A visão sacral do universo, haurida no Sagrado Coração de Jesus por meio da Santa Igreja Católica, levava Dr. Plinio a tudo analisar sob este prisma e a discernir o cunho dessacralizante da Revolução.
Em menino, recebi a influência altamente benéfica dos jesuítas em minha formação. Assim, graças a Nossa Senhora, vincou-se muitíssimo no meu espírito a noção de que, por cima de tudo aquilo que eu vinha considerando e admirando nas etapas anteriores, pairava a autoridade doutrinária da Igreja, e o que havia na minha alma de bom, de belo, eu o tinha porque era católico e o recebia de minha comunicação espiritual, sobrenatural e religiosa com a Igreja Católica.
A Igreja, fonte de todo o bem
Os jesuítas não insistiam sobre a metáfora do Corpo Místico, mas a doutrina eles davam. Naturalmente, prestei muita atenção nela e se cravou muito em meu espírito a ideia de que a Igreja era a própria fonte de onde vinha tudo quanto havia de bom em mim. Ou seja, o Sagrado Coração de Jesus, por meio do Coração Imaculado de Maria. Essa noção era muito vivaz, mas foi “doutrinalizada” só mais tarde quando li São Luís Grignion de Montfort.
Tudo quanto era de Jesus Cristo, para mim vinha por meio da Igreja, a concha na qual pousavam todos os benefícios d’Ele para todos os homens. Eu me entregava àquilo e hauria tudo dali.
Mas a Igreja era a minha mestra e corrigiria os desvios eventuais a que meu espírito estava sujeito. Eu me sentia capaz de erro, pelo lapso da inteligência, pela tendência ao mal, mas também enormemente protegido pela ideia da infalibilidade da Esposa de Cristo.
Eu percebia a impossibilidade de fazer todos os homens pensarem do mesmo modo. Ou havia uma autoridade infalível que ensinava a todos, ou não existiria possibilidade de pensarem da mesma forma. Enquanto isso não se desse, a vida seria um caos, indigna de ser vivida.
Daí uma veneração enorme pelo Papado. E depois, correspondentemente, pelo Episcopado e pelos outros graus da Hierarquia.
Jardim protegido pelas muralhas do dogma e da lei
Juntamente com tudo isso, também uma ideia do poder governativo da Igreja.
Em primeiro lugar, as leis feitas por Deus, sacratíssimas, venerabilíssimas, mas obrigando como a lei obriga. Depois, as leis da Igreja, complementação das leis de Deus, obrigando também com uma autoridade divina.
Portanto, a noção do dogma, do preceito, da necessidade de obedecer — sobretudo em matéria religiosa — se vincou em meu espírito a fundo. E quem não obedecesse teria que cumprir uma pena. Eu tinha entusiasmo pela aplicação efetiva da penalidade, e repulsa em relação às autoridades que aplicam de um modo dorminhoco, negligente a lei, que velam com mão mole sobre o dogma.
Tudo isso formou uma vertente do meu espírito, como fruto das etapas anteriores. Não como uma etapa nova, mas uma complementação a uma coisa já existente.
E a inocência era para mim como um jardim magnífico, mas protegido pelas muralhas do dogma e da lei. Um jardim fortificado.
Há em certo lugar da Escritura uma referência ao hortus conclusus1 — jardim fechado —, que a Igreja aplica a Nossa Senhora. A Igreja me parecia um horto fortificado, cheio de maravilhas no interior, mas do lado de fora preparado, ajustado e assestado para o combate. A ideia da fortaleza era um complemento.
Ordem do universo e combates sacrais
Do choque com a Revolução vinha a ideia de que a ordem do universo pedia que fosse possível haver combates sacrais. Porque seria necessário que, em homenagem aos mais altos valores, houvesse os mais elevados sacrifícios, os heroísmos mais extremos, os sacrifícios mais terríveis, as abnegações mais cruciantes. Portanto, o sacral de si era belígero, no sentido de que a presença dele na Terra, ao mesmo tempo, atraía e repelia, criava uma divisão. E essa divisão provocava a luta.
