O corpo e a alma formam uma só pessoa. Se alguém vai para o Inferno, a justiça manda que ele seja castigado no corpo e na alma, porque é a pessoa inteira que peca e deve ser punida. E quando uma pessoa se salva, também seu corpo será objeto do prêmio celestial; o Céu empíreo existe para recompensar os bem-aventurados nos seus corpos.
Já falamos de vários aspectos materiais do Céu empíreo, e convém ir preparando os nossos espíritos para aquilo que é a essência da felicidade celeste, a qual não está no Céu empíreo, mas fundamentalmente na visão de Deus face a face. Deus, puro espírito, eterno, perfeitíssimo, inefável, cuja consideração nós teremos eternamente e que constitui, Ele sim, a nossa felicidade perfeita.
A felicidade da alma será infinitamente maior do que a do corpo
Nosso corpo é elemento integrante de nossa pessoa. A alma não está para o corpo como, por exemplo, o corpo está para a roupa, a qual pode ser tirada, jogada fora, trocada por outra, e o corpo continua no estado normal. O corpo não é a roupa da alma; corpo e alma formam um só todo, uma só pessoa.
E se alguém vai para o Inferno — que Deus nos livre! —, a justiça manda que ele seja castigado no corpo e na alma, porque é a pessoa inteira que peca e deve ser punida. O corpo é instrumento da alma para a maior parte dos pecados, e é bom que o instrumento seja punido como é castigada a alma, autora do pecado. Então, a contrario sensu, é também conveniente que o corpo seja premiado quando a pessoa se salva.
E Deus dispôs o Céu empíreo para que os corpos tenham ali seu prêmio, junto com as almas. A alma se reúne ao corpo por ocasião da ressurreição, e o corpo recebe numerosos deleites. Mas, ao mesmo tempo, a alma tem um deleite ainda muito maior, e convém que seja maior porque, dos dois elementos que constituem o homem, o corpo e a alma, esta é muito mais nobre do que aquele, sem nenhuma comparação.
Basta considerarmos os animais — que têm corpo, mas não possuem alma — e a superioridade do homem sobre os animais, para compreendermos até que ponto a alma, que é espiritual, imortal, é superior ao corpo.
Nesta perspectiva, se entende bem que a felicidade da alma tem que ser muito maior que a do corpo; não só muito maior, mas infinitamente maior do que a do corpo. A alma vê Deus face a face, e nesse convívio com Deus a alma tem uma felicidade verdadeiramente inexprimível.
Contato de alma intensíssimo e diletíssimo
Para formar uma ideia adequada da felicidade de ver a Deus, eu me sirvo de alguma coisa do que diz Cornélio a Lápide1, sobre o deleite da convivência das almas entre si no Paraíso celeste; o contentamento que uma alma terá no conhecer outra e ser uma com a outra. E, a partir disso, como um remoto, pálido e insuficiente termo de comparação, poderemos ter uma noção do que é a convivência da alma com Deus.
De acordo com Cornélio a Lápide, no Paraíso celeste os homens terão mansões transparentes, não para que nelas nada se faça de oculto, nem de vergonhoso, mas a fim de que todas as almas estejam em condições de tomarem contato umas com as outras, verem o que estão fazendo, conhecerem o que estão pensando, cogitando, a todo o momento. De maneira que há um contato de alma intensíssimo e diletíssimo!
Não é como o contato entre nós aqui na Terra, quer dizer, cada um tem seu corpo que reflete, de algum modo, alguns estados de alma que se pode observar, quando se presta atenção. Então, meio hipoteticamente, meio com certeza — muitas vezes não sabendo nós distinguir exatamente a hipótese da certeza —, formamos uma certa noção a respeito da mentalidade, da psicologia, do estado de espírito de um outro, como ele está recebendo a nossa conversa e nossa companhia, e como estamos recebendo a companhia dele.
Esse contato de alma aqui na Terra dá alguma luz; mas, sobretudo, tem penumbra. Gostaríamos de conhecer muito mais. No Céu nós nos conheceremos diretamente, como se cada alma lesse outra à maneira de um livro aberto.
Perpétua festa de conhecimento, de gratidão e de aprofundamento
Como todas estarão no respectivo estado de perfeição, tendo sido, no Purgatório, purificadas de todos os defeitos que tinham na Terra, a consideração de uma outra alma é altamente aprazível. Qualquer que seja a alma. Não há os inconvenientes que existem na Terra, onde, sendo ou não bom psicólogo, se estorva de repente, por defeito nosso ou de outrem, com estados de espírito incompatíveis com os nossos. E com a incompatibilidade, surge o desprazer do convívio.
