Os infortúnios, nossas limitações e defeitos constituem cruzes, por vezes muito pesadas, que devemos saber carregar. Certas pessoas, sem compreenderem a beleza e a necessidade do sofrimento, procuram fugir dele por meio de um blefe. Dr. Plinio nos aponta a atitude, ao mesmo tempo ufana e equilibrada, de um verdadeiro católico face à dor.
“T ollat”, leve-a! E não a arraste, nem sacuda, nem reduza e, ainda menos, a esconda! Isto é: leve-a bem alto na mão, sem impaciência nem pesar, sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e sem alívio natural, sem envergonhar-se, e sem respeito humano. “Tollat”, que a coloque sobre a fronte, dizendo com São Paulo: “Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coisa que não a Cruz de meu Senhor Jesus Cristo!” (cf. Gl 6, 14). Leve-a aos ombros a exemplo de Jesus Cristo, a fim de que essa cruz se torne para ele a arma de suas conquistas e o cetro de seu império: “(imperium) principatus (ejus) super humerum ejus” (cf. Is 9, 6). Enfim, coloque-a, pelo amor, em seu coração, para torná-la numa sarça ardente que, sem consumir-se queime, noite e dia, de puro amor de Deus1.
Sofrimentos que devemos aceitar para salvar nossas almas
Neste trecho da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, vem enunciado o princípio de que, em relação à cruz, ou seja, ao sofrimento que Nossa Senhora nos manda, não nos cabe o levarmos resignada e arrastadamente, mas conduzi-lo alto, com alegria e ufania.
Dizia o Duque de Saint-Simon que o mundo deveria ser conduzido “à la croix haute”, tomando a cruz na mão e, com ela bem alta, fazer tocar todas as coisas. Porque se nos reportarmos ao que se entende por cruz, então compreenderemos bem o que diz esse texto de São Luís.
A cruz é o conjunto dos sofrimentos que devemos aceitar para salvar as nossas almas. Em primeiro lugar, os esforços que nossa santificação exige, abrangendo o enorme domínio da ascese. Em segundo lugar, os infortúnios que nos acontecem. E em terceiro lugar, as limitações e restrições em nós mesmos, com as quais devemos nos conformar. Todo homem tem uma série de limitações, e não deve apenas arrastá-las penosamente, tristemente, tomando-as como um fato consumado, mas, ao ver outros que têm mais virtude, mais inteligência, ou qualquer coisa a mais do que ele, precisa ter satisfação, dar graças a Deus, a Nossa Senhora, e por esta forma manifestar a aceitação das próprias limitações.
Como levamos nossa cruz em matéria de ascese? Se algo me custa muito, é de bom aviso pedir graças a Nossa Senhora para entregar não apenas o que me foi pedido, mas dar mais. Porque, assim, faço uma renúncia mais completa àquele apego que me levava a sentir dores em conceder aquilo, e vou muito mais longe no caminho da cruz e da santidade, do que um outro que não segue esse princípio.
Devemos cortar as raízes de nossos defeitos
Por exemplo, uma pessoa que seja colérica e se põe como norma: “Nunca darei o meu consentimento em encolerizar-me com alguém, sem razão.” Se o defeito preponderante dela é a cólera, ela nunca ficará nesse limite. Porque, com a preocupação de ficar no mínimo, ou seja, apenas no limite da correção nos assuntos em que temos uma tendência contrária muito forte, não extirpamos a raiz, mas apenas cortamos os maus frutos que estão em nós. Resultado: esses frutos surgirão com tanta abundância, que todo nosso tempo e energia não bastarão para cortá-los continuamente.
Então, como se leva a cruz nesse caso? Dizendo: “Tenho uma tendência para estar continuamente me irritando com os outros. Portanto, não vou me limitar a não me irritar, mas serei um modelo de correção no trato com os demais. Mesmo nos casos em que fosse meu direito me encolerizar, não me encolerizarei. Só por esta forma eu mato a raiz de minha cólera. É o meu mau gênio que me leva continuamente a estar implicado e irritado com os outros. Então, tenho que descer aos porões de minha alma e fazer uma poda dolorosa.”
Devemos pedir a Nossa Senhora as graças para fazermos essa poda generosamente e com ânimo forte, isto é, fixar uma resolução e traçar um programa: “Eu chegarei, de uma vez só ou por progressivos cortes, a eliminar dentro de mim aquilo que constitui essa raiz da qual brotam os meus pecados.” Isso será com a cólera ou com um defeito oposto à cólera, que é a apatia e a falta de sensibilidade para com as ofensas profundas; será em relação a qualquer defeito preponderante. Leva-se a cruz alta, como recomenda São Luís Grignion de Montfort, quando temos a graça de operar por esta forma.
