Refletindo sobre o mistério da Encarnação do Verbo e o relacionamento de almas entre a Santíssima Virgem e seu Divino Filho, durante a gestação, Dr. Plinio aponta para novos horizontes teológicos cujos segredos talvez sejam desvendados apenas no Reino de Maria.
Enviaram-me uma ficha com trechos do “Tratado da Verdadeira Devoção1”, que dizem respeito ao mistério da Encarnação do Verbo. Referem-se não só ao fato de o Verbo ter-Se encarnado pela ação do Divino Espírito Santo nas entranhas puríssimas de Maria, mas também à vida oculta de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, durante o tempo da gestação. Então, São Luís Maria Grignion de Montfort diz o seguinte:
A Encarnação é um resumo de todos os mistérios
Os verdadeiros escravos de Nossa Senhora terão uma devoção especial pelo mistério da Encarnação do Verbo […], que é o mistério adequado a esta devoção, pois que esta devoção foi inspirada pelo Espírito Santo:
1o. Para honrar e imitar a dependência em que Deus Filho quis estar de Maria, para glória de Deus seu Pai e para nossa salvação; dependência que transparece particularmente neste mistério, em que Jesus se torna cativo e escravo no seio de Maria Santíssima, aí dependendo d’Ela em tudo;
2o. Para agradecer a Deus as graças incomparáveis que concedeu a Maria, principalmente por tê-La escolhido para sua Mãe digníssima, escolha feita neste mistério. São estes os dois fins principais da escravização a Jesus Cristo em Maria.
Em outro trecho, afirma São Luís Grignion:
O tempo não me permite deter-me aqui para explicar as excelências e as grandezas do mistério de Jesus vivendo e reinando em Maria, ou da Encarnação do Verbo. Contento-me, por isso, em dizer, em três palavras, que é este o primeiro mistério de Jesus Cristo, o mais oculto, o mais elevado e o menos conhecido; que é neste mistério que Jesus, em colaboração com Maria, em seu seio, e por isto chamado pelos santos “aula sacramentorum”, sala dos segredos de Deus, escolheu todos os eleitos; que foi neste mistério que Ele operou todos os mistérios subsequentes de sua vida, pela aceitação deles: “Iesus ingrediens mundum dicit: Ecce venio ut faciam, Deus, voluntatem tuam2” (cf. Hb 10, 5-9).
Por conseguinte, este mistério é um resumo de todos os mistérios, e contém a vontade e a graça de todos. Este mistério é, enfim, o trono da misericórdia, da liberdade e da glória de Deus.
Um livro profético por seu misterioso conteúdo sobre a devoção a Nossa Senhora
Há aqui duas notas correlatas e que convém acentuar: Na primeira delas, São Luís Maria Grignion de Montfort declara que esta é a devoção por excelência dos verdadeiros escravos de Nossa Senhora. Na segunda, ele afirma que o mistério da Encarnação — mistério da vida oculta de Jesus em Maria Santíssima — contém todos os outros mistérios. Foi em Nossa Senhora que Ele resolveu fazer todas as coisas que realizou e, portanto, o ponto de partida de todas as maravilhas d’Ele está nesta vida oculta em Maria.
Vamos analisar cada uma dessas notas.
O “Tratado da Verdadeira Devoção”, a meu ver, é um livro eminentemente profético, pelo que contém de misterioso sobre a devoção a Nossa Senhora. Vê-se que há coisas insondáveis ditas por ele, as quais, com certeza, vão se revelar com o progresso da Teologia no Reino de Maria, mas que, por enquanto, não se conhecem devidamente.
Jesus quis depender de Maria mais do que um escravo de seu senhor
Por exemplo: quem poderá aprofundar convenientemente este fato posto em realce?
Nosso Senhor, vivendo em Nossa Senhora, estava completamente escravizado a Ela, e a situação d’Ele era a de um ente consciente — porque Jesus teve uma perfeita consciência desde o primeiro instante do seu ser — que formou, inteiramente lúcido, o seu próprio Corpo nas entranhas da Santíssima Virgem e começou a viver ali. Ele ficou contido só por uma criatura, vivendo no contato exclusivo com Ela e na dependência a mais completa que uma pessoa possa estar em relação à outra.
