sábado, octubre 5, 2024

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II – Recusa culpada ao Sagrado Coração de Jesus

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus foi maculada pela Revolução, a qual procurou abafá-la e dar-lhe uma conotação de algo antiquado e sem vida. Com isso, as fontes de graças que a Providência abriu para salvar o mundo foram abandonadas.

Eu notava uma diferença muito grande entre o espírito hollywoodiano que estava dominando cada vez mais a sociedade civil e Nosso Senhor Jesus Cristo, e era levado a comparar a firmeza e a afabilidade d’Ele com as brutalidades e as “doçuras” sensuais da Revolução. Porque o homem revolucionário era brutal, o trato de uns com outros era de uma familiaridade desabrida, desagradável, uma coisa incrível.

Flávio Lourenço

Quando tinham intimidades era para criar cumplicidades. Eram amigos na medida em que eles eram inimigos da autoridade e cúmplices para desobedecer, para organizar a revolta, para defraudar a autoridade, para diminuí-la. Nesses momentos eles eram amigos, do contrário eram inimigos uns dos outros.

Assim outras coisas. Por exemplo, o boxe era um esporte muito praticado entre os rapazes de minha idade, mas eu nunca o pratiquei. Não permitia que um outro pusesse aquela luva e fosse de socos em cima de minha face. Absolutamente não. Mas eles gostavam e viam na minha atitude uma censura a eles.

O uso da motocicleta. Um veículo feio que não tem nada de imoral em si, mas aquela barulheira enchendo a rua era o contrário de uma música. Se houvesse uma máquina que emitisse sons musicais, mas aquela porcaria… E quanto mais a pessoa pudesse obrigar a máquina a produzir sons e quanto mais esses sons fossem disparatados, mais ela ficava contente.

Todas essas coisas produziam uma oposição enorme entre mim e a Revolução e faziam parte de minhas reflexões em menino.

O espírito do Sagrado Coração contundido por Hollywood

Analisando o estado de espírito de uma pessoa que reza ao Sagrado Coração de Jesus, comparando isso com o estado de espírito das músicas norte-americanas, aloucadas, desordenadas, daquele tempo, eu as julgava tão diferentes d’Ele que nem havia comparação. Eu chegava à conclusão de que Ele era o contrário de tudo aquilo. Portanto, o oposto da Revolução. Mas era uma conclusão baseada numa antinomia evidente.

Uma vez que eu tinha visto como era Nosso Senhor Jesus Cristo, tinha-O amado, e querido que as coisas fossem semelhantes a Ele, concordando com isso até o fundo da minha alma, eu não podia deixar de detestar o que era feito “hollywoodianamente”, diante do que eu tomava atitude, pondo-me do lado d’Ele por completo, embora com prejuízo pessoal. E opondo-me aos que se opunham a Ele.

Bruce Wells CC3.0)

Daí, então, a luta total! Eu pensava: “Se é assim, vou lutar com todas as forças de minha alma dentro desta ordem, porque do contrário eu faria o papel de uma besta quadrada, colaborando para destruir aquilo cuja continuação eu quero.”

De fato, uma alma encantada com as harmonias da majestade sacral do Sagrado Coração de Jesus, perante Hollywood sente-se violentamente posta em choque. Para usar a palavra francesa: heurtée. Tem um choque com as coisas que não são como Ele. E, em face dessa trombada, ela teme que o conjunto existente dentro dela esteja ameaçado. E, no temer isso, ela analisa o que vem e percebe que toda coisa revolucionária ameaça a ordem universal. É uma revolução universal em germe que põe em risco a ordem universal.

Entretanto, eu me sentia como dentro de um verdadeiro cárcere por não poder dizer isso a ninguém. Porque, se dissesse, eu ouviria de todo mundo a mesma resposta: “Você acha feio o barulho da motocicleta? Eu acho engraçado. Aliás, é coisa de moço. Moço é assim, gosta de fazer barulho.” Eu tinha vontade de perguntar: “Moço é besta quadrada, é isso?”

Eu sabia que viria daí uma inimizade de morte, mas todos responderiam com as mesmas fórmulas estereotipadas.

Eu ficava para lá de indignado, porque me sentia como se me amarrassem um pano na boca e me impedissem de falar. Então, uma incompatibilidade não sei de que tamanho, da altura de uma torre, do Pão de Açúcar!

Nova fonte de graças num século em decadência

A respeito das revelações do Sagrado Coração a Santa Margarida Maria, haveria um pormenor a comentar que faz parte do que nós, com dor, poderíamos chamar de a pós-história dessas revelações, e que é a história delas em nossos dias.

