com a justiça ou, por assim dizer, se condensa em justiça, no mesmo Deus. E Ele, porque foi misericordioso além da justiça, passa a exercer sua justiça: “Vou agora sentenciar!”

A cólera acumulada se despenca na hora em que Adão consuma o pecado. Ele, como que louco, de fato é plenamente responsável.

Adão, que conversava com Deus, foi tentado e deu atenção ao demônio… Vem o julgamento!

A cólera naquele dia do pecado no Paraíso

Consumado o pecado, a justiça não demora um instante! Poder-se-ia quase dizer que à medida que o pecado vai enchendo Adão, a justiça vai entrando nele.

E ele começa a ter a perturbação, a insegurança, o mal-estar. Eva também. Ambos estão quebrados, rotos! E o pecado se estende como uma sombra sobre todos os que deles descenderão, ou seja, o gênero humano até o fim dos séculos!

Tudo fica atingido por uma cólera tão terrível que Deus Pai — cujo plano era que o Verbo se encarnasse, se fizesse Homem, para alegria da natureza humana e glória da Criação, independente do pecado — submete, naquela hora, o próprio Filho d’Ele ao tormento da Paixão e Morte de cruz, para resgatar aquele pecado.

O resgate operado por Nosso Senhor Jesus Cristo

Houve depois milênios e milênios de misericórdia, entremeados de justiça. Oh! esses grandes atos de justiça: a expulsão do Paraíso e a exigência do Sangue de Cristo para redimir o gênero humano! Como que não contente com o infinito, Deus quer os borbotões do infinito! Cada gota do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor daria para resgatar o gênero humano.

Deus quer que Jesus derrame todo o seu Sangue, de maneira que quando Ele não tem mais nada, a não ser uma espécie de linfa — um misto de água com sangue, um resto — no precioso Corpo d’Ele, vem o centurião Longinus e O transpassa com uma lança, atingindo logo o Coração, que é o símbolo do amor: vai até lá o golpe desferido pelos homens! E ainda sai uma linfa, que é a última gota redentora.

Dir-se-ia: “Afinal está tudo pago!”

Poderia estar, tem mérito para estar; a circuncisão já teria bastado. Se o Menino Jesus se ferisse numa roseira, com uma gota de seu Sangue precioso o gênero humano estaria resgatado. Com isto daria para aplacar a cólera de Deus, mas Ele quis mais.

Apesar de a Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo ter mérito infinito, Deus quis que houvesse uma confiança-redentora: Nossa Senhora. Ela, que era Imaculada, sofreu com confiança todas as dores, todos os tormentos, para ajudar a redimir o gênero humano.

Jesus expulsa os vendilhões do Templo – Paróquia Saint Germain L’Auxerrois (Paris).

O sacrifício da Cruz vai se renovando, para a humanidade já redimida, até o fim do mundo. As Missas vão se multiplicando, renovando o sacrifício do Calvário, naquela continuidade, até o mundo acabar.

Qual o tamanho dessa cólera! Por assim dizer, perdemos a fala… E poderíamos acrescentar: Qual o tamanho dessa misericórdia!

Deus mantém seu desígnio. Sujeita todos os homens ao pecado original, isentando não só a Humanidade Santíssima de seu Filho, evidentemente, mas sua própria Mãe. Apesar de fazer uma lei severíssima a respeito do pecado original, Ele isenta Nossa Senhora para poder salvar todos os homens. Vemos como a misericórdia se espraia a perder de vista, e também a justiça. Nosso entendimento fica abismado quando olha para a misericórdia, o mesmo acontecendo quando considera a justiça. Exclamamos: “Mas Senhor, tanta misericórdia!” E logo depois: “Mas Senhor, tanta justiça!” É porque somos muito pequenos.

Deveríamos, na verdade, dizer: “Senhor, como Vós sois infinito na vossa misericórdia e infinito na vossa justiça!”

A misericórdia de Deus com Adão e Eva, levando-os para o Céu

Adão e Eva vêm para a Terra e começa, então, a história dos homens. Há o caso de Caim e Abel e todo o resto. Eva vê o filho dela morto por outro filho. Ela não conhecia a morte, e passou a conhecê-la na face de seu filho predileto.

Depois, a misericórdia estonteante! Eles morrem em estado de santidade, com virtude heroica. Podem ser chamados Santo Adão e Santa Eva! Mas, vão esperar no limbo cerca de cinco mil anos, até que venha o Salvador.

Esperar cinco dias… Que horrível! Às vezes, esperar cinco minutos é um horror. Podemos imaginar o que significam cinco mil anos de espera do Salvador?

Afinal, o limbo é percorrido por um frêmito, todos sentem que o Salvador virá. Nosso Senhor Jesus Cristo, antes da Ressurreição, entra. É a alma de um morto. E mais uma vez, eles, que são almas, contemplam a morte. Então o Salvador está sujeito à lei da morte… Ele aparece radioso, mas alma. E explica: “Eu tive que morrer para salvá-los.”

Percebemos assim os vagalhões de justiça e os vagalhões de misericórdia, no mar alto dos desígnios de Deus. Não se tem ideia, por assim dizer, da violência dessas alternativas.

Podemos imaginar Adão e Eva, os quais se sabiam perdoados, exclamarem de modo pungente: “Até lá! Até lá! Que coisa! Que coisa!”

Jesus ressuscita! Eles O acompanham na alegria. Quando o Redentor sobe ao Céu, Ele os leva consigo. E, entrando no Céu para gozar a felicidade por toda eternidade, Adão e Eva são venerados até pelos anjos: “Esses são os pais do gênero humano, os antepassados de Nosso Senhor!”

Tudo isso começou no Paraíso terrestre, com a entrada da serpente. Percebemos, assim, a vastidão do panorama. E como Deus é maior do que nós.

Na hora do castigo, basta não rompermos com Nossa Senhora

E Nossa Senhora?

Com Ela vem para nós o lumen da esperança. O amor materno é o símbolo mais sensível do amor de Deus. Mais do que o próprio amor paterno.

Ora, enquanto o filho não rompe inteiramente com a mãe, não efetua uma dessas rupturas que tiram toda esperança, a mãe tem toda forma de parti pris pelo filho. Embora tenhamos — helás! — infidelidades, graças a Nossa Senhora não praticamos uma ruptura com Ela. Maria Santíssima tem por nós toda espécie de partidos tomados, de parti pris, de arranjos, de bondades e de jeitinhos. Assim, podemos esperar.

Ai daqueles que romperem com Ela! Porque o castigo será pior do que o merecido pelo rompimento com o Pai. Diz a Escritura: “A bênção do pai consolida a casa dos filhos, mas a maldição da mãe destrói até os alicerces”2.

(Extraído de conferência de 23/5/1981)

1) Dr. Plinio fez inúmeras exposições mostrando a importância dos ambientes e costumes para a formação ou deformação das almas.

2) Eclo 3, 11.