jueves, noviembre 21, 2024

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Martírio de alma

Dona Lucilia praticava atos insignes de virtude; mais do que isso, em sua alma convergiam todas as virtudes, as quais se manifestavam com toda a facilidade conforme as circunstâncias. Entretanto, devido à sua fidelidade à Doutrina Católica e ao seu modo de ser contrarrevolucionário, ela foi gradualmente incompreendida e isolada, o que constituía um verdadeiro martírio de alma.

Quando ouço falar, filialmente, da “ação angélica” de Dona Lucilia, pergunto-me em que sentido se poderia comparar a ação dela à de um Anjo.

Ao se escutar uma música de tão alta qualidade que parece não se ajustar às coisas desta Terra, pode-se dizer que é uma música angélica. Assim podemos falar também de uma bondade angélica, de uma coragem angélica. Todos os mais altos predicados do homem, quando exercidos na linha da Doutrina Católica e do sobrenatural, podem ser qualificados de angélicos a este título, por analogia.

Sagacidade e doçura

Com mamãe se verificava, se concretizava, muito uma doutrina que a experiência da vida tem-me mostrado ser verdadeira. Trata-se da doutrina que poderíamos chamar de “ponto fecundo”.

A alma pode e deve ter várias qualidades. Por exemplo, todo mundo tem a possibilidade de possuir um certo grau de sagacidade, mas esta participa da desconfiança. É-se sagaz a partir do momento em que se desconfia que uma coisa é de um certo modo como não aparenta e, através de pequenos indícios, acaba-se percebendo a realidade.

Então, um homem será um detetive sagaz se desconfiar de um outro que, embora tenha ares de um cidadão comum, é como não aparece, quer dizer, um criminoso. E o detetive, através de pequenos indícios, descobre a verdade.

Um outro será um minerador sagaz se, de uma pedra ou de um terreno que não parecem, à primeira vista, ser auríferos ou conter brilhantes e esmeraldas, ele, entretanto, através de pequenos vestígios, percebe que a realidade corresponde ao contrário da aparência.

Assim, a sagacidade tem qualquer coisa de penetrante e, como tal, algo de duro, porque o que é mole não penetra; algo de aplicado, de atento, de consecutivo. O homem sagaz corre atrás de uma hipótese como o caçador ao encalço da raposa. Há uma semelhança entre a alegria do sagaz em perceber e acabar encontrando a verdade, e a do caçador quando ele abateu a fera.

Porém, a sagacidade é uma virtude de alma que se aplica tanto aos sentidos quanto à mera inteligência. Uma pessoa será muito sagaz desde que ela, pensando, baseada em vagos nexos entre teorias diversas, vislumbrou que esses nexos têm algo de comum. Então ela faz essa caçada, por assim dizer aeronáutica, fora do mundo concreto, do palpável. E isso também é sagacidade.

A sagacidade enquanto tal é obviamente diversa da doçura. Esta é uma atitude que se toma à vista de uma certeza que já se adquiriu: “Fulano merece o meu afeto.” Ou, em vista de outro tipo de certeza: “Sicrano não merece a minha ternura, mas eu sei que Nossa Senhora, do Céu, é doce para com ele, ainda que não mereça. Terei com ele a doçura d’Ela.” Quer dizer, tenho certeza de que Maria Santíssima é meiga para com ele, e isso não supõe mais a pesquisa.

Assim eu poderia exemplificar a perder de vista.

Suas potencialidades eram como pétalas de uma flor

O próprio da virtude não é só que cada ação interna ou externa do homem esteja de acordo com as regras — o que é muito bom —, porém é mais. É preciso que, no ponto de convergência de todas as virtudes, a pessoa, conforme a circunstância, com facilidade seja sagaz, doce, amena, corajosa, prudente, etc. Com toda a facilidade ela se move na “rosa dos ventos” dos fatos. Aí está, a bem dizer, o ponto central, o núcleo da virtude.