Todos os homens passam por infortúnios
O que é a aceitação dos infortúnios que nos acontecem?
Não há pessoa que não receba, de vez em quando, uma bombarda de algo que não quereria e acontece de um modo inteiramente imprevisto. Ora é a morte inopinada de alguém a quem estimávamos muito; ora é uma campanha de calúnias, ou uma amizade que desejávamos muito e não a obtivemos, ou um dinheiro, a saúde; seja o que for, mas ninguém deixa de receber o impacto de vários infortúnios.
Como levar a cruz até o fim, em relação a esses infortúnios? Preparando a alma no período de tranquilidade para que, no tempo da adversidade e das desventuras, ela seja forte.
Se logo depois de me acontecer uma coisa desagradável, de ter me aclimatado e posteriormente saído dela, eu esfrego as mãos e penso: “Graças a Deus, saí de dentro disso, e nunca mais vai me acontecer novamente!” Quando me acontecer, apanha-me fraco e desprevenido, e tenho outro drama.
Devo pensar o contrário: “Esta vida é um vale de lágrimas. Aconteceu-me isso agora e pode me suceder outra desventura daqui a dez minutos. E isto é normal, porque são as regras do jogo, não posso estranhar. Por pouco que eu olhe em torno de mim, desde que não o faça como um ingênuo, mas procure ver como é a vida dos outros, percebo que cada um tem infortúnios sérios, grandes e, portanto, é natural que eu os tenha também. Pela bondade divina, no momento não tenho, mas tê-los-ei daqui a pouco. Se vier o sofrimento, Nossa Senhora o estará mandando para o bem de minha alma, e devo estar preparado. Assim, habituo um pouco a minha imaginação de maneira a não ficar tão surpreso e não ser colhido de improviso se me acontecer alguma desventura.”
O oposto a isso é o defeito moral de muita gente que começa a imaginar situações otimistas. Isso amolece a alma, tira completamente a coragem para a luta.
O que se deve fazer? Prever o mal, não exagerando a possibilidade de ele acontecer, mas acostumando os olhos a considerá-lo de frente. E, durante o infortúnio, rezar para Nossa Senhora afastá-lo, se for a santíssima vontade d’Ela; pedir até que seja a santíssima vontade d’Ela afastá-lo, se Ela não nos dá a sede de cruz. Rezar filialmente, pedindo isso à Virgem Maria, mas compreendendo que Ela pode não conceder, porque, por mais altos desígnios, quer que eu tenha uma cruz a carregar nesta vida.
Cada criatura tem um belo e digno lugar nos planos de Deus
No tocante às limitações que temos, deveríamos partir da ideia de que cada criatura, por menor, mais apagada e mais defeituosa que seja — e falo, sobretudo, da criatura racional —, tem um lugar nos planos de Deus. E um lugar de formosura, de dignidade. Portanto ela deve aceitar, com enlevo, e dentro de todas as suas limitações, esse destino.
Não me refiro apenas a limitações físicas, mas a defeitos nativos, por exemplo, de inteligência, de temperamento e até morais.
A pessoa deve fazer este raciocínio: Se Deus compôs para Si um universo como um diadema, no qual há pedras centrais enormes e, à medida que se distanciam do centro, as pedras vão diminuindo, até o diadema fechar-se em pedras bem pequenas; e se, para a beleza desta joia, deve haver pedrinhas e eu sou uma delas, então vou me alegrar por isso, dar graças a Nossa Senhora e aceitar de bom humor, porque componho a beleza desse conjunto.
Portanto, não vou morrer de tristeza, por haver pedras maiores do que eu. Pelo contrário, fico alegre de compor o cortejo das pedras e ser um lampejo pequeno dentro dos lampejos maiores. Uma vez que a beleza do conjunto precisa de mim, tenho um papel, uma razão de ser, e não sou uma excrescência, desde que saiba realizar o meu destino.
Um ponto fundamental nesta questão é que não se deve ter vergonha de ninguém. Por menor que eu seja, tenho uma razão para existir e, por isso, não há motivo para me desprezarem. Estou desempenhando meu papel.
Por mais rico que seja um palácio, é necessário que nele haja vassouras. O dono da residência não pode desprezar, quebrar e jogar fora a vassoura, pois ela tem uma função a exercer.
Logo, se tenho a minha razão de ser, não terei complexo ou vergonha por não ser os outros. Quererei ser eu mesmo. E se os outros quiserem pisar em mim, eu rio deles, porque a boa razão e o bom direito estão de meu lado. O próprio Deus está de meu lado. E vou ser, com toda a paz da alma, o que sou, com os meus defeitos e limitações.
