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A evolução da sacralidade na História

As diversas áreas de civilização, com suas características e aspectos geográficos próprios, na medida em que se deixaram imbuir do espírito da Igreja, foram engendrando grande riqueza de símbolos que manifestavam a evolução de diferentes formas de sacralidade em consonância com as peculiaridades de cada povo.

Considerando o ponto originário da humanidade — não segundo a tese evolucionista, mas conforme o relato bíblico, isto é, os seres humanos oriundos do Paraíso terrestre e trazendo consigo uma série de noções, de verdades, que eles foram dilapidando ao longo das sucessivas decadências —, notamos que nos povos da bacia do Mediterrâneo, como também em outros povos anteriores à Idade Média — portanto, toda a antiguidade pagã e depois a católica —, em determinado momento, os homens muito decaídos começam a elaborar uma civilização, já tendo esquecido quase tudo quanto viera do Éden.

Os orientais são muito voltados ao religioso

Essa civilização chegou a um certo estágio que seria, por exemplo, o ponto atingido pelos gregos e romanos, quando o Império Romano do Ocidente caiu. Ou então, pelos egípcios, quando o Egito ruiu. Essa etapa representava um grande progresso em relação à decadência, a partir da qual houve uma ascensão.

Mas não deixa de ser verdade que, do ponto de vista material, esse progresso é infinitesimal em comparação com as possibilidades reais de ascensão do homem nesse campo. Entretanto, os homens se desenvolveram muito mais no aspecto da alma do que do corpo; portanto, na cultura, nos valores intelectuais, fé, religião.

Em tudo isso, esses povos — romanos, gregos, persas, egípcios, assírios, chineses, japoneses, indianos — desenvolveram-se muito. De maneira que apresentam civilizações ainda bastante primitivas no plano temporal, mas com algumas produções culturais de alta quintessência: monumentos, palácios, templos etc., que são as expressões materiais de um grande progresso no campo espiritual.

Mas no plano comum da existência, qual o nível de vida de um habitante médio de Persópolis, Antioquia, Jerusalém, Atenas ou Roma? Era um nível muito elementar em comparação com as facilidades que vieram depois. Ficava, portanto, uma espécie de sobra para as preocupações do espírito, da inteligência.

Michael Martin
Dunas no deserto do Saara, Niger

O gênio oriental — não vou mencionar aqui os romanos nem os persas — é muito voltado para as considerações de caráter religioso, transcendente, para a procura do maravilhoso não existente nesta Terra, e que os orientais procuram apresentar em clave religiosa. E, por causa disso, são espíritos intensamente meditativos, amantes do isolamento, gostando de ficar contemplando as estrelas e coisas deste gênero.

Esse feitio de espírito, uma vez embebido pela Religião Católica, originou uma sacralidade assaz voltada a afirmar a transcendência de todas as coisas religiosas sobre as terrenas, e a ornar muito os aspectos religiosos e não tanto os terrenos, simbolizando, assim, essa transcendência e levando as almas à condição de anacoretas, para meditarem nesse sentido do maravilhoso religioso.

Por exemplo, um bispo revestido dos paramentos da Igreja Melquita; se ele estiver colocado junto a autoridades civis — ainda que fossem das forças armadas da Inglaterra, ou mesmo a Rainha coroada, embora tivessem maior riqueza de joias e uma condição social muito mais alta do que a de um bispo —, estas ficariam quase como um enfeite ao lado do prelado. Porque a clave posta por ele seria muito superior.

Essas sacralidades dos símbolos pertenciam à Igreja Católica. Os cismáticos saíram da casa paterna, levando essas riquezas. Quando vários deles voltaram, a Igreja não tocou em nada disso, pois eram dela, e os incorporou sem dificuldade. Ela retificou apenas fórmulas de Fé, mas sem mexer no rito, na simbologia, nem na clave.

Grandeza de uma noite no deserto

Algo dessa clave se nota na natureza de certos panoramas magníficos do Oriente, como céus noturnos sobre uma vegetação muito pobre. Aquilo tem uma grandeza peculiar. A noite no deserto, por exemplo, tem uma grandeza própria que uma noite na Normandia não tem.

