Dr. Plinio em agosto de 1993.

Ao contrário do que apregoam certas correntes filosóficas, os instintos influenciam também a razão. Desta forma, a adesão deles ao que foi concebido intelectualmente solidifica os pontos extremos do pensar do homem e forma com eles um só todo.

Estudando o que escreve São Tomás sobre o instinto, chegamos à seguinte conclusão: a matéria é muito ampla e, para a estudarmos bem, deveríamos compreender que o instinto, bem como outras coisas existentes na alma humana, constitui, como que, o contrapeso da razão no terreno do equilíbrio alma-corpo.

Há no ser humano, como se sabe, o instinto animal, o instinto vegetal e uma realidade mineral, a qual o homem percebe que nele existe e faz um só todo com ele, por onde o homem se sente solidário, envolvido nas leis da Física, como, por exemplo, a lei da gravidade.

As diversas formas de instinto

Qualquer desses instintos é um movimento primeiro pelo qual o ser tem: no homem, consciência; no animal, notícia; na planta, algo inferior a isso, mas, enfim, falando antropomorficamente, uma consciência de seu ser. O homem sente uma carência e uma necessidade de preencher essa carência, uma apetência para aquilo que preencheria a carência. Essa seria uma noção genérica, muito ampla, de todas as formas de instinto.

Esta noção nos faz então compreender que o homem — antes mesmo de, por exemplo, através da razão chegar a Deus —, tendo os instintos bem equilibrados e bem exercidos, sente uma carência. Pelo instinto de si mesmo, ele percebe que lhe falta qualquer coisa de absoluto que só pode ser Deus. E isso o move, o lança para o Criador, em que a parte racional está presente, mas de um modo muito rudimentar, quase que se diria intuitivo, de tal maneira é uma evidência; o indivíduo não tem noção de sua própria operação intelectual. Posteriormente, todo o jogo do raciocínio vai justificar, conscientizar, dar inteira cidadania face à razão. Isto está no homem, no seu primeiro movimento enquanto animal.

E o instinto do divino o que vem a ser?

É aquilo por onde o homem tem a noção — mas uma noção instintiva, não abstrata — da sua limitação e de um absoluto, o qual forçosamente, imperiosamente, é preciso que exista para ele mesmo existir.

Os instintos ordenados dão adesão à razão

Se fizéssemos o levantamento de todos esses instintos como são no homem, — na sua animalidade, na sua “vegetabilidade”, o conhecimento instintivo das leis físicas, minerais — compreenderíamos perfeitamente quais são esses mecanismos primeiros que se movem dentro dele e que constituem como que uma existência paralela à existência da razão; de tal modo que, se o homem não tivesse isso, nem a sua razão funcionaria.

E assim entendemos o ponto de atrito nosso com o cartesianismo1, e também com certa escolástica de fundo cartesiano, os quais imaginam que o instinto não tem nenhuma importância; se o homem não tivesse instinto, raciocinaria também e até melhor do que tendo instinto. Isso é verdade para o anjo, mas de nenhum modo para a inteligência humana, porque a alma humana, enquanto espiritual, não é capaz de atingir a verdade sem os instintos.

Compreendemos também que o fundo do processo mental do homem não é apenas a conversio ad phantasmata2, ou seja, depois de ter o conceito de mesa, por exemplo, tomar uma mesa e verificar como ela é; mas é a conferição de tudo aquilo a que se chegou por via de razão com a boa ordem dos instintos para a pessoa ter uma certeza inteira.

Esta adesão da boa ordem dos instintos ao que foi concebido intelectualmente é um elemento fundamental. E aí está o último elo que solda os dois pontos extremos do pensar do homem e forma com eles um só todo.

Êxtase natural

Daí surge também outra ideia muito fecunda, que é a seguinte: como o homem pode imaginar o conhecimento que Deus tem de Si próprio?

A mais alta ideia é a puramente intelectiva. Mas também esse conhecimento instintivo que temos de nós mesmos nos dá uma ideia de como Deus Se conhece a Si próprio, que não é de um modo abstrativo, mas uma espécie — a expressão é má — de “experiência de si mesmo”, sem o que não compreendemos o conhecimento divino.

Então, apenas somando as duas coisas temos uma ideia total do conhecimento divino; e mesmo da forma de felicidade que os bem-aventurados possuem no Céu, que é a visão de Deus face a face, conferindo aos instintos tal ou qual posse de Deus, completada pela posse intelectual e que dá aquela plenitude por onde até se compreende uma espécie de êxtase natural, sem falar do êxtase sobrenatural.

O homem tem o êxtase natural quando sente a plena coerência entre o que ele pensou e o que os seus instintos percebem. É uma espécie de bem-aventurança — a estética é um dos exemplos —, em que o homem superabunda de gáudio. Nesse caso pode-se aplicar a frase do Salmista: Exultabunt ossa humiliata3. Os meus ossos humilhados exultam, saltam de alegria, quando a concepção intelectual que eu tive confere inteiramente com o aparelhamento instintivo.

Equilíbrio dos instintos e absoluto

Um exemplo interessante é o equilíbrio instintivo de um homem que, dirigindo um carro, atravessa de forma precisa uma ponte estreita. Ou então, uma pessoa que, pilotando um pequeno avião, faz uma proeza que deixa as gerações provectas, mais ponderadas, inteiramente entusiasmadas.