O Sagrado Coração de Jesus apareceu a Santa Margarida Maria Alacoque num período em que o processo revolucionário já vinha se desenvolvendo largamente. E, debaixo de um certo ponto de vista, era um processo irreversível, pois a Idade Média estava extinta e a degringolada já começara. Embora restassem muitos aspectos magníficos e até em ascensão, por alguns lados, do velho corpo medieval, também é verdade que penetrara por toda parte a corrupção dos costumes e, com isto, o começo da Revolução sofística. Disso podemos ter bem a ideia se folheamos o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem e consideramos as páginas que São Luís Maria Grignion de Montfort consagra à descrição da apostasia no tempo dele. É um quadro trágico e precursor da Revolução.

Nesse momento interveio o Sagrado Coração de Jesus manifestando-Se a essa religiosa da Ordem da Visitação e declarando-lhe que Ele abria para as almas uma nova fonte de graças. Esta era a devoção ao Sagrado Coração d’Ele, e quem a praticasse receberia graças maiores, mais abundantes, mais generosas do que se tinham no passado, e com isso Ele atraía toda a humanidade à conversão.

Essa devoção teve peripécias na sua expansão, mas, afinal de contas, pode-se dizer que atingiu o seu auge na Santa Igreja Católica no século XIX e no período que vai até mais ou menos 1935; portanto, meados do reinado de Pio XI.

Com efeito, essa devoção foi muito estudada, teve grandes doutores, entre os quais São João Eudes; ela foi bem recebida pelos Papas, Leão XIII fez uma consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus1 e vemos, um pouco por toda parte, nas cidades construídas em fins do século XIX e no começo do XX – no Brasil, por exemplo –, haver igrejas consagradas ao Sagrado Coração de Jesus. Era uma devoção que estava muito em vista e que fazia muito bem às almas.

Sebastião C.
Aparição do Sagrado Coração a Santa Margarida Maria Alacoque – Igreja dos Jesuítas, Córdoba, Argentina

Dupla campanha contra a devoção ao Sagrado Coração

A partir do momento em que a heresia modernista – condenada por São Pio X e que esteve em letargo, mas jamais morta –, com o rótulo de Ação Católica, de Movimento Litúrgico, começou a levantar a cabeça no reinado de Pio XI e, daí em diante, até o pontificado de Pio XII, ela não fez senão se desenvolver à socapa dentro da Igreja, passando a combater a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Esse combate era feito de dois modos: um, venenoso, mas não o mais eficiente, de cochichar nos meios da Ação Católica e do Liturgicismo que era uma devoção sentimental, efeminada, sem conteúdo teológico e que só um tipo mal formado espiritualmente poderia ter. Quem objetasse: “Mas a Igreja aprovou essa doutrina como verdadeira, canonizou São João Eudes, Santa Margarida Maria. Onde está, então, a infalibilidade da Igreja?”, tal pessoa perdia as boas graças das autoridades eclesiásticas infiltradas nesse erro e ficava posta de lado no Movimento Católico.

Era, portanto, uma espécie de máfia contra o Sagrado Coração de Jesus. Ao lado disso, havia uma manobra mais perigosa: o silêncio. Deixou-se de impulsionar essa devoção e de falar a respeito dela em larguíssimos meios. Não se construíram mais igrejas em louvor ao Sagrado Coração de Jesus. O mês de junho, que era instituído para honrá-Lo em quase todas as matrizes, deixou também de ser consagrado a Ele. Fez-se caso omisso disso e começaram a fazer circular outras devoções novas e de um conteúdo teológico suspeito.

A virtude e a devoção apresentadas como uma imagem da morte

Eu assisti, assim, ao ocaso das graças da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, com certas formas dessa devoção que pareciam carentes de vida. De maneira que, no fim, ela era praticada por velhotas em confrarias agonizantes, com fórmulas assim: “Você tem um parente ou um amigo que está com dificuldade? Meta uma estampa do Sagrado Coração de Jesus no bolso dele que tudo se arranjará.” Com base num fato que alguma vez se fez isso com alguém e deu um resultado extraordinário, que conferia com as promessas de Paray-le-Monial.

Reduzir essa devoção a isso? Estão conspurcando! O zelador e a zeladora do Coração de Jesus usavam uma fita vermelha da qual pendia uma espécie de medalhão branco com o Sagrado Coração de Jesus impresso. Em si mesmo muito venerável, mas que estava cercado de conotações que já não eram portadoras das verdadeiras graças.