Se sou pouco inteligente ou sem graça, ou tenho má memória, ou sou pequenininho; que importa? Não tenho minha razão de ser? Então eu me afirmo: sou como sou, sou o que sou, aqui estou! Desde que eu seja de acordo com a regra com a qual devo ser, não tenho vergonha de nada e me afirmo com toda a dignidade e toda a minha finalidade.
Um blefe existente hoje mais do que em qualquer outra época histórica
Como esse senso da cruz importa ao senso contrarrevolucionário! O oposto disso é o blefe, por onde o mundo de hoje está continuamente elaborando atitudes pelas quais as pessoas procuram dar a entender que são mais do que são.
Por exemplo, bancar ser mais inteligente do que é, ou então mais fino, de melhor posição social, ou ter mais dinheiro, mais importância, mais prestígio, e outros mil recursos para blefar. Acho que hoje em dia o blefe é de uma frequência maior do que em qualquer outra época histórica. Isso significa não querer carregar a cruz.
Certa vez, uma pessoa, estando em minha residência, disse-me:
— Sua casa é bonita, e tenho muito gosto em vir até aqui. Mas não teria coragem de morar nela.
— Mas por quê? — indaguei.
— Porque, neste gênero de casas, há objetos muito mais ricos e distintos do que os existentes aqui, e eu não teria coragem de habitar num ambiente que não fosse o mais bonito no gênero. Como também, na sua posição, não teria coragem de ir até a esquina e ficar “pescando” um táxi, como o senhor “pesca”. Um homem de sua idade e condição tem automóvel. E eu teria vergonha de não possuir automóvel. Jamais iria para uma esquina, por onde passa muita gente conhecida, e estar ali “pescando” um táxi. Cada um que passa dentro de um automóvel próprio e vê o senhor ali, pensa: “Está vendo? Este chegou a essa idade e não tem automóvel!”
Eu disse:
— Meu caro, isso não me causa a menor emoção. Moro nesta casa e julgo que ela me serve de boa moldura, porque não sou, nem pretendo ser, mais do que isso. Acho, inclusive, que está de acordo com meu nível de educação e com minha posição tomar um táxi na esquina e, portanto, não me incomodo. E se eu tivesse que pegar ônibus ou bonde, também não teria vergonha, porque, se não possuo dinheiro, não adianta pensar que tenho. Se eu possuir um automóvel, darei graças a Deus; se não o tiver, estarei com a mesma fisionomia ao sol, com a mesmíssima apresentação. Aqui estou, Plinio Corrêa de Oliveira, pronto a aguentar qualquer desprezo e revidar, mantendo-me normal, sem me amargurar.
Entretanto, muitas pessoas procuram blefar até mesmo aos seus próprios olhos, quando o melhor é ver a verdade, pois a humildade é a verdade. Isso é carregar a cruz. E carregando-a, devo considerar também que posso vir a perder um pouco do que tenho e ser menos do que sou. Se isso acontecer, Deus seja bendito!
Essas são verdades conhecidas e cuja lembrança faz bem à vida espiritual.
Martírio de São Théophane Vénard
Contudo, parece-me que haveria restrições a fazer, de ordem prática, ao que eu disse. Porque, pelo nervosismo, pela debilidade de vontade, por algo de desengonçado existente nas gerações mais recentes, compreendo que esse quadro traçado assim, embora se preste a ser admirado, sua simples explicitação pode causar, em certos momentos, tremor.
Alguém me contou, outro dia, como foi o martírio do Bem-aventurado Théophane Vénard2. Ele estava sendo preparado para ser decapitado, diante do mandarim. E o carrasco, vendo um pequeno objeto de ouro que ele possuía, disse-lhe: “Se você me der isso, eu tiro a sua cabeça de um golpe só, você nem vai sentir.” Não lembro se ele deu ou não o objeto, mas respondeu ao verdugo: “É melhor que você demore, porque quanto maior o número de pancadas, mais ocasião terei de sofrer.”
Admiro isso profundamente, mas uma coisa como essa me enregela. Se eu fosse morrer decapitado, não me passaria pela cabeça fazer isso. Eu julgaria ter cumprido inteiramente o meu dever, simplesmente deixando-me decepar. De maneira que se eu tivesse que ser martirizado, eu tout bêtement3 teria que pensar em outra coisa e me entregar nas mãos da Providência. Se Nossa Senhora quiser permitir que me cortem a cabeça com vários golpes, e Ela me der forças para isso, ficarei encantado. Mas se Ela não me der forças, não há remédio, tem que ser de um golpe só, porque do contrário não aguento mesmo. O que equivale a dizer que, se for de sua vontade, Ela me dará as graças.