A luta, de vez em quando, daria na guerra. E esta guerra, em certo sentido, completava a ordem do universo, porque era a efetivação do holocausto com sangue à sacralidade, que o homem deveria pagar.
De maneira que o pacifismo exagerado e o laicismo sempre me pareceram coisas correlatas, não na primeira superfície, mas no fundo.
Eu ainda não conhecia o ecumenismo falso, inteiramente diferente do ecumenismo verdadeiro. Podem calcular quando conheci esse falso ecumenismo, que sabor desagradável me produziu na boca…
Sempre me pareceu que esses utopismos não queriam considerar que, sendo o mundo um vale de lágrimas, de vez em quando era necessário que nele aparecessem lutas, conflitos, os quais levassem até esse ponto.
Era uma necessidade deplorável, fruto do pecado original e dos outros pecados dos homens, mas de uma natureza tal que seria ainda mais deplorável se não houvesse. Porque até mesmo o homem concebido sem pecado original ficaria amputado e deformado se ele não tivesse a possibilidade, às vezes, de levar a luta pelo sacral ao extremo de todas as dedicações.
Holocausto sublime que dá beleza à vida
Nesse sentido, a guerra legítima me aparecia como uma nota da sacralidade. Porque é um holocausto praticado pelo homem que vai à batalha, mesmo quando esta não tem motivo religioso, mas é uma questão de fronteiras ou algo assim. Neste caso, o combatente defenderá o direito de seu país por uma razão moral. Ele, católico, vai à luta porque um Mandamento de Deus o obriga a ir. Nesse sentido, para ele é uma “guerra santa”. Não santa na sua meta imediata, mas na sua meta última de cumprir o dever para com seu país.
Seria necessário que, em homenagem aos mais altos valores, houvesse os mais elevados sacrifícios, os heroísmos mais extremos.
De onde, então, em toda guerra justa, exatamente nos seus horrores, aparecer um sentido de holocausto sublime que dá uma beleza à vida, indispensável para compor os aspectos da existência, tal como ela é em consequência do pecado original e dos pecados atuais.
Alguém, para fazer chicana, perguntaria: “Você não deseja uma era de paz? Veja na Escritura tudo quanto se diz a respeito da paz, da beleza dela, como se deve querer uma paz eterna que nunca mais tenha fim. Você não deseja isso? E fica como uma hiena, um chacal à espera da efusão do sangue? E você se diz católico?!”
Como as doenças que nunca desaparecerão…
A resposta é muito simples. Aplica-se aqui tudo quanto sabemos a respeito da necessidade da doença. Não há quem possa, em certo sentido da palavra, gostar que haja enfermidades na Terra. Mas, de outro lado, ninguém pode imaginar até onde o mundo cairia se não houvesse doenças.
Então, o homem deve fazer o possível para diminuir o número de enfermidades, bem certo de que Deus nunca permitirá que elas desapareçam. E, pelo contrário, pode Ele dispor que, na medida em que o homem vá vencendo na luta contra as doenças, vão aparecendo enfermidades, menos numerosas é verdade, entretanto mais cruéis. Por quê? Porque Ele não quer que a dor desapareça dentre os homens.
A própria Igreja, que tanto fez para diminuir os sofrimentos do homem doente — com os bens do espírito e do corpo, incitando, estimulando e consolando —, entretanto sabe que a doença é de uma grande utilidade. Faz o possível para evitá-la, mas o faz tranquilamente porque tem ciência de que jamais desaparecerá de modo completo, e que, portanto, nunca faltarão doenças nesta Terra.
Assim também é a guerra.
Sacralidade e luta
Então, a esse senso de sacralidade se acrescentou um colorido militante, pelo qual a minha alma ansiava, e que se representava pouco nas expressões religiosas que eu conhecia até essa época.