O indivíduo, então, ia procurar a vida e em vez de buscá-la na devoção ao Sagrado Coração de Jesus, tomava como sendo vida aquilo que era o contrário, pois em torno dessa devoção tudo parecia ser morte. Ora, pela operação normal das coisas isso é morte; logo, a vida é o oposto disso.

A vida era, por exemplo, o Ford Bigode, o Chevrolet, mas também um pêssego da Califórnia, grande, suculento, com uma cor muito bonita. Aquela cor de pêssego me dava a impressão de vida, em contraste com uns pesseguinhos nascidos aqui, não sei em que lugar, sequinhos, mirradinhos, verdinhos e que me pareciam conaturais com minha tradição colonial, não com o ribombo de vida que a coisa norte-americana, hollywoodiana, teria introduzido no mundo.

Nessa perspectiva também era vida o jazz, comparado, por exemplo, a uma música muito bem feita, muito direita: “Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento; os Anjos, todos os Anjos digam para sempre amém…” Mas a questão era como se cantava isso… Depois, as vozes… Tinha sempre uma que era o “Bayard”2 do desafinamento, ou seja, possuía todas as ousadias do desafinamento, era uma espécie de analogado primário nessa matéria.

O pior era o modo mole de cantar: “Os Anjos, todos os Anjos digam a Deus para seemmmmmpre amémmm!” O que dizer de uma coisa dessas?

O mesmo se dava com o tipo humano do rapaz. Para o meu tempo de jovem, tudo quanto se podia querer para um rapaz era que fosse bem apessoado, rico, fino, bonito, bem sucedido; nas brigas dele, todo mundo recuava; nas audácias dele, todo mundo o admirava; no lugar onde estava, tinha um primado natural, ímpio, porco e alegre de sua impureza e blasonava de sua impiedade.

Flávio Lourenço
Longinus crava a lança no costado do Salvador – Galeria Nacional de Úmbria, Itália

O contrário disso era o conceito que faziam a respeito do rapaz piedoso que, juntamente com as velhotas que cantavam “…digam sempre amém” e tudo quanto se referia à piedade, eram a imagem da morte, em oposição a Hollywood. O que era a vida, então? Ora, as velhotas, o rapaz piedoso etc., representavam a virtude. Portanto, não só a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, mas a virtude é igual à morte. E, pelo contrário, o hollywoodianismo é igual à vida. Deste dilema parecia não ter escapatória.

Nessa história da vida e da morte, tenho a impressão de que entrava qualquer coisa de ação diabólica acentuando toda forma de concupiscência e de vontade de viver a vida terrena com descaso da vida eterna. A majestade infinita e tudo quanto falei sobre o Sagrado Coração de Jesus era contrário à forma de fruição de vida hollywoodiana. Como o referente ao Sagrado Coração de Jesus era sobrenatural, desconfio que o resto estava sob ação do demônio.

Flávio Lourenço
São João Eudes – Igreja de São Salvador, Rennes, França

O hollywoodismo foi uma ofensiva na ordem temporal, mas com repercussões espirituais de toda ordem, que acentuou o conceito de que a Igreja Católica constantiniana era morta e despertou a ideia de que a Igreja só poderia viver no progressismo.

O pecado do mundo contemporâneo

Hoje em dia, pode-se dizer que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como tantas outras, estão postas de lado e são tesouros com que ninguém se preocupa. São fontes de graças que a Providência abriu para salvar o mundo e que estão abandonadas, já ressequidas, porque como os homens não vão procurar essas graças, o resultado é que eles também não as recebem.

Essa recusa da devoção ao Coração de Jesus é muito mais culpada do que a do centurião que perfurou com a lança o cadáver de Nosso Senhor morto, atingindo o Coração, símbolo do amor de Deus aos homens, assim transpassado barbaramente, e de onde saíram água e sangue. Conta-se que esse centurião era quase cego e que, quando ele atingiu o Coração, aquela água e aquele sangue que restavam do corpo de Nosso Senhor caíram em parte sobre ele, que ficou curado e, com isto, se converteu.

Pecado análogo foi cometido pelo mundo contemporâneo, recusando e extinguindo a devoção ao Sagrado Coração de Jesus entre os católicos. Contudo, desse crime não saiu nenhuma água e nenhum sangue que lavassem e curassem a cegueira. O mundo está rolando cada vez mais para o abismo.

1) Realizada em 11 de junho de 1899. Um tempo antes, anunciou a consagração através da Encíclica Annum Sacrum, de 25 de maio de 1899.

2) Pierre Terrail LeVieux, senhor de Bayard (*1476 – †1524). Cavaleiro destemido e irrepreensível.

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