Com um senso psicológico aplicado não só aos indivíduos, mas também aos povos, Dr. Plinio descreve de modo vivaz e atraente o espírito português, o espanhol, o italiano e o francês, e discorre sobre algumas características do espírito germânico, acenando para a síntese austríaca que se encontra no píncaro do espírito alemão.
Pelo que foi exposto1, compreendemos o que é uma nação e entrevemos a grandeza de Deus ao criar os homens e dividi-los em nações etc. Vejamos agora algo sobre a leveza especial do espírito latino.
Vamos, em ordem geográfica, começar pela orla de Portugal e terminar na Itália. Deixo a França um pouco de lado, porque ela serve de transição para o mundo alemão. A França é um feliz encontro dos latinos com os alemães; é uma composição especial da qual falarei daqui a pouco.
O suave Portugal
Entre os brasileiros, não há uma ideia muito completa a respeito dos portugueses; na linguagem corrente — claro que o brasileiro mais culto sabe que não é assim!—, o português que representa Portugal é o comerciante bem sucedido, mais do que o industrial; porque os lusitanos não vão muito para a indústria e sim para o comércio, e no sistema pão, pão, queijo, queijo, do qual gostam bastante. E o comerciante português típico, bem sucedido, não é o que está num escritório, mas aquele que tem contato com o público, ou seja, o vendeiro. Esse é o português que o brasileiro conhecia.
E há uns trinta anos atrás, quando esse folclore se constituiu, o português característico era forte, saudável, vendendo saúde, cor de arrebentar de vitalidade, bigode à la Rei Dom Carlos2, ainda formando uma voltinha para cima em ambos os lados, sobrancelhas espessas, olhos mais tendentes a castanho-escuros ou pretos, cabelo também castanho-escuro ou preto, permanecendo junto a sua máquina registradora, mais ou menos como um ente mitológico por detrás dos acontecimentos que regem o mundo.
Na parede de seu estabelecimento comercial, um letreiro: “Não se vende fiado”. Quando o português gira a máquina registradora, esta faz aquele característico barulho, projeta uma gaveta e ele preside aqueles sons com a compenetração de um chefe de orquestra; depois dá o troco, encaixa o que quer, fecha a gaveta, o freguês vai embora e ele continua tranquilo. E o dinheiro vai se acumulando…
O português tem ou não essa leveza característica do espírito latino?
Basta ler descrições de Eça de Queiroz, por exemplo, e ver como os mil matizes da alma portuguesa são bem expressos, em palavras rápidas; e numa página ele faz o leitor viver como se tivesse estado dez anos em Portugal. Compreendemos então que isso é o próprio do gênio latino: em poucas palavras pintar mil coisas, encher de matizes, arrancar um sorriso, um comprazimento ou uma emoção e passar para adiante, tendo deixado tudo bem posto do ponto de vista lógico; porque o latino é lógico e, no fundo de sua aparente desordem, ele quer que as coisas estejam em ordem.
É o modo suave, doce — nós brasileiros pretendemos ter herdado muito disso, e creio que herdamos —, mas amistoso, benévolo, sem barulheira, com que o português faz as coisas e está presente, com sua especial nota, dentro do estilo latino em geral.
Por exemplo, a Torre de Belém. Ela de fato domina o Tejo, porém mais faz sonhar do que faz fugir. Quem vê a Torre de Belém nem tanto tem medo, quanto se encanta e fica desarmado. Ela é nobre, delicada, alva, bela, digna. Quem ousará lançar um tiro de canhão contra aquilo? Ela está psy-defendida contra o canhão. É preciso ser muito mau para derrubar uma coisa daquelas. É Portugal!
A Espanha heroica
A Espanha é bem diversa. É a nação da movimentação, da agilidade, da penetração, do espírito engraçado que cutuca, pula para cima, esparrama, critica, caustica, brilha ao sol, combate e que conserva uma certa alegria de ser ela mesma até no momento em que oferece os maiores holocaustos.