Às vezes aparece, pelo contrário, uma “suma” harmonia. A palavra “suma” vai aqui sempre entre aspas, porque sumo só se pode dizer de Deus. Mas uma grande harmonia, que é fugidia, surge durante alguns instantes e depois desaparece. E no máximo o que se pode dizer é: “Se eu conhecesse essa pessoa mais a fundo, em tal veio, provavelmente, nos entenderíamos muito bem. E nos outros veios, como nos entenderíamos? Seria igualmente bem? Isso que nela foi tão fugaz, que profundidade, que substância tem? O que é essa pessoa?”
No Céu não há nada disso! Todos os estados de alma são definitivos. Podem uns aparecer com mais realce, outros, com menos, conforme o que a alma vê em Deus e vai despertando esses ou aqueles estados de alma. Mas tudo é perfeito. E nós temos, então, além do conhecimento total, o conhecimento daquilo que é totalmente deleitável, harmonioso em si mesmo — não há contradição no interior daquelas almas — e harmonioso conosco.
Porque como estaremos, mediante a oração e ajuda de Nossa Senhora, em nosso estado de perfeição, nunca nos arranharemos uns nos outros. E teremos uma alegria em ver este, aquele, aquele outro, como uma perpétua festa de conhecimento, de reconhecimento, de aprofundamento que não termina nunca mais. E esta alegria — que ainda não é, nem de longe, o gáudio de ver a Deus face a face — nós podemos imaginá-la, se encontrarmos no Céu aqueles que foram nossos conhecidos na Terra e nos ajudaram, ou a quem nós ajudamos, a praticar o bem.
Por exemplo, que alegria no Céu nós encontrarmos uma alma em que notamos determinado fulgor, e ela nos diz: “Notastes tal disposição em mim. Vós vos lembrais de que foi devido ao vosso ensinamento?” Ou então, se se tratar de uma pessoa que terá vivido muito depois de nós: “Sabei que isso eu aprendi de Fulano, que aprendeu de Beltrano, de Sicrano… — e lá vem a genealogia, não relativa ao nascimento necessariamente, pode também ser, mas é a fileira de pessoas até chegar àquele que deu o primeiro conselho — e a vós eu agradeço!” Os dois se inclinam, mutuamente se reverenciam e se amam.
A movimentação de eucaliptos soprados pelo vento, e o minueto de Boccherini
Isto é convívio, em que a inveja, o ódio, o desagrado pelas desigualdades não existem; onde um maior enche o menor de contentamento e satisfação!
Algum tempo atrás, viajando por uma rodovia de São Paulo, tive uma ideia muito passageira disso. Há em certo trecho uma plantação enorme de eucaliptos, pertencente a uma companhia que fabrica papel, e num determinado lugar existe um pequeno alagado, onde corre um riozinho; a terra é um pouco pantanosa e a plantação se abre um tanto. Passo com certa assiduidade por lá, e uma vez ou outra tem acontecido que o vento sopra de um modo curioso, talvez em redemoinho, causando a impressão de que aquelas árvores estão fazendo reverências umas às outras.
Em certa ocasião, tive uma superior impressão de convívio ameno, respeitoso, inteiramente harmônico. Quando eu vejo essas árvores assim, a música terrena de que me lembro é o minueto de Boccherini2, no qual o trato mútuo das figuras que fazem parte da dança é eximiamente musicalizado.
Todos os estados virtuosos da alma, desde a indagação reflexiva mais atenta, até o enlevo, tudo se fará notar no Céu, nas várias almas, sobretudo naquelas cuja virtude foi intensíssima.
Muito mais do que isso, penso na harmonia existente no Céu entre as pessoas que apreciam as mútuas virtudes, e assim se reverenciam. Inclusive a maior em relação à menor, porque a criatura, por mais alta que seja, ama e respeita toda criatura de Deus, pois ali há uma imagem e semelhança do Criador. Mas também porque toda criatura é única e todo homem, debaixo de qualquer ponto de vista, em algum aspecto é único. E nesse convívio do Céu se conhece aquilo que a pessoa tem de irrepetível, de único. Portanto, tem-se o deleite de, no conhecer, fazer uma referência a Deus, entendendo o que Ele quis realizar ali. E com isso ter um gáudio especial.