Lembro-me de que quando os jesuítas falavam de Santo Inácio como grande combatente no cerco de Pamplona — eles ressaltavam muito isso —, eu ficava encantado, embora visse bem que a guerra, dentro da qual a batalha de Pamplona era um episódio, referia-se a questões de limites da França com a Espanha e, mais remotamente, com o Sacro Império; portanto, uma guerra temporal. Mas era um herói! Quando contavam que Santo Inácio ficava entusiasmado em ler os romances de Cavalaria, eu me regozijava.
Quando vi aquele livrinho de Carlos Magno2, a minha alma teve uma sensação de algo de completo, que se lhe acrescentava com a consideração desse maravilhoso.
Por quê? Precisamente porque o sacral sem a luta não me parecia completo. E, pelo contrário, a fina ponta da sacralidade parecia simbolizar-se para mim muito bem na fina ponta de uma espada.
O Protestantismo e a Revolução Francesa são dessacralizantes
Mais tarde, entrou a ideia da sacralidade ligada à questão da Revolução.
Eu tinha noções esparsas sobre protestantismo e o detestava, possuindo em relação a ele um horror intuitivo e muito profundo.
Lembro-me de que, em certa ocasião, a Fräulein Mathilde3 precisou falar com alguém dentro de um templo não sei de que seita protestante construído numa rua não muito distante de minha casa. Ela entrou levando Rosée por uma das mãos e a mim pela outra.
Quando me pilhei dentro daquele recinto e percebi que era uma igreja protestante, sentia horror até de respirar, por se tratar de uma coisa que não era católica, contrária à Igreja Católica. E toda a semente protestante se afigurava ao meu espírito como sendo um horror, algo satânico, nojento.
Depois, comecei a ler algumas coisas sobre a Revolução Francesa. No fundo, embora não se explicitasse isso no meu espírito, eu via bem que havia um elemento comum entre as duas Revoluções; não só o que está em meu livro Revolução e Contra-Revolução, mas algo que, quando o escrevi, estava no fundo de minha alma, mas ainda não chegara a explicitar inteiramente: é que ambas essas Revoluções são dessacralizantes.
As igrejas ou as seitas nascidas do protestantismo têm doses diferentes de restos de uma sacralidade envenenada, conspurcada. São restos de bom vinho misturado com pus e, portanto, falso, adulterado, asqueroso.
O protestantismo é todo ele um resto de sacralidade dado para tranquilizar as pessoas que, colocadas entre a negação ou a aceitação completa da sacralidade, acabariam por optar pela Santa Igreja Católica. Então os protestantes ofereciam, como uma espécie de mal menor, o pão feito sei lá de que farinha “leprosa”, que era o pão da doutrina protestante, em vez da Doutrina Católica, o mais puro dos pães.
Daí, por exemplo, eles não usarem batina, e uma porção de outras coisas que a Igreja Católica põe por inteiro. Eles não colocavam por não terem o estofo do sagrado, que só a Igreja Católica possui.
E onde havia dessacralização eu me sentia exilado, expatriado e inimigo de morte!
Na Revolução Francesa também. A sociedade do Ancien Régime4, com os defeitos que eu percebia bem, era ainda toda feita de um respeito sacral para com pessoas que, se fossem como as aparências pediam, deveriam se apresentar de um modo profundamente sacral: protocolo, etiqueta, maneiras, decoração, etc.
Em relação à Idade Média eu ainda não tinha feito a comparação, mas, vistas do tempo em que eu vivia então — os anos 20, com a influência laicista do cinema de Hollywood —, as coisas do Ancien Régime eram sacralizantes. Em graus diferentes, mas ao menos comportavam a sacralidade.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 14/4/1989)
1) Ct 4, 12.
2 ) Dr. Plinio se refere ao episódio ocorrido na Estação da Luz em São Paulo, quando, ainda menino, tomou conhecimento pela primeira vez da existência de Carlos Magno, ao se deparar com um livro popular que narrava a história deste Imperador e de seus pares. Ver Dr. Plinio, n. 8, p. 4-5.
3) Srta. Mathilde Heldmann, preceptora alemã contratada por Dona Lucilia.
4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.