Não poderei me esquecer de uma fotografia de um espanhol sendo fuzilado. Nem me lembro por que estavam fuzilando esse homem. Não era desse tipo de europeu grandão, mas pequeno — não chegava a ser miúdo —, cabelo preto, de uns 40 anos para 50, barbicha, pele ligeiramente dada a moreno e olhando para o pelotão de execução. E acima o letreiro: Nosotros hemos hecho un pacto con la muerte! Notava-se que ele sentia a dignidade de morrer, e tinha a alegria de viver esta coisa especial que é morrer. Ele morria contente. Uma coisa especial; era preciso ter visto para se fazer uma ideia do que é.
O chiste espanhol, o provérbio espanhol, a graça espanhola, a dança espanhola, tudo tem um referver que é a mesma vitalidade latina apresentada em outro ângulo. Enquanto Portugal é todo doce, embora saibamos que não vende fiado, a Espanha é toda heroica. Com uma ressalva! Eu conheci alguns espanhóis muito politiqueiros; dois ou três desses são dos melhores politiqueiros que conheci em minha vida. Heroísmo, heroísmo, e de repente sai um politiqueiro do meio; é preciso tomar cuidado! E esse faz como serpente o que os outros realizam como dançarinos ou como toureiros. Mas são poucos e constituem exceções dentro da grei heroica.
A índole italiana, marcada a fundo pela Renascença, parece dar saltos para alcançar o ápice do que seria o Céu na Terra.
A artística Itália
Agora, é a Itália que entra em cena, tocando a Tarantella!3
Quão diferente, quão imaginosa, quão artística! E quão posta em duas vidas: o imaginar um mundo como poderia ser conforme os sonhos dos italianos, e a realidade concreta dentro da qual eles entram com muito senso da realidade! E levam quase que duas vidas paralelas. O senso da arte e o senso do comércio formam ali uma competição em que não se sabe bem quem é o vencedor. E o indivíduo, após ter dado uma tacada na indústria, cantarola; depois de cantarolar, ele vê se o bolso está cheio e vai fazer negócios. Nisso há um duplo movimento de vivacidade, que não é o velho estilo imperial romano.
A canção, a arte italiana, tem também uma forma especial, mas diferente, de leveza.
Enquanto o espanhol parece dar saltos para atingir o Céu sobrenatural, a índole italiana, marcada a fundo pela Renascença, parece dar saltos para alcançar o ápice do que seria o Céu na Terra. A vida gostosa, alegre, a bonomia, a brincadeira, a fraternidade, a graça, a arte para ornar tudo, para fazer desta vida a coisa mais prazerosa possível, e realizando uma coisa realmente notável, magnífica, única no seu gênero, mas que já não é o espírito espanhol, não é o estilo português.
É uma outra coisa, que fez da Itália a matriz de todas as artes do Ocidente. Tudo que veio da Renascença para cá se inspirou na Itália. A marca da Itália foi colocada no mundo inteiro, o que os italianos conseguiram sem ganhar grandes batalhas — nunca se interessaram muito pelo gênero. Sem formar um grande império como o Império Romano, a influência artística italiana foi muito mais longe do que a influência artística romana. E o império cultural italiano muito maior do que o império cultural romano. Uma grande nação, com uma expressão enorme na História do mundo. E que imensa expressão na História da Igreja! A Igreja tem sua sede fixada em Roma, que é como um chafariz de influência italiana no mundo inteiro. Percebem-se as mil diversidades tão grandes do gênio italiano, que é quase impossível conter numa exposição só.
França: ponto de encontro da latinidade e do mundo germânico
E para se chegar ao mundo germânico, é preciso passar pela França. A Áustria fica para depois. Mais ou menos como quando se vai subindo uma torre… O alto dela fica para depois.