Compreendemos, então, o contínuo conhecimento de uns e de outros, e como, ao sabor do que Deus vai mostrando, eles mesmos vão apresentando suas cores. Tudo isso faz desse convívio de alma a alma um deleite que não podemos ter bem ideia nesta vida.
O Céu é dulcíssimo, com variedade deleitável de sabores espirituais
Uma coisa desta vida nos ajuda a compreender um pouco esse deleite: há pessoas que são expressivas; quer dizer, elas exprimem o que sentem. Algumas são agradavelmente expressivas. Outras são desagradavelmente expressivas, às vezes sem culpa própria; há pessoas que têm modo de ser desagradáveis.
É muito deleitável entrar em contato com uma pessoa que exprime bem aquilo que tem a dizer, mas em que se percebe não só o sentido claro da palavra, mas a harmonia, a consonância de toda a personalidade com aquilo que está sendo dito.
Poder-se-ia dizer que aquele que tem esse instrumental está para quem se exprime de um modo teórico e sem outras refrações fora de si, como aquele que canta, ou seja, diz a mesma coisa cantada, e o que simplesmente fala.
Ora, no contato dos homens entre si no Paraíso — sobretudo no contato com os Anjos, com Nossa Senhora e Nosso Senhor — notaremos isso, porque tudo funcionará perfeitamente e de um modo agradabilíssimo; não haverá, portanto, um só contato que não seja verdadeiramente magnífico.
E, nos esplendores do Céu, se nós virmos passar, por exemplo, São Gregório VII perto de nós, irradiante de glória — como ele estava quando o Imperador Henrique IV se ajoelhou diante das portas do castelo onde se encontrava o Papa, pedindo para entrar e depois, quando entrou, para pedir perdão —, notaremos todas as modalidades de santidade que houve nele, inclusive a cólera santa que o animou naquele momento.
Não podemos imaginar, portanto, um Céu adocicado. Doce, sim, adocicado, não! Doce, dulcíssimo, mas com essa variedade deleitável de sabores — sabores espirituais, bem entendido! —, por onde todos os estados virtuosos da alma, desde a indagação reflexiva mais atenta, até o enlevo, desde a cólera mais angélica, até a serenidade mais diáfana, mais tranquila, tudo isto se fará notar no Céu, nas várias almas, sobretudo naquelas cuja virtude foi intensíssima.
Há um quadro do Fra Angelico, do qual gosto muito, que representa São Domingos estudando. E para realçar a pureza do Santo, Fra Angelico pintou um homem feito, mas com a inocência de uma criança, sentado, com uma das mãos no queixo, lendo um livro colocado sobre os joelhos. No Céu, poderemos contemplar São Domingos.
Alegria de poder encontrar-se com São Tomás de Aquino
Como seria bonito, por exemplo, ver São Tomás de Aquino pensando profundamente num tema, e o espírito possante dele à procura da verdade, pondo os prós e contras: “Parece tal coisa, porque tem isso, aquilo, aquilo outro. Porém, há também esse, aquele e aquele outro argumento contrários. Agora, como concluir?”
Depois de ter levantado cordilheiras magníficas de prós e de contras, pensar e dizer que não conseguia resolver, ele se ajoelhava diante do tabernáculo, com uma genuflexão profunda e, com os olhos postos na mediação de Nossa Senhora, abria o sacrário e punha sua cabeça dentro dele, para pensar e encontrar a verdade. Que coisa magnífica! Como seria sua fronte venerável?
Vendo passar São Tomás no Céu, se nota tudo isso! E compreendemos o gáudio que essa consideração pode dar. Sobretudo se São Tomás sorri para nós e diz: “O senhor estava numa reunião, em São Paulo, onde todos excogitavam de mim com a cabeça posta dentro do Sacrário, não é? Eu naquela hora, no Céu, rezei pelo senhor!” Como será grato para nós, vermos que somos conhecidos de São Tomás, o qual, estando já no Céu, nos protegeu quando estávamos na Terra. Podemos imaginar os primeiros encontros no Céu e a alegria desta forma de convívio!
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência
de 9/1/1981)
1) Cornélio a Lápide (* 1567 – † 1637): jesuíta e exegeta flamengo.
2) Luigi Boccherini (* 1743 – † 1805): compositor clássico italiano, famoso por seus minuetos.
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