No Oriente, cada estrela tem o que dizer; pode-se conversar com as estrelas, e no chão há apenas areia. Não se pode comparar com uma noite avistada a bordo de uma embarcação sobre o Sena. Mas notemos bem que a clave no deserto tem qualquer coisa voltada a uma peculiar expressão de sacralidade que, enquanto tal, sobe mais. Quanto a isso não há dúvida nenhuma. Eu sou bem insuspeito para afirmar isso, com todos os meus encantos pelo Sena, pelo Reno, por tudo na Europa, mas é assim.

As vastidões dão a ideia do infinito. Depois, aquela areia está toda envolta de céus — é a figura que se cria em nosso espírito —, e areia provavelmente muito branca, formando ondulações… Não se tem a sensação da aridez da terra sem fertilidade, mas a impressão de que é o fundo do mar.

E isso confere um tipo de sacralidade que convida a renúncias, a isolamentos magníficos, a se perder em considerações altíssimas! Creio que tudo isso entrava nos desígnios da Providência quanto ao modo de encaminhar a Igreja. Quer dizer, à Igreja no seu nascedouro — historicamente próxima do Filho de Deus que Se fez carne e habitou entre nós, de Nossa Senhora, de Belém, de Jerusalém, etc. — convinha que a primeira clave fosse essa. E a Providência dispôs fatores entrelaçados, e de índoles também diversas, para a expressão desta clave de sacralidade.

Eu incluo nessa visualização povos como a Índia, a China, a Pérsia, Bizâncio e outras civilizações que acabaram desaparecendo, algumas das quais marcaram até certo ponto os Bálcãs. Mas o forte deles foi a Ásia e o Egito. Por exemplo, não creio absolutamente que Cartago se pusesse nessa perspectiva; mas o Egito estava inteiro e, debaixo de certo ponto de vista, na ponta dessa perspectiva.

Os gregos e os romanos

Falemos agora dos gregos e dos romanos.

Observa-se uma evolução muito interessante, porque o espírito grego não é levado a ser indiferente a esse mundo de que falamos, nem a se afirmar numa posição, por assim dizer, de anacoreta, mas a pensar sobre esse mundo para pedir a respeito dele uma altíssima explicação.

Austriacus
Alexandre Magno no Templo de Jerusalém – Museu do Prado, Madri (Espanha)

Ora, esta explicação não se encontra nas curiosidades do espírito oriental. E isso está direito, considerando a clave deles, pois uma coisa é viver, outra é elucubrar. A elucubração já faz parte deste mundo. E essa altíssima explicação filosófica competia aos gregos.

Os romanos, quanto à clave, aproximam-se ainda mais da terra. Eles haurem a explicação e passam para a organização. Entendido o universo, é preciso organizá-lo conforme a razão, de acordo com tudo aquilo que se pensou e se elucubrou. Nasce então o Direito, surge o Império.

Vem, mais tarde, a decadência do Império Romano, entram os bárbaros. Em Bizâncio há uma tentativa de síntese, muito mal realizada, entre a barbárie e a civilização, que poderia ter dado certo, mas não deu. Bizâncio não organizou o Oriente, e este apodreceu Bizâncio. Houve coisas lindas, mas que se deterioraram depois. Vê-se até como seria, se não tivesse dado errado.

A Idade Média

Enfim, deixemos de lado Bizâncio e pensemos na Idade Média ocidental. Entram os bárbaros, muito menos cidadãos de pura elucubração doutrinária, do Direito, mas bastante organizadores sob a influência da Fé. Levados a aceitar toda a alta visão das coisas proveniente da cultura romana e grega, embebida pela cultura católica, mas pedindo uma coisa: que a ordem temporal por eles organizada fosse um símbolo da ordem ensinada pelos antigos. Daí, a preparação simbólica desta vida para se parecer com a outra. Não um simbólico artificial, mas o símbolo elaborado, como o vinho que não é um produto artificial da uva, mas um produto elaborado a partir da uva, da natureza.

Outro traço característico da civilização ocidental é a emoção religiosa, ao ver que Deus desceu a este mundo, encarnou-Se e dignificou tudo. Quer dizer, a Encarnação do Verbo, a elevação de toda essa ordem pela participação na natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo; a consideração do que a Igreja trouxe para dignificar tudo isso e a festa deste mundo enquanto tocado e elevado pelo Divino Salvador; a Redenção do homem, a festa, portanto, da humanidade resgatada que pode levar uma vida na qual é superior à natureza que ela governa, onde tudo tem o perfume de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seria como uma volta ao Paraíso terreno.