Quando acontece uma coisa dessas, há então um equilíbrio de instintos. De que modo esse equilíbrio de instintos pode ser relacionado com o instinto do divino? Quando o indivíduo mantém todos os seus instintos com muito equilíbrio, muita finura, ele percebe que nada se basta a si próprio, e que todo aquele equilíbrio é falso se não colocar na ponta o absoluto.

Estágios da Revolução tendenciosa

A RCR4 apresenta, em linhas muito sumárias, um histórico da Revolução “A” sofística e da Revolução “B”, mas não o histórico da Revolução “A” tendenciosa5, a qual, entretanto, segundo a própria RCR, é muito mais importante que a Revolução “A” sofística. Poderíamos fazer um histórico da Revolução “A” tendenciosa a partir dos instintos.

Na Idade Média, por obra da graça e do magistério da Igreja, houve um alto afinamento, uma construção tão nobre dos instintos que o homem até perdeu a noção da autonomia dos instintos em relação à razão, e começou a achar que tudo era somente razão. A tal ponto que, por exemplo, no Ancien Régime6 e posteriormente, imaginou-se que os selvagens, como todo homem, tinham os instintos bem construídos, tudo guiado pela razão.

Daí surge o cartesianismo, e também aquela construção muito bonita do Ancien Régime, na qual se tem a impressão de que todo o jogo dos instintos foi definitivamente manipulado pela razão, e que o homem passou a ser puro espírito. Mas chassez le naturel et il reviendra au galop — expulsai o que é natural e ele voltará galopando. Percebe-se que ficou alguma coisa de artificial, de esticado, no Ancien Régime; e uma parte de instintos, que não foi contemplada para poder caber dentro da forma bonita que havia sido elaborada, constituiu um depósito de descontentamentos que se manifestou depois nos excessos do Terror e posteriormente nas explosões do romantismo.

São os instintos, ainda intelectuais e afetivos, que se revoltam contra uma forma da qual eles estavam postos fora. Essa revolta se ampliou depois com o hedonismo, propagado a partir do século XIX. Por exemplo, um anúncio de uma laranjada, graficamente reproduzida de um modo estupendo.

Eu sentia, quando era menino, o impacto e a agressão do copo de laranjada, ou seja, ficava tomado pela apetência de bebê-lo, como quem julgasse não existir o estudo nem a razão, mas apenas a impressão causada pela laranjada na língua; e, com os olhos postos naquela substância bonita, quisesse tomar um tonel de laranjada. Esta seria uma concepção orgânica da vida.

Houve depois manifestações de algo do instinto que tinha sido ainda mais posto de lado: o gosto, a ebriedade da desordem, do cacofônico, do horror, até da tara, como quem dissesse: “Estou fruindo, sentindo, é gostoso.” É uma forma de agressão.

Esses são os vários estágios da Revolução tendenciosa.

Simbolismo, instinto e razão

Os filósofos do século XIX, inclusive muitos escolásticos, ficavam pensando que o mundo se dirigia pelo jogo da razão. Os agentes da Revolução, muito espertos, percebiam a revolta dos instintos e a favoreciam, enquanto aqueles indivíduos escreviam livros e faziam tratados.

Por obra da graça e do magistério da Igreja, houve um alto afinamento, uma construção tão nobre dos instintos que o homem até perdeu a noção da autonomia deles em relação à razão, e começou a achar que tudo era somente razão.

Fotos: G. Kralj; M. Shinoda.
Família nobre do período do Ancien Régime – Museu Hermitage, São Petersburg (Rússia).

A revolta dos instintos ia colocando cada vez mais à margem os homens que escreviam livros; eram os sonhadores, considerados como museus velhos, pessoas teimosas, bobas, que não captaram o que há de mais dinâmico na realidade das coisas.

Preparava-se então a Revolução tendenciosa, enquanto a Revolução sofística ia ficando esclerosada, velha, banguela, caminhando para a morte.

Temos assim um histórico da Revolução tendenciosa.

Tratando a respeito desse tema, convém perguntar: o que é o simbolismo?

É algo que, na sua linguagem própria, fala ao instinto em termos que o faz compreender o que a razão diz; e que produz exatamente esse encontro que proporciona o êxtase natural, entre o dado da razão e o instinto. Esse encontro, esse ósculo, é a luz do homem, e daí o valor brilhante dos símbolos.

Eis aqui uma série de dados para se fazer, depois, um estudo eminentemente filosófico sobre esse tema.

Visto dentro desta perspectiva a IV Revolução, abstraindo o que ela tem de satânico, é a legítima defesa do instinto contra uma razão que não quer tomá-lo em consideração.

E a grande objeção do hippismo é esta: “Essa razão me põe mais em desordem do que meu próprio desbragamento; então eu me desbrago.” Isso é errado, mas eu quero aqui, para que o ataque à IV Revolução seja bem feito, isolar a parcela de verdade existente nessa objeção, para depois poder atacar o erro.

(Extraído de conferência de 10/7/1972)

1) Cartesianismo: Filosofia de Descartes (ou Cartesius, em latim) e seus discípulos.

2) A Filosofia tomista utiliza a expressão “conversio ad phantasmata” — volta às imagens — para explicar que, durante o ato de pensar, o entendimento deve manter vinculação com as imagens sensíveis, captadas pelos sentidos externos.

3) Sl 50, 10.

4) Revolução e Contra-Revolução, obra magna de Dr. Plinio, publicada por primeira vez em 1959.

5) Cfr. Dr. Plinio, nº 65, p. 27.

6) Antigo Regime. Período da história da França que precedeu a Revolução Francesa.