Esse estado de alma é um pouco o da santa mártir que tinha disposição para ser comida por qualquer fera, exceto por um leopardo. E a Providência arranjou um jeito de que não fosse um leopardo que a devorasse.
O problema da cruz e a pequena via
Esses são exemplos de uma debilidade de alma que não se pode considerar propriamente como um defeito, mas uma estrutura com sua fragilidade própria. E diante do dever descrito em toda a sua austeridade, pergunto-me se não há almas que experimentam uma constrição, uma incapacidade de realizar o sacrifício até o fim, com todas as aparências de falta de generosidade que, entretanto, não o é; trata-se apenas do indicativo de uma outra via de dentro da qual o homem pede a Nossa Senhora:
Nossa Senhora toma a alma débil e a carrega aos ombros para fazê-la atravessar as dificuldades mais tremendas. De maneira tal que a alma faz, com toda facilidade e suavidade, coisas enormes que nunca se imaginaria capaz de realizar.
“Minha Mãe, sou fraco demais para enfrentar esses pavores. A simples perspectiva de suportá-los me faz tremer. Se quiserdes isso de mim, dai-me uma graça especial, operai na minha alma com uma rapidez, uma sublimidade, uma eficácia especial, para que ela seja capaz daquilo de que eu, pelo simples jogo da graça ordinária, não sou. E então, eu Vos peço enlevos, entusiasmos, favores e auxílios, por onde, em determinado momento, minha pobre alma se torne capaz.”
Creio ser esta uma das diferenças mais frisantes entre a grande e a pequena via; esta última conta com auxílios desses. Nossa Senhora toma a alma débil e a carrega aos ombros para fazê-la atravessar as dificuldades mais tremendas. De maneira tal que a alma faz, com toda facilidade e suavidade, coisas enormes que nunca se imaginaria capaz de realizar.
Ou, então, não faz essas coisas, porque são afastadas de seu caminho. E a Santíssima Virgem obtém para a pessoa auxílios a fim de realizar as coisas pequenas, frágeis, comuns, com tanto amor que as engrandece por esta forma.
Eis como devemos considerar esse problema da cruz na pequena via.
Muitos caminham, ora pela grande via, ora pela pequena via
O Bem-aventurado Teóphane Vénard, levado por uma grande graça no último momento de sua vida, realizou um ato da grandeza de um dos Macabeus, desses martírios mais terríveis. Mas não o fez pela ascese inaciana, com propósitos, e prevendo ponto por ponto, mas meio impelido por um vendaval da graça que o suspendeu.
A mesma coisa se deu, depois, com Santa Teresinha, grande devota dele. Ela morreu com um heroísmo que o herói da Chanson de Roland poderia invejar, ou considerar que emulou com ele. Mas ela chegou a isso pela pequena via.
Tudo quanto acima foi dito sobre a aceitação do sofrimento deve ser profundamente admirado. Mas cada alma, conforme seu caminho, toma em relação a isso alguma distância; e muitas almas, em relação a alguns pontos, ora andarão à grande via, ora à pequena via, de acordo com o feitio de cada uma e o tipo de perfeição moral que Nossa Senhora quis suscitar.
Quantas vezes, ao desvendar panoramas muito sérios e grandiosos em matéria de vida espiritual, há almas que podem se sentir alquebradas ou desanimadas e, ao mesmo tempo, empolgadas. O que fazer diante de panoramas como esses?
Devemos não só amar e admirar, mas conhecer e compreender esta outra via. Rezando bem, entenderemos como aplicá-la aos nossos próprios problemas, para transpor — suavemente, no ritmo da nossa personalidade e sem nos alquebrarmos — obstáculos para os quais de outra maneira não teríamos coragem.
Por uma via ou por outra, portanto, seguimos a Nosso Senhor Jesus Cristo com a cruz, e a levamos alto. E, guiados pelo Divino Espírito Santo, com o auxílio das graças obtidas por Nossa Senhora, seremos levados a praticar a virtude de carregar a cruz, com aquela plenitude que São Luís Maria Grignion de Montfort deseja.
(Extraído de conferência de 12/8/1967)
1) Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 19.
2) Jean-Théophane Vénard, presbítero e mártir (*1829 – †1861). Beatificado por São Pio X e canonizado pelo Beato João Paulo II.
3) Do francês: ingenuamente, inocentemente.