Durante uma conferência para jovens discípulos, indagam a Dr. Plinio sobre como nasceu nele a contemplação da ordem do universo. Usando de um método que lhe era muito próprio, Dr. Plinio introduz o denso assunto citando exemplos e ilustrando com fatos de sua vida.
Eu devo tratar a respeito da ordem do universo, mas em termos “enjolráticos1”, evidentemente, dando a este adjetivo a afetuosa conotação de sempre.
Antes de tudo, é preciso mostrar como se adquire a noção da ordem do universo, e depois descrever como é a ordem do universo. Primeiro aprontar a lente, depois colocar nela o olho, e não o contrário.
É muito difícil ser virtuoso
Como se obtém a noção, o gosto da contemplação da ordem do universo? Também isso é doutrinário demais para a minha cara “geração ultranova”. E então tem de ser outra coisa: como é que uma pessoa adquiriu a noção de ordem do universo, para depois estudar como outro pode obtê-la. Posteriormente fazer a exposição teórica de como se adquire, e então subir ao mundo diáfano dos princípios nos quais se entrava diretamente nos tempos de outrora. Não era preciso jardim na casa, entrava-se diretamente. Hoje é necessário ajardinar largamente o palácio antes de chegar a ele.
Vamos, então, cuidar do jardim tanto quanto mãos nascidas no começo deste século XX conseguem fazê-lo para o fim de um século que vai caminhando para o seu encerramento.
Nesse sentido, dou as minhas recordações. Tanto quanto eu posso me recordar — e talvez o que vou dizer não seja inteiramente edificante, ao menos segundo certos manuais que existem por aí —, eu tive desde cedo a noção de que era muito difícil ser virtuoso. Minha moleza, minha indolência natural — não me queiram mal — tão frequente no Nordeste, de onde o meu pai era procedente, era uma herança de família. A modorra, a tranquilidade, o gosto da despreocupação… Como eu achei interessantes as expressões francesas, quando as aprendi: laissez faire, laissez passer!2 Oh, que coisa agradável! Eu não me incomodo com nada, contanto que não mexam comigo.
Procurar os deleites das coisas honestas e sadias
Com esse temperamento, quando me dei conta de que a virtude era muito difícil de praticar, pensei o seguinte: “Se eu for me impor um sacrifício total e em tudo, não terei meios de cumprir esta virtude que desejo. Preciso fazer uma coisa criteriosa: farei todos os sacrifícios necessários para ser virtuoso, custe o que custar terei de ser virtuoso, viverei na graça de Deus!”
Posteriormente, Nossa Senhora acendeu em minha alma um desejo mais ardente que era de chegar até a perfeição espiritual, mas nesse tempo isso estava mais ou menos vago no meu espírito. A ideia imediata era não cometer pecado mortal, não perder a graça de Deus e nem aquilo que eu percebia possuir, mas não sabia dar nome: o meu tau3!
Mas, de outro lado, quem gosta de modorra, gosta de viver gozando dos legítimos prazeres da vida. Então pensei o seguinte: “Preciso arranjar um jeito de praticar a virtude com a maior quota de deleite com que ela seja praticável. Porque, pelo menos assim, encontro algum lastro para tocar para a frente esse caminho, que é dificílimo, mas tenho de fazê-lo de qualquer jeito. Então, vou estudar tudo quanto há na vida de virtuoso, mas agradável para ter. E assim beber água a fim de ter coragem de enfrentar os areais do deserto, conhecer o mapa dos oásis para neles descansar quanto possível, e chegar ao outro lado da travessia.”
E daí começar a deitar muita atenção nos deleites das coisas honestas e sadias. Por exemplo, qual era o modo agradável de deitar na cama, de adormecer, de comer — o que sempre ocupou no meu mapa de coisas agradáveis um papel de relevo, que a Fräulein Mathilde4 ainda acentuou teutonicamente —, como era deleitável ver um panorama e outras coisas do gênero.
A arte de enfrentar a dor
Mas eu fui, desde logo, salteado por uma sombra que poderia se exprimir da seguinte maneira: “Tudo isso é agradável, mas você o percorre na perspectiva do desagradável e teme perder o deleitável que tem. Quando chega o sábado, você está na perspectiva das delícias do domingo. Mas, no domingo à noite, se encontra nas previsões das agruras de segunda-feira: aula de Aritmética, Geografia etc., uns pesos do outro mundo. A própria aula de História, um fardo por causa da insipidez irremediável do seu pobre professor.” Era a vida do colégio, a batalha com a Revolução e toda espécie de desaguisados e desentendimentos, que me esperavam ao longo da semana.