Enquanto o oriental procura mais o Paraíso celeste, o europeu nascido das invasões bárbaras procura o Paraíso terrestre. A antecâmara do Céu e o Céu empíreo dão mais a expressão do medieval; donde a construção de uma civilização, ela mesma um símbolo magnífico de todas essas coisas transcendentes.

François Marius Granet
Monges vivendo em uma gruta – Museu Hermitage, São Petersburgo (Rússia)

A essa concepção corresponde também uma forma de holocausto ligado a esse tipo de religiosidade. O holocausto antigo era o da vítima separada e imolada para expiar pelos outros. A forma de holocausto nascido desta ordem de coisas de que tratamos, é o padecimento dos que vivem dentro desta ordem e conformes a ela, para mantê-la direito, como fatores que sustentam essa simbologia e lutam, até à Cruzada e à morte, contra quem quer destruí-la. Portanto, o holocausto do bom católico consiste mais raramente em se isolar e levar uma vida de anacoreta, do que em viver dentro da sociedade, sustentá-la e ancorá-la, com os padecimentos inerentes a seu estado.

Os modelos de santidade dos que se isolavam e ficavam brilhando, por suas penitências, nos altos montes ou nas grutas, constituía o polo de atenção para o católico que ficava no mundo. O próprio movimento monacal, com seus mosteiros erigidos longe da cidade, exercia sobre esta uma influência à distância.

O instinto organizativo dos medievais

Considerando, agora, o assunto por outro aspecto, esses povos bárbaros se mostram com espírito muito prático, mas no melhor sentido da palavra. Isso, a meu ver, perdeu-se ou se degradou depois, mas inicialmente eles se organizavam, penetravam nas cidades abandonadas pelos romanos, ou se instalavam ao lado dos romanos — com enorme horror para estes —, e em tudo isso os bárbaros deparavam-se com problemas enormes para resolver, sem que eles se dessem conta teoricamente; entretanto, muito organizadores e muito capazes, eles os iam resolvendo.

E passam a desenvolver uma ação e um urbanismo, não à Haussmann1, mas, à maneira de animal roedor, eles vão roendo o problema, sistematicamente e com jeito, contornando, enfrentando, dando origem, por exemplo, ao feudalismo, às corporações, às universidades. Nada disso foi planejado, mas um instinto organizativo muito seguro, um pouco pelo exemplo de uns para os outros e a capacidade de se adaptar, como também de enfrentar, fizeram essa maravilha de intencionalidade humana e de organicidade plástica, que são as coisas propriamente medievais.

Avant
Carlos Magno recebe a submissão de Widukind, em Paderborn – Palácio de Versailles, França

Sob a inspiração da Igreja, nascem os símbolos

Por exemplo, Carlos Magno se esforçou para estabelecer a ordem legal o quanto pôde. Todas as circunstâncias se conjugaram para derrubar, para abalar essa ordem legal, mas ele deixou atrás de si um senso tão profundo e tão vivo — não cartesiano — de legalidade, a ponto de a transferência da dinastia dos carolíngios para os merovíngios ter sido uma obra-prima de transformação, não apenas dinástica, mas de uma série de outras coisas, mostrando como é uma transformação na ordem, ao contrário das revoluções que arrebentaram depois.

Por assim dizer, foi a revolução mais legal que houve no mundo, a apoteose do senso de legalidade. Mas esse senso vinha se interpenetrando de encontro a tais obstáculos! Porém, ninguém explodiu contra esses obstáculos, ninguém cedeu; os obstáculos foram contestados em toda a linha, e na medida do possível foram corroídos.

Isso tudo é o fruto de uma sabedoria herdada, acumulada de pai para filho, numa espécie de patriarcalidade urbana, e às vezes rural, na qual vão se transmitindo as experiências de todos, movidos pelas mesmas aspirações católicas e, por isso, voltados para o mesmo rumo.

A seu modo, essa maravilha de verdadeiro espírito prático não fica absolutamente atrás das maravilhas anteriores. É algo extraordinário, de entusiasmar!