A França tem um pouco de tudo. Na gentileza aparece algo da bondade portuguesa; no mosqueteiro francês, algo do garbo espanhol; na arte francesa, algo do gosto italiano; na lógica especial e apertada do espírito francês, aparece algo do gênio alemão. É o ponto de encontro da latinidade e do mundo germânico, que formou um conjunto mais ou menos indefinível: a França.
Como a Itália, a França possui tantos aspectos, tantas características, é tão elogiável por diversos lados, que não se sabe bem por onde começar. Falaríamos da França das catedrais e dos castelos, da França do Ancien Régime4, da França do século XIX… E também da arquitetura, da pintura, da escultura, da literatura, da música francesa. Depois de comentarmos tudo isso, ficaríamos com a sensação de não ter falado do essencial, que é o espírito francês, a alma francesa, que se exprime melhor pelas migalhas do convívio cotidiano do que em todas essas coisas. É preciso vê-los agir.
Lembro-me do colibri quando vem com aquele bico comprido picar uma flor. Esvoaça de modo gracioso, brilha com as penas ao sol e depois sai levando consigo o néctar que ele queria. Assim também é o dito do espírito francês.
Victor Hugo e o espírito francês
Como já falei muito desse tema e não é necessário aprofundar, eu conto um fatinho, no qual está todo o resto. Um príncipe da Casa de Napoleão mandou para Victor Hugo — grande literato francês do século XIX — um livro com poesias compostas por ele, príncipe, que escreveu: “Monsieur Hugo, estas são umas pequenas poesias que eu compus em pequenos tempos livres. Estarão tão ruins assim?” E as poesias eram péssimas!
Victor Hugo não teve dúvida: dardejou a resposta em cima do príncipe. A resposta, para se analisar a frio, seria embaraçosa. Porque ele era meio chegado ao mundo do bonapartismo e não queria, portanto, esfriar as relações que tinha com esse lado. Se Victor Hugo dissesse que as poesias eram péssimas, seria um fator negativo para o estilo de relações que ele queria ter. Portanto, ele não podia afirmar isso. Mas, por outro lado, não podia dizer que eram bonitas porque o príncipe lançava uma outra edição, com o elogio do Victor Hugo; e assim o desacreditava como literato. Inimigos de Victor Hugo, e também elementos do bonapartismo, cairiam em cima dele e comentariam: “Vejam só, um príncipe fez poesias ‘pé quebrado’, as quais não valem dois caracóis, e o Hugo, que é meio bonapartista, fez tais elogios! Esse livro não vale nada por causa disso, daquilo, daquilo outro.”
Então Victor Hugo precisava arranjar uma saída em que pusesse o príncipe no lugar, mas não desprezasse o príncipe, para continuarem amigos. Ele deu uma resposta que reputo eminentemente francesa; e em vez de descrever o espírito francês, com isso eu apresento uma amostra do espírito francês. Não é uma obra prima! Vale porque isso é uma coisa frequente na França. Se não fosse frequente, não estava tão bem amostrado o espírito francês.
Diz Victor Hugo: “Monseigneur, pergunto a Vossa Alteza o que acharia se eu quisesse ser príncipe nas minhas horas vagas.”
Não vou dizer que todo o talento de Victor Hugo se manifestou aí. É frequente na França saírem coisas dessas. Tanto é que a revista na qual li esse fato publicou-o numa seção chamada: “Ditos chistosos”. Eu reputei uma obra prima de gentileza, com uma impertinência um pouco salgada que faz sorrir. Porque ele se colocou tão abaixo de um príncipe, que deixa o príncipe à vontade. Mas deu tal estocada no príncipe que este nunca mais escreveu!