Analisando isso, disse para mim mesmo: “Mas esse temor de que o sábado e o domingo passem é uma sombra que se projeta para dentro de mim, e o agradável que eu quero, que procuro dentro da virtude, não conseguirei. Mas preciso encontrar alguma coisa, porque do contrário não aguento o caminho que preciso seguir. Tenho que resolver esse assunto.”
E assim, insensivelmente, foi se introduzindo no meu espírito a noção de que o agradável não é tanto uma coisa que vem de fora para dentro, mas resulta do estado de espírito com que, de dentro, se olha para as coisas que estão fora. E a arte do agradável dentro da virtude não é só ter aquilo de que se gosta, mas saber manejar a sua própria alma, de maneira a degustar aquilo que tem. O manejo interno de si próprio é um elemento fundamental para a agradabilidade da virtude.
Assim deveria ser eu ao longo da vida: uma torre móvel já preparada para o alto da dor, o alto da batalha, o alto do perigo.
Eu percebia, desde logo, outra coisa: era o lado fraco em mim. Angustiava-me facilmente pensando no futuro. E a perspectiva do sacrifício, da luta, do esforço, da incompreensão, me atormentava mais ainda do que a própria realidade de sofrimento que eu tivesse dentro de mim.
Então comecei a elaborar — mas no sentido de aproveitar a vida virtuosamente a fim de ter fôlego para a virtude — uma arte de enfrentar a dor de maneira que ela doesse o menos possível, e desse à vida a maior fruição possível para eu conseguir ser virtuoso, que era o ponto fundamental em torno do qual se esboçava toda essa elucubração.
Não ser otimista
E cheguei à conclusão seguinte: para meu temperamento pessoal — a perspectiva do trabalho, ou pior do que o trabalho, da luta, pior do que a luta, da dor — era preciso eu tomar três regras de viver que, com a graça de Nossa Senhora, eu não abandonei e me ajudaram a chegar até a idade a que cheguei5.
A primeira dessas regras era: não me deixar arrastar apavorado pelas vias da semirrealidade. Se, dentro de mim, tenho uma perspectiva que me oferece um perigo, seja ele de que ordem for, não devo ficar como certos otimistas que eu notava, os quais fechavam os olhos para o perigo e, à medida que o perigo ia se aproximando, iam descerrando os olhos, e cada pequeno descerrar de olhos era um tormento, e cada tormento prenunciava um tormento maior. A pessoa ia, devagarzinho, bebendo o cálice da angústia, gota por gota, e ainda fazendo passear cada gota em todo o alvéolo da boca. Isto não!
Se se apresenta diante de mim um perigo, vou desde logo prever, no primeiro passo, o pior do perigo que pode acontecer e vou retesar a minha alma para aquilo, pôr-me na presença daquilo, pois eu tenho de suportar. De que maneira? Antes de tudo, ver como evitar. Não vou me jogando na fogueira, quando é inútil. Caminho cuidadosamente, estudando para não cair dentro da fogueira, plano cuidadosamente elaborado; mas se for preciso estou resolvido a entrar na fogueira. E minha resolução está tomada logo, e eu já vou vendo o pior. De maneira que esse descerrar de olhos lento, dolorido, vagabundo e inglório eu não aceitaria. É de uma vez abrir o peito e abrir o olhar para aquilo e ir para a frente!
Qual era a vantagem disto? Encurtava a longa e horrível trajetória. Vou dar uma comparação, que é muito prosaica. Quando uma pessoa é operada, o médico põe esparadrapos e algodões em cima do lugar onde foi feito o corte.
Depois, quando vai arrancar os esparadrapos, ele não o faz milímetro por milímetro, porque contunde a pele. Não diz nada ao doente e, de repente, o médico arranca o esparadrapo de uma só vez. Um minuto depois, o enfermo está tranquilo.
Então eu resolvi “esparadrapiar” a minha vida: adotar a técnica do esparadrapo arrancado rapidamente. Tal coisa pode acontecer, prepare-se! Faça tudo para que não aconteça, e esteja pronto para aguentar caso aconteça. É mais ou menos como aquelas torres com guerreiros em cima, que os medievais levavam sobre pequenas rodas, nos campos de batalha, a fim de encostar na torre ou muralha dos adversários para começar a combater. Assim deveria ser eu ao longo da vida: uma torre móvel, já preparada para o alto da dor, o alto da batalha, o alto do perigo, e já disparando os golpes para vencer o inimigo tão logo quanto possível e depois descansar. E, na hora do descanso, a despreocupação. Esse era o modo de eu conceber as coisas.
