Diante do culto ao “antissacral” prestado pela modernidade, Dr. Plinio explicita o caráter central da luta pela sacralidade para a glória de Deus e sustentação da Fé na humanidade.
A História do Ocidente me parecia