Mas vejam como a frase é pensada dentro da rapidez. Das várias coisas que se desprendem do que Victor Hugo disse para o príncipe, uma delas, escrita em outros termos, é a seguinte: “Por que o senhor quer ser escritor quando é príncipe? Ser um verdadeiro príncipe toma a vida de um homem. Viva a sua que eu vivo a minha!” De fato, quando Victor Hugo diz que não se pode ser príncipe nas horas vagas, ele dá a entender que isso exige um maintien, uma atenção, um esforço da vida inteira. Portanto, ele coloca alto aos olhos do príncipe a condição principesca, e mostra como ficaria sem jeito em ser príncipe. Apesar disso, pam! na cabeça do príncipe!
O espírito alemão tem os lados positivos, que são magníficos. E os lados brumosos, para quem sabe vê-los no amor ao mistério, também o são. Por cima está a síntese austríaca, brilhando acima da nuvem e do monte.
Tenho a impressão que poderíamos escrever várias folhas de papel com os diversos aspectos desse pequeno dito. E é pena que eu não tenha boa memória, porque coisas dessas ao longo de minha vida li ou notei às centenas. Elas vão enxameando charmes e graças que, a meu ver, são das ótimas distrações que o espírito humano pode ter.
Para comparar a algo, lembro-me do colibri quando vem com aquele bico comprido picar uma flor. Esvoaça de modo gracioso, brilha com as penas ao sol e “tchum!” Depois sai levando consigo o néctar que ele queria. Assim também é o dito do espírito francês.
Áustria: píncaro do mundo alemão
Há pouco eu estava lendo um livro francês, aliás, interessante, mas o autor não tem o grande voo do espírito francês. Ele cita um dito oriental, muito bem pensado, razoável — sobre o qual farei uma apreciação minúscula —, que é o seguinte: “A mesma afirmação que um tolo leva um minuto para fazer, um homem criterioso pode levar um ano para refutar.” É bem verdade, mas a afirmação não tem a graça francesa. É conciso, mas não ficamos alegres. Não sorrimos, não temos ideia de ter comido um bombom com licor.
Ele informa que é um dito oriental, mas não indica de que nação. A coisa francesa é bombom com licor. Acabou, é única! Não adianta ficarmos com raiva, achando que nossa nação está mal compreendida, porque Deus deu a quem quis, e quis dar aos franceses. Diríamos que o espírito latino, o espírito germânico e o espírito anglo-saxão — se quiserem fazer a distinção — se encontram na França, a qual é guirlanda disso; vale mais do que qualquer dos lances da guirlanda, ou qualquer das flores. A guirlanda gira tão depressa que não se percebe bem quem é o latino, quem é o germânico, quem é o anglo-saxão. É o francês! Uma coisa magnífica!
A grande e respeitada, querida e nobremente brumosa Alemanha ficou de lado. Mais ou menos como certas montanhas, que são tão altas e atravessam as nuvens — vê-se a montanha, uma bela bruma e depois o píncaro —, assim eu contemplo o mundo alemão, com a Áustria.
O espírito alemão tem os lados positivos, que são magníficos. E os lados brumosos, para quem sabe vê-los no amor ao mistério, também são magníficos. Por cima está a síntese austríaca, brilhando acima da nuvem e do monte.
Isto ficará para outra conferência. Falaremos do espírito germânico, do espírito sul-americano, hispano-americano, luso-americano, fazendo as distinções; e um pouco dos eslavos. Quem sabe se trataremos até dos japoneses e dos chineses?
Por enquanto, nós ficamos aqui. Não pretendo ter descrito essas nações, mas sim evocado algumas coisas que se podem sentir delas, de seus espíritos. É, portanto, mais como quem partilha recordações do que diz coisas novas, que eu fiz esse voo sobre as várias nações.
(Extraído de conferência de 21/2/1981)
1) Ver Revista Dr. Plinio n.178, Janeiro de 2013, p. 16-21.
2) Dom Carlos I, Rei de Portugal (28/9/1863 – 1/2/1908).
3) Dança popular típica do sul da Itália. Possui um ritmo vivaz cuja velocidade aumenta no decorrer da execução.
4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.