domingo, noviembre 24, 2024

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Origem do direito consuetudinário – II

As instituições nascidas organicamente de um circuito de amizades sempre contribuíram possantemente para a coesão, o equilíbrio e o progresso do tecido social.

Um dos grupos sociais decorrentes de uma rede de amizades era a corporação de artífices. Sapateiro, relojoeiro, enfim as diversas profissões de trabalhadores manuais, por desempenharem um mesmo ofício, formavam um grupo de amizades assim e, no dia de festa do Padroeiro ou da fundação daquele grupo, por exemplo, eles compareciam todos juntos na igreja, com o estandarte da corporação, para rezar. Depois as mulheres eram apresentadas umas às outras, ou moravam perto porque o bairro era de artífices, onde todo mundo era amigo.

As corporações e sua influência na sociedade

Esses grupos sociais às vezes formavam sociedades inteiramente definidas, que tinham representação oficial junto ao governo municipal. Na Câmara Municipal, por exemplo, não se elegiam por sufrágio universal os vereadores, mas os chefes das corporações, que eram eleitos pelos próprios trabalhadores, faziam parte da Câmara.

Então, havia na Câmara Municipal as corporações das várias categorias de trabalhadores manuais. E a corporação dos homens que viviam dos assuntos de justiça — juízes, delegados, promotores, escrivães, etc., e advogados — eles formavam uma corporação em geral consagrada a Santo Ivo, patrono dos advogados.

Meu pai sabia uma cançãozinha popular, que os advogados cantavam entre si, e que dizia: Ivus advocatus et non latro, res miranda populo, etc. Ele só se lembrava da primeira estrofe: “Ivo advogado, não porém ladrão, coisa que punha o povo em admiração.” Era um gracejo.

As corporações eram potências, como também, em outro sentido, as famílias eram potências.

Por exemplo, moravam num bairro uma família rica e uma porção de famílias pobres. A família rica era instituto de aposentadoria de pensões dos pobres: tratavam das pessoas enfermas, davam dinheiro, encaminhavam na carreira, etc.; faziam toda uma proteção para as famílias pobres. Nos bairros funcionava uma espécie de família de famílias.

Grupos sociais assim formavam uma rede riquíssima de alto abaixo da sociedade, em que o conceito marxista de luta de classes era quase inconcebível.

Grupos sociais regidos pelo costume

Algumas dessas corporações se dedicavam ao bem comum, espiritual ou temporal. Espiritual muito pitoresco, como as associações que cantavam durante a noite. Iam andando pela cidade e advertindo — na Espanha isso era muito desenvolvido —, em tom moderado, uma coisa cujo sentido era mais ou menos este: “Ó vós que dormis, ou então pecais, ó vós que a morte pode tragar de um momento para outro, ó vós, lembrai, lembrai! Tudo na vida não é só conforto, não é só prazer. Um dia chegará a hora do julgamento.” E aí desfiavam os quatro novíssimos e depois iam para diante.

Não creio que isso hoje tivesse muita popularidade; acho que a polícia exigiria que parassem e voltassem para casa, sob pretexto de serem proibidos ruídos noturnos. Os carros de lixo, todos sabem bem até que ponto fazem barulho à noite; não tem nada. Mas cantar canções espirituais não. Eram pessoas que no dia seguinte iam trabalhar com dificuldade, pois participaram do turno de cantar à noite; e assim quantas almas se teriam salvado?

Podemos imaginar um vigário zeloso, com que empenho trabalharia para que uma organização dessas não morresse na sua paróquia. Naturalmente deixaram morrer tudo, e creio que na própria Espanha não existe mais.

Então, todos esses grupos sociais eram internamente regidos pelo costume, que ia variando com a naturalidade, a organicidade com que os costumes vão se modificando numa família através dos séculos, mas também com a continuidade com que um resíduo de costumes não varia. Conservavam um equilíbrio entre a mutação e a fixidez, que nunca dava a ideia de grupo social asfixiante, de uma coisa que é uma continuidade sem sequência e que perde completamente a sua graça. A partir disto é que se compreende a vida do município, do feudo, de todas as unidades sociais e como eles constituíam, dentro da pátria, minúsculas pátrias verdadeiramente vivas, e cuja coordenação formava a pátria.

O giro pelo país

Em geral, esses grupos sociais — sobretudo os profissionais — tendiam em estabelecer-se no país inteiro, pela união que faziam de uma cidade com outra da região, depois a região dentro do reino em geral.

De maneira que, como eles não tinham tipografia — na Idade Média nem havia tipografia, mas mesmo no Ancien Régime era muito menos desenvolvida do que hoje, por exemplo, a impressão a cores não existia, etc. —, para certos profissionais tomarem um bom conhecimento profissional era preciso que viajassem.