A SainteChapelle é um exemplo disso; e também uma das coisas que me encanta na Espanha: o pueblo, a aldeia espanhola. A diversidade de aldeias pobres, de estilos locais, regionais, uma coisa maravilhosa, riquíssima e com uma variedade toda própria! Aquilo tudo constitui manifestações do mesmo instinto profundo, “batizado” até o fundo e que vai encontrando soluções regionais oriundas da mesma mentalidade, da mesma orientação, mas com fórmulas locais bonitas, variadas…

Nascem desse modo os símbolos, sem qualquer intenção premeditada. Como alguém que, ao escrever, exprime na caligrafia seu temperamento, embora não tenha a intenção de deixá-lo transparecer, assim também aqueles povos exprimiram “caligraficamente” nas aldeias, nos castelos, nas catedrais, nas cidades, nas instituições, o que eram eles.

Sem a Igreja, há abominação, desolação! Com a Igreja, as mais cintilantes e dulcíssimas possibilidades são abertas. Essa é a civilização sacral.

Marcelo Ferreira
À esquerda, Sainte-Chapelle, França. Abaixo, Granada, Espanha

Nikater

É uma maravilha própria, nascida de um senso do ser claro, límpido, direito, lúcido, forte e organizado, sobre o qual sopravam continuamente o ideal e a inspiração católicos.

Senso sobrenatural profundo

Trata-se, portanto, de uma organização com senso sobrenatural profundo, pois essas realidades não são só naturais; todas elas são “batizadas”, beneficiaram-se direta ou indiretamente da Encarnação do Verbo, da Redenção. É uma ordem de coisas em que a ideia do sobrenatural encontra-se sempre presente, e dando uma viabilidade à ordem natural que ela não teria pela mera força do homem.

É uma ideia afirmada com toda a ênfase, e que põe a Igreja, os valores sacrais, no centro da ordem social. Mais do que isso, a vida, a alma dessa ordem é a Igreja; portanto, a Revelação, o Magistério, a vida sobrenatural, sacramental, a prece.

Numa sociedade assim constituída, a catedral, muito mais do que o edifício mais alto da cidade, é o coração de onde pulsa o “sangue” para toda a urbe.

Todas as nossas concepções sobre o papel do clero na sociedade temporal se verificam aí. O clero constitui não só a classe dirigente da Igreja, mas é a primeira das três classes sociais, tem uma palavra a dizer a respeito da organização temporal em matéria mista e, às vezes, um conselho em temas puramente temporais. Esta interpenetração é absolutamente típica da organização onde tudo, a seu modo, procede da Igreja. Sem a Igreja, há abominação, desolação! Com a Igreja, as mais cintilantes e dulcíssimas possibilidades são abertas. Essa é a civilização sacral.

Diliff
Toledo, Espanha

A Renascença: restos podres de Bizâncio transformados em ornato

Em certo momento veio a Renascença. Então os homens pegaram os restos apodrecidos de Bizâncio, transformando-os em ornato para continuar a trabalhar neste mundo, mas fazendo dele não mais a Cristandade, mas o Olimpo, com a necessidade de uma ordem racional elucubrada apenas pelo homem, e por mais ninguém. Uma ordem racional que, do ponto de vista intelectual, conduziu ao racionalismo, e na esfera da ação concreta deformou o senso prático desses povos, fazendo deles puros planejadores racionalistas. O senso do ser se deformou e eles perderam, com isso, também o senso do orgânico, passando a fazer construções do estilo de usinas ao lado da aldeinha alemã encantadora, por exemplo. E ao invés de olhar para o Céu, ou de continuar a contemplar a Cristandade existente na Terra, o homem começou a olhar para o inferno como ponto terminal.

Esta seria, portanto, uma exposição sobre a evolução da sacralidade.

Neste sentido, considero a permanência dos ritos orientais na Igreja Católica como uma recordação viva daqueles outros tempos, e que deveria permanecer sempre. O ideal teria sido a soma das idades, isto é, a Igreja oriental ter continuado e se somado à Europa, e nasceria depois a América. É para a soma das idades que aponta a espiritualidade do Reino de Maria.

(Extraído de conferência de 24/3/1982)

1) Georges-Eugène Haussmann, urbanista parisiense do século XIX.

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