Dona Lucilia admirava seu pai, o qual muito sofrera, e a partir dele ascendeu à figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de tudo quanto ensina a Religião católica. Com o olhar posto na cruz, sua alma desabrochou na dor, o que a fez acumular reservas de afeto e de solicitude que ficaram como uma espécie de tesouro a ser bondosamente distribuído a partir da eternidade.
Minha mãe era uma senhora muito mais feita para considerar as qualidades de alma das pessoas do que a Cristandade como um todo. Ela apreciava, sobretudo, o convívio entre as almas, e o objeto imediato de sua atenção foi a nobreza, a elevação de alma daqueles com quem se relacionava.
O pai de Dona Lucilia sofreu muito, desde pequeno
Dona Lucilia foi educada mais por seu pai, Dr. Antônio, do que por sua mãe, Dona Gabriela. Esta era um tipo de senhora como havia naquele tempo, mais um ornato para o lar do que propriamente dona de casa: muito bonita e fina, cuidava-se muito bem. E no sertão de Pirassununga1 daquela época, isto aparecia enormemente. Dr. Antônio, meu avô, gostava que sua esposa fosse assim. Portanto, era ele quem mandava na família.
Ele tinha sofrido muito, desde pequeno. Sua mãe, Dona Maria Jesuína, casara-se muito jovem com Dr. Cândido Ribeiro dos Santos, mas ela falecera também muito cedo, deixando quatro filhos. Dr. Cândido casou-se, então, com uma senhora muito frívola, leviana, afeiçoada às coisas mundanas.
Não tardou para os filhos do primeiro matrimônio serem empurrados de lado, e os do segundo leito colocados na primeira linha, criando assim na casa um ambiente de muita tristeza.
Meu avô esperou estar formado em Direito, e logo depois saiu de casa, passando a morar em Pirassununga, cidade que então estava apenas começando.
Lá ele acabou por fazer uma bonita carreira, mas sempre encontrando circunstâncias muito tristes e até trágicas em seu caminho. Depois de muitas dificuldades, mandou construir uma casinha, onde foi morar com a esposa, e ali viviam na pobreza. Meu avô lutou contra todos esses problemas de um modo tremendo, e sempre ganhando menos dinheiro do que precisava.
Ele pedia a Nossa Senhora que arranjasse um jeito de ele viver bem financeiramente. Afinal, a Santíssima Virgem resolveu os problemas, e ele ficou bem de fortuna, mas sempre levando uma vida de sacrifício. Minha mãe notava nele certa melancolia e o admirava.
Compondo um padrão de católico
Santa Teresinha, numa de suas cartas, afirma que seu tio Guérin era um verdadeiro santo. Muitas atitudes dele, vistas fora do contexto, parecem um pouco duvidosas: ganhou de repente uma alta soma de dinheiro, herdou um castelo, ficou meio metido a nobre, embora fosse da pequena burguesia. Teve assim coisas discutíveis, não imorais; mas um santo é muito mais do que um homem que apenas não é imoral! O tio Guérin parece ter sido, o tempo inteiro, um homem íntegro. Mas parece-me muito mais provável que o Sr. Martin, pai de Santa Teresinha, tenha sido santo. Mas a Igreja ainda não se pronunciou2.
Percebe-se que Santa Terezinha via no tio Guérin um analogado primário3. Portanto, uma pessoa pode compor o seu analogado primário, e Dona Lucilia o compôs de acordo com aquele gênero. A consideração sobre se as almas correspondiam ou não àquele padrão e qual era o relacionamento que assim se estabelecia, foi o objeto da atenção direta e primeira dela na época de sua infância, e durante algum tempo depois.
A isto se somou, de um modo muito natural e orgânico, a Religião, porque se vê que aquele analogado primário era construído segundo uma noção católica de homem, a qual por sua vez se formava conforme uma ideia da Igreja Católica inteiramente exata e verdadeira; ideia essa muito alimentada pelo que a Igreja ensina sobre a santidade, enfim, a respeito de todas as virtudes cristãs.
Uma montanha atrás da qual se levanta o Sol
Para Dona Lucilia, portanto, o grande homem da vida temporal era o pai dela, visto nessa perspectiva.