Para termos um pouco a ideia deste mistério, imaginemos um homem adulto a quem fosse dado viver no ventre materno. Até que ponto ele se sentiria circunscrito, aprisionado, dependente, escravo, englobado por sua mãe completamente?
Pois bem, nesta situação viveu o Verbo de Deus feito carne. E Ele, lúcido desde o primeiro instante do seu ser, quis, por um desígnio d’Ele, viver assim dentro deste templo, deste palácio, numa relação misteriosa com Nossa Senhora.
Aquele que teve o poder suficiente para fazer com que a Encarnação se desse em Maria Virgem, com que Ela fosse virgem antes, durante e depois do parto, também poderia fazer com que, por exemplo, realizada a concepção, um minuto depois se desse o nascimento. Não era nem um pouco condição obrigatória Deus Encarnado, Deus Humanado, viver nove meses em Maria. Ele quis que fosse assim, ou seja, desejou ter com Ela esta forma de dependência, de relação de alma que não chegamos a compreender completamente, de tal maneira ela é profunda, misteriosa e inesgotável.
Em suma, Ele quis ser verdadeiro escravo d’Ela. É uma inversão de valores que nos deixa desnorteados. Ele dependeu d’Ela mais do que um escravo depende do seu senhor. O escravo tem vida, respiração e movimentação próprias. Ele não. Jesus, antes de nascer, quis depender assim de Nossa Senhora.
Jesus, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus
Qual foi a forma de união que assim se fez? Qual o estilo de relação entre Criador e criatura que ali se estabeleceu? É uma questão insondável, mas para a qual temos um certo termo de comparação no mistério que Ele mesmo operou.
Jesus Cristo, verdadeiro Homem, era verdadeiro Deus. Do homem Ele tinha a alma, o corpo e o sangue. Na sua humanidade era tão homem como nós, naturalmente concebido sem pecado original, mas descendente de Adão e Eva. E a sua natureza humana, unida à sua natureza divina, forma uma só Pessoa divina. É um mistério.
Por outro lado, quando Nosso Senhor, no alto da Cruz, sofrendo tudo quanto sofreu, pronunciou estas palavras do salmo que prediz a Ressurreição d’Ele: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?3”. Sendo Ele a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tendo, portanto, a plenitude de todas as felicidades, como pôde dizer que estava abandonado? E Jesus também disse: “A minha alma está triste até a morte4”, embora, como Deus, estivesse nadando no oceano infinito de todas as alegrias e de todas as glórias do Céu.
A escravidão a Maria: imagem da união de almas entre Ela e Jesus
Há também um mistério na relação de almas de Nossa Senhora com Nosso Senhor. É um mistério, naturalmente, menos augusto, menor, mas infinito também, e por isto, para nós, completamente insondável. Mas que algum dia, suponho eu, deitará mais luzes para a humanidade.
Eu creio que no Reino de Maria vai aparecer uma explicação teológica mais completa de alguns desses segredos, e então se compreenderá melhor o próprio Reino de Maria, e também um mistério já bem menor, mas ainda superior ao nosso entendimento, que é nossa escravidão a Maria Santíssima.
São Luís Maria Grignion de Montfort declara que a devoção pelo mistério da Encarnação é, por excelência, a dos verdadeiros escravos de Nossa Senhora. E que o mistério da vida oculta de Jesus em Maria Santíssima contém todos os outros mistérios
Quer dizer, Nossa Senhora consente em estabelecer com seu escravo uma união de almas incomparavelmente menor, mas que é imagem da união de almas entre Nosso Senhor e Ela na Encarnação.
Mistérios que só no Reino de Maria serão desvendados
São mistérios encaixados, imbricados, que não sabemos absolutamente como desvendar, e constituem uma espécie de linha admirável, mas, para dizer tudo numa palavra, misteriosa, em oposição a dois erros da Revolução. Esses dois erros, igualmente abjetos, detestáveis, da Revolução são, de um lado, o individualismo e, de outro, o socialismo que chega até a forma mais inumana: o panteísmo.
O panteísmo afirma: “Todas as coisas que existem são deus e não há uma distinção de pessoa a pessoa, mas tudo é uma pessoa só no universo.” O individualismo diz: “Cada homem é inteiramente irredutível — e nisto ele tem razão, ou seja, pois o homem não se reduz a nenhum outro ser —, e as relações entre alma e alma são apenas essas que nós vemos e das quais podemos nos dar conta.”