E nesse ponto, para um bom conhecedor, a alma é mais aprazível de ser vista, porque se verifica nela todas as possibilidades de bem esboçadas, e como que se interpenetrando uma na outra. Percebe-se bem a harmonia de uma com a outra; e essa harmonia — como todas as harmonias — é mais bela do que cada ponto isolado.

Ora, o que me chamava muito a atenção em mamãe é que, várias vezes, tive ocasião de vê-la praticar atos de virtude, a meu juízo, insignes. Porém, mais do que isso, é o fato de nunca tê-la encontrado fora desse seu “ponto fecundo”.

Via-se que ela até gostaria de agir, de fazer, mas os acontecimentos nada lhe pediam, e ela morava numa espécie de redoma. Mas mantinha todas essas suas potencialidades sem efervescência, nem a agonia da inação, ou a angústia do inútil, postas mais ou menos como estão as pétalas numa flor: não se movem, não se acotovelam, são irmãs e ornam a corola.

E era-me agradável, aprazível em alto grau, ir mudando os temas e notando, de acordo com o que era tratado, como ela ia entrando nos vários assuntos, sem nunca surgir uma contradição, um arranhão, uma distonia, nada!

Longa e tranquila solidão

E mais deleitável era-me encontrá-la sozinha; quando ela não percebia que eu estava entrando em casa, eu a via na sua longa e tranquila solidão. É principalmente disso que me lembro, quando olho para o Quadrinho1. A veneração que tenho pelo Quadrinho resulta, em parte, do fato de que ele a apresenta exatamente assim.

Olhem para o Quadrinho e notarão que ele não exprime em nada uma tendência de alma definida. É uma espécie de benevolência distinta para o que der e vier; voltada para todos, mas no momento para ninguém. Ela está apenas olhando.

Há ali duas atitudes diversas que se ombreiam de tal modo que — para os meus olhos de filho, pelo menos —, constituem um encanto: é o tão completo dar-se, com uma distinção por detrás, que diz afavelmente: “Conta, peso e medida em tudo, está muito bem.”

Esse isolamento em que ela vivia, creio que se deu gradualmente. Tenho uma certa impressão de que, quando menina e o ambiente todo era muito menos revolucionário do que é hoje, ela não sentiu esse colapso, esse choque com o ambiente, mas com uma ou outra pessoa dentro do ambiente, e com uma ou outra atitude singular de certos indivíduos. Então, com algumas pessoas ela demonstrava boa vontade, mas cujo todo não lhe agradava; era o contrário do que ela achava que deviam ser. Mas havia também atitudes dissonantes, inesperadas, tomadas por indivíduos a quem ela queria bem, e que a chocavam.

E isto dava a ela uma ideia triste desta vida onde coisas assim são possíveis. Depois, com a evolução geral das coisas, o estilo de afetividade dela, que era o estilo em curso, digamos, até a primeira década da República — portanto, até 1900 —, passou gradualmente a ficar menos em curso.

Martírio da alma

Então ela, que era muito benquista anteriormente, passou a ser menos querida. Embora ela continuasse a querer bem aos outros, passou a ser ignorada até o final da sua vida, e ficou completamente posta à margem e enigmática para todo mundo; inclusive para as pessoas contemporâneas dela, que foram adquirindo os novos modos de ser e o novo estilo de afetividade.

Esse isolamento e essa incompreensão graduais iam dando a ela uma compreensão cada vez maior do que era a vida, o ser humano, a realidade; e determinavam um refugiar-se axiológico no Sagrado Coração de Jesus e em Nossa Senhora, que lhe concediam aquilo que ela não tinha.

De maneira que houve uma espécie de gradualidade do martírio. Mas martírio ao pé da letra, porque era uma dor sofrida pela fidelidade a uma determinada atitude de alma e, portanto, um exílio branco, que nem por isso deixava de ser um exílio muito real, progressivo, injusto, sem motivo e caminhando cada vez mais para a incompreensão total. E ela sempre fiel à sua posição.

Isso caracteriza bem o martírio da alma.

(Extraído de conferência de 13/1/1981)

1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucília. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.

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