Mas percebe-se que, a partir daí, seu espírito elevou-se. E, de uma série de satisfações e decepções na ordem pessoal, veio uma certa ideia geral sobre a vida, o conjunto dos homens, o gênero humano, e uma ascensão muito maior, relativa à figura do Sagrado Coração de Jesus, de toda a Religião católica, da piedade, de Nossa Senhora, etc.
E nessa fase, partindo de um ponto de vista moral, há elucubrações metafísicas e religiosas que culminaram na figura do “Quadrinho”4, em cujo olhar se percebe tudo isso, mas se nota também uma enorme e suave decepção, sem vingança nem amargura, sem abandonar uma esperança que está no fundo e faz a alma reportar-se a muito mais alto. No fim do processo, o material primeiro não ficou posto de lado, mas foi ultrapassado, como por exemplo, uma montanha atrás da qual se vê levantar o Sol: a primeira coisa que aparece é a montanha, depois se levanta o Sol, e a montanha parece pequenininha porque o astro-rei está brilhando no horizonte.
Assim também, nesse processo mental, primeiro surgem certos aspectos terrenos, os quais depois são considerados pequenos porque algo maior apareceu.
As almas desabrocham na dor
A personalidade dela era natural e legitimamente construída para um âmbito que, ao longo dos dias e das dores, devia se abrir. E somente dores muito sérias e nobremente aceitas, com o olhar posto na cruz, iriam abrindo aquele âmbito, mas abrindo dolorosamente.
Dir-se-ia que a Providência quis reservar o espetáculo de um desabrochar. Era normal que tivéssemos, portanto, um horizonte que se fosse abrindo.
A abertura na dor… Isso daria para falar nem sei quantas coisas; pretendo dizê-las no momento oportuno porque está chegando a hora de insistir a respeito do papel do sofrimento e da suprema beleza da luta na vida, etc., de se valorizar essa noção em toda a sua perspectiva.
O próprio de uma alma é desabrochar na dor e, para esse tipo de alma, o sofrer gradualmente é um sofrer dolorido. E quando há união de almas assim, muitas vezes elas maturam ora na alegria e na afinidade, ora na dor.
Não quero dizer que nos contatos de mamãe comigo não tenham, às vezes, surgido perplexidades e dificuldades, porque acho que ela tomou toda a sua abertura mais ou menos no fim da vida.
Quanto mais ela me quisesse, mais minha ausência devia fazê-la sofrer. Ela estava no direito de pensar, normalmente: “Ou sou eu a mãe tão vazia que não comove meu filho, ou ele é um filho de pedra. Que equívoco existe entre nós?” E eu saía para fazer uma reunião onde alguns não aproveitavam o que eu lhes oferecia. Eu a deixava sozinha e ia cumprir o meu dever.
Quantos equívocos assim pode haver? E tanto mais doloridos quanto mais íntimos! Todos sabem que um grão de areia entre o globo ocular e a pálpebra deixa um homem louco, por causa da íntima adesão entre a pálpebra e o globo ocular. Entre mãe e filho, nessas condições, isso é como um grão de areia…
Isto fica dito apenas de passagem para entenderem bem que não é um processo pacífico, como o desabrochar de uma flor, mas que as almas desabrocham crucificando-se.
Creio que aquilo que ela não compreendeu em vida fê-la acumular reservas de afeto, de solicitude, as quais ficaram como uma espécie de tesouro para post mortem. E hoje ela compreende.
Vendo como mamãe trata os aqui presentes, eu me lembro de como ela tratava a mim. Tenho a impressão, às vezes, de que estiveram há minutos com ela, conversaram um pouco, mas saíram impregnados da presença dela; um certo bom trato grave, sério, suave, enormemente condescendente, abarcativo, que diz uma palavra e passa e é o suficiente para um dia, mas cria uma vontade de voltar.
Toda graça, de que o “Quadrinho” ou a sepultura dela possa ser ocasião, diz “até daqui a pouco” ou, “até amanhã”; nunca corre a cortina, bem à maneira dela.
(Extraído de conferência de 16/5/1981)
1) Município localizado na região centro-leste do Estado de São Paulo.
2) Os pais de Santa Teresinha do Menino Jesus, Luís Martin e Zélia Guérin, foram beatificados em 31 de outubro de 2008.
3) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.
4) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucília. Ver Revista “Dr. Plinio” n. 119, p. 6-9.