No “Tratado da Verdadeira Devoção” há coisas insondáveis, as quais, com certeza, vão se revelar com o progresso da Teologia no Reino de Maria
Há algum mistério da graça, insondável, que não cai nem no extremo do individualismo nem do panteísmo, e que indica uma possibilidade de relação de almas a qual não se sabe bem como é, mas que, creio eu, no Reino de Maria se desvendará.
Em um livro de revelações privadas — não me lembro se de Santa Catarina de Siena ou de Maria de Ágreda — está dito o seguinte: um dia o Apocalipse seria desvendado, porque apareceria alguém que daria a chave de sua explicação. Quando acontecesse isso, o mistério de Maria se esclareceria, e então raiaria para o mundo a riqueza de um horizonte teológico novo, que iria se somar a todos os horizontes teológicos anteriores.
Creio que devemos colocar nossas esperanças nisso, e que esses mistérios conjuntos possam algum dia ter alguma explicação para nós; à espera do momento em que no Céu esta explicação se dilate um tanto, porque tenho a impressão de que compreender até o fundo, o homem jamais compreenderá.
Forma de comungar indicada por São Luís Maria Grignion de Montfort
Devemos atentar para o fato de que está dito nessa ficha que o mistério da Encarnação — e este é o segundo ponto — contém todos os outros mistérios. E dado que cada festa da Igreja traz graças especiais, próprias ao que é comemorado, no dia da Encarnação todos os mistérios da Igreja devem ter uma espécie de fragrância, irradiação do perfume espiritual inicial.
Devemos pedir à Santíssima Virgem que venha a nós espiritualmente receber Nosso Senhor, que Ela prepare as nossas almas e esteja presente em nós para Ele ser dignamente recebido, já que não estamos à altura de fazê-lo
E devemos nos recomendar muito a Nossa Senhora da Encarnação para isto: que Ela venha a nós e penetre em nós na fecundidade e na sacralidade dos seus mistérios, e que Ela tome conta de nossas almas e inicie conosco esta relação de almas, esta plenitude de união da Senhora com o escravo para nos dominar, nos conter e sermos com Ela humildes e submissos como o Menino Jesus foi. Esta deve ser a nossa súplica.
Seria, por exemplo, um bonito tema para a meditação, ao recebermos a Sagrada Comunhão no dia da Encarnação, lembrarmo-nos desta coisa admirável: Nosso Senhor repete em nós, de algum modo, a presença d’Ele em Nossa Senhora. É fora de dúvida. Devemos pedir à Santíssima Virgem que venha a nós espiritualmente receber Nosso Senhor, que Ela prepare as nossas almas e que Ela esteja, tanto quanto se possa entender, presente em nós, para Ele ser dignamente recebido, já que não estamos à altura de fazê-lo. Então, nosso ato de adoração ser praticado por meio d’Ela. É uma forma de comungar indicada por São Luís: os quatro atos de piedade — adoração, ação de graças, reparação e petição — serem feitos por meio d’Ela.
Quer dizer, que Ela faça tudo isso a Nosso Senhor quando Ele estiver presente em nós e que nos unimos a Ela. Há depois outro aspecto: deveríamos fazer a Nosso Senhor, presente em nós, uma adoração bem feita, que é a das nossas almas com toda a perfeição que elas deveriam ter, segundo o plano da Providência. Entretanto não estamos nesta situação. Precisamos pedir então a Nossa Senhora que ame a Deus daquele jeito como deveríamos amar, de maneira que O reparamos mais completamente. É um modo de indenizar um pouco a Nosso Senhor pelo muito que Lhe negamos, recusamos e decepcionamos.
Eis o esquema para uma Comunhão no dia da Encarnação, e oxalá para todos os dias. Não sou favorável a esquemas obrigatórios para a Comunhão. O Espírito sopra onde quer, mas serão felizes aqueles em cuja alma o Espírito soprar a ideia de comungar todos os dias assim.
(Extraído de conferência de 24/3/1970)
1) GRIGNION DE MONTFORT, São Luís Maria. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis: Editora Vozes, 2002, n. 243 e 248. pp. 230; 232-233.
2) “Ao entrar no mundo, Jesus declara: ‘Eis que Eu vim, ó Deus, para fazer vossa vontade’”.
3) Mt 27, 46.
4) Mt 26, 38.