Então, faziam o que se chamava o “giro do país”, pelos principais pontos que interessava mais à profissão serem conhecidos. E partiam grupos de dois, três, cinco, oito, dez da mesma cidade, por exemplo, da mesma corporação, em geral a pé — quando eram trabalhadores manuais e não tinham carro —, muitas vezes com risco porque as estradas, até o começo do Ancien Régime, eram ainda pouco seguras, tinham muitos bandidos, etc. E levavam um bordão que servia para se apoiarem pelo cansaço, mas também para bater na cabeça dos malfeitores que aparecessem.

Às vezes eram meio profissionais e meio peregrinos porque, se havia no trajeto algum grande lugar de peregrinação, eles paravam lá para rezarem, etc. Usavam — por exemplo, no século XV e parte do XVI — chapéus grandes por causa do Sol, mas com uma aba virada para cima quando não incidiam os raios do Sol, na qual havia uma medalha, que era de um Santo em honra do qual iam peregrinar, ou o escudo da corporação.

E em geral eles viajavam cantando, ou conversando, ou rezando, por exemplo, o Rosário. Em cada lugar que chegassem, a corporação correspondente lhes dava comida e estadia, durante o tempo necessário para eles repousarem e continuarem a fazer a viagem. E com isso um profissional não rico poderia fazer o giro do país, e voltar com muitos conhecimentos adquiridos, com alguns processos de fabrico que ele aprendia, modos de trabalhar, etc., e que lhe davam uma outra capacidade profissional, superior à que ele teria se ficasse a vida inteira na sua cidade.

Educação dos pajens

Isso com relação aos operários. E quanto aos nobres, como era?

Com os nobres era assim: quando o menino atingia — variava de acordo com a região — entre dez, onze, até quinze anos, o pai mandava-o servir como pajem em casa de um nobre de categoria mais alta, onde ele aprendia melhores maneiras, mais bom gosto, mais distinção. E tinha relações com outros senhores mais nobres que o pai dele, e que eram amigos do dono daquele castelo em que ele servia; e também com outros jovens, que eram amigos do filho do senhor de categoria mais elevada, e ali estavam para servir: assear o cavalo, ajaezar, limpar as armas — de caça ou de guerra — do dono do castelo. E também levar recados, fazendo mais ou menos um papel de oficial de gabinete, de um diplomatazinho.

Por exemplo, exercia, da parte do senhor dele, a missão de cumprimentar o bispo, porque era o aniversário de sua sagração. O senhor não ia, mas mandava um pajem que soubesse fazer bem o cumprimento, ser amável, etc., o que ficava bem para o senhor. Então este cobrava do pajem, mas depois ia perguntar ao bispo como é que o pajem tinha desempenhado a tarefa. Imediatamente o pajem sabia disso. E o senhor mandava contar para o pai do rapaz como andavam as coisas, ou o próprio pai passava e perguntava: “Como vai meu filho?” E o senhor dizia, porque era meio educador do filho.

Reprodução
Um guerreiro com seus dois pagens – Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, EUA

Mas quando aquele filho voltasse para o castelo menor do pai, ele estava com o espírito muito alargado, com outro horizonte, e íntimo amigo dos filhos daquele senhor superior; de onde um vínculo de dedicação, que é a essência do feudalismo, em virtude desse princípio de que toda relação deve gerar amizade.

Na Espanha, por exemplo, era assim que os antigos reinos que a compunham se concretizavam: de famílias, de grupos, de um reino para outro.

O costume do apanágio e a política dos casamentos

Compreendemos, desse modo, como que tocando com as mãos, o sentido profundo de certas coisas daquele tempo, mas que os historiadores muitas vezes não dão: de grupo para grupo, a consonância e as boas relações, pelas necessidades comuns da vida, geravam amizade.

Em geral, os senhores de uma mesma região tinham interesses comuns, e se encontravam para cultivá-los. Mas havia entre os senhores feudais o costume do apanágio, quer dizer, o filho mais velho era o morgado, que herdava a maior parte da fortuna, e os filhos menores herdavam o suficiente para se jogarem na luta pela vida. Em virtude disso, se desenvolvia uma política de casamentos: duas famílias tinham interesses recíprocos em se unirem; então os pais tratavam dos casamentos dos filhos, que iam se conhecer pouco antes das núpcias. Restos disso duraram até à Revolução Francesa.

O Lenotre1, em Gens de la vieille France, conta esse fato curioso: um rapaz francês — já nos anos da Revolução — entrou no escritório do pai e lhe disse:

— O senhor me permite fazer uma pergunta?

O pai interrompeu o trabalho, ficou preocupado com aquilo e indagou:

— O que é?