A segunda regra era o seguinte: nunca ter pena de si mesmo. O homem que tem pena de si mesmo perdeu a batalha. É preciso ser inclemente consigo, porque é a única maneira de ser clemente consigo.
Meu próprio olhar sobre mim mesmo como que dizia: “Eu quero saber, ó Plinio, se você é ou não é homem, é ou não é filho de Nossa Senhora, recebe ou não recebe d’Ela as graças que pede para fazer o que é o seu dever. Agora vá adiante, eu quero julgar!”
Nunca começar pelo mais fácil
E, por fim, a terceira regra: num serviço qualquer, nunca começar pelo mais fácil, mas pelo mais importante, mais necessário, ainda que seja difícil. Mais ainda: em igualdade de condições, sendo tão importante o fácil quanto o difícil, começar pelo difícil, porque assim ele já fica feito e se atravessa depois o fácil ou o alegre. É melhor atravessar o fácil com o difícil atrás, do que tendo este pela frente. Joga-se a dor para trás, logo que se pode, para fazer a caminhada o mais suave possível.
Em diversos assuntos, se alguém prestar atenção verá que eu estou sempre tendo em vista o pior que possa acontecer, e com os planos feitos. É assim que agirei e estarei pronto para o pior. E ainda que não chegue já a hora do sacrifício, eu com toda a tranquilidade como, bebo, durmo e tenho minhas distensões porque já está tudo pronto. Na hora é só fazer. Ficam eliminados da alma a torcida e algo germinado com ela, que é o apego.
Porque nessa tática não se está apegado a nada. Se eu precisar fazer qualquer coisa a qualquer hora, realizarei. Não tem rangeres, nem “ai-ai-ai”. Tem de fazer, faça logo!
Isso me deu ao longo da vida muita facilidade, porque muita cruz inútil, que Nossa Senhora não me pedia que carregasse, e que eu podia, com uma ordenação séria de mim mesmo, afastar de lado, Maria Santíssima me ajudou e afastei. Alguém me dirá: “Não! O senhor previu uma porção de coisas ruins que acabaram não acontecendo, e se atormentou com hipóteses que não se efetivaram. Não seria muito melhor não ter previsto coisas tão más, pois assim teria levado uma vida mais agradável?”
Só há o agradável nesta vida a partir do momento em que existe o desagradável. Sentir-se preparado para enfrentar qualquer coisa, dê no que der, aí o homem tem sossego. E para ele se sentir assim, ele precisa de vez em quando imaginar o desagradável e testar-se: “Você está à altura disso? Se estiver, passeie, repouse e cante.”
Lembro-me de uma canção que a Fräulein Mathilde ensinava: “Rir e cantar, bailar e saltar, a primavera logo chegará.” Assim também, se estou preparado para tudo, tenha eu a idade que tiver, o resto é primavera. Porque é preciso estar a postos para tudo. E com isto se tem uma vida mais animada, mais feliz e a virtude fica mais fácil.
Talvez alguém pense que o assunto sobre o qual estou tratando não tem nada a ver com a ordem do universo. Mas, de fato, tem. Como se adquire uma noção amorosa da ordem do universo? E aqui vamos passar para um outro panorama psicológico.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 16/8/1980)
1) Relativo aos “enjolras”, como eram chamados por Dr. Plinio os jovens que assistiam a suas reuniões.
2) Do francês: deixai fazer, deixai passar.
3) Tau é o nome da última letra do alfabeto hebraico e da décima nona do grego. Na visão de Ezequiel, Deus ordenou ao “homem vestido de linho, o qual trazia um estojo de escriba na cintura” (Ez 9,3), que “assinalasse com um sinal a fronte dos homens que gemem e choram por causa de todas as abominações que se fazem no meio dela [Jerusalém]” (Ez 9,4). Por analogia com essa visão, Dr. Plinio dizia que tinham “tau” aqueles que eram chamados a uma vocação contra-revolucionária e portanto alimentavam em si uma inconformidade com a Revolução, ou seja, “gemem e choram por causa das abominações”.
4) Governanta alemã que Dr. Plinio teve em sua infância.
5) Dr. Plinio tinha 72 anos quando fez esta conferência.