— Ouvi dizer, meu pai, que vós estais tratando do meu casamento com Mademoiselle tal.

O pai afirmou:

— Talvez. O que você tem a falar a esse respeito?

— Eu queria dizer uma palavra sobre o meu casamento.

O pai chamava os filhos de Monsieur.

Monsieur, meta-se nos seus negócios, não nos meus.

E o rapaz foi embora.

Daí vem o provérbio francês: “O tonto casa com a mulher de quem gosta, e o homem criterioso gosta da mulher com quem casa.”

Reprodução
Filipe, o Belo e Joana, a Louca – Real Museu de Belas Artes, Bruxelas, Bélgica

Quer dizer, o romantismo do século XIX transtornou completamente isso, e deu no que sabemos. Mas era o modo de eles entenderem as coisas.

”Tu, Áustria feliz, casa-te!”

Por exemplo, região com região. O casamento entre os filhos dos altos senhores feudais das várias regiões, as relações pessoais entre eles acarretavam, por solidariedade, os relacionamentos de toda a província, de todo o feudo grande.

O famoso casamento de Luís XII, Rei da França, com Ana de Bretanha — Duquesa da Bretanha, que tinha sido noiva do filho do Imperador do Sacro Império, mas depois houve brigas, etc., e romperam — foi considerado o matrimônio da Bretanha com a França. E realmente ela ficou Rainha da França, e — como no caso da Rainha Elizabeth — ela tinha o morgadio e levou, como Rainha da França, a coroa ducal de Bretanha consigo. O filho dela foi Rei da França e Duque da Bretanha ao mesmo tempo, e a Bretanha se incorporou à França com a condição de conservar sua língua, suas leis e seus costumes antigos; o que se observou até a Revolução Francesa.

É a mesma espiral que chega até a culminância. Então, compreende-se o dito austríaco. A família dos Habsburgos foi sempre muito prolífica, com muitos filhos, donde muitos príncipes e princesas, e eles casavam como quem coloca peças de xadrez no tabuleiro; e se expandiram a ponto de serem quase donos de toda a Europa. Então há um dito, expresso em latim: Bella gerant alii, tu felix Austria nube — Os outros façam guerra à vontade, tu, Áustria feliz, casa-te.

A pessoa isolada de nossos dias

Depois da Idade Média começaram a se estabelecer os nacionalismos e as rivalidades entre as nações; aí a coisa mudou. Mas São Luís ainda fez algo que causou pasmo: a Inglaterra tinha feudos em território francês e, por diversas circunstâncias, um desses feudos caiu nas mãos de São Luís, não por guerra, mas por herança. E ele deu esse feudo a outra grande família, e os vários políticos disseram:

— Mas que loucura! A intenção do rei é de acabar com os grandes feudos, para ele sozinho dominar, não ter gente forte abaixo de si.

São Luís afirmou:

— Não, eu quero fazer um tratado com esse meu primo, e ser um modelo do senhor, do grande suserano para ele, e meu primo o modelo do perfeito vassalo.

— Isso vai dar em guerra.

— Faça o que eu estou mandando.

Fizeram, e foi o único lugar da França onde, durante cem anos, não houve guerra entre o senhor feudal e o rei.

Um caso interessante, já nos tempos modernos, relacionado com a História da Espanha, é o casamento de Filipe I, o Belo, com Joana I, a Louca, filha de Fernando e Isabel. Havia todas as possibilidades de o trono espanhol cair nas mãos da Casa d’Áustria, e então a Áustria querendo oprimir a Espanha.

Sabemos que os espanhóis não raciocinavam nesses termos, pois os príncipes da Casa d’Áustria foram bons e dedicados. Li as memórias do Metternich2, que se refere às mensagens de convite para a Casa d’Áustria voltar a reinar na Espanha, ainda no século XIX. Eram as fidelidades. Tudo isso é a duração da amizade, são reflexos dela.

Aí está a origem do direito consuetudinário. Os costumes, regulando toda a vida assim, geram as leis costumeiras.

A civilização em que vivemos é a civilização do egoísmo, em que tudo é calculado na inteira absorção de todos os recursos de cada um, para satisfação de todas as apetências individuais. Isso forma o homem isolado, que luta extenuado por sua existência, incompreendido, ainda quando tenha alcançado grandes sucessos.

(Extraído de conferência de 3/9/1991)

1) G. Lenotre, pseudônimo de Louis Léon Théodore Gosselin (*1855 – ­†1935). Historiador e escritor dramático francês.

2) Klemens Wenzel Lothar Nepomuk von Metternich, Príncipe de Metternich-Winneburg-Beilstein, (*1773 – †1859). Diplomata e estadista do Império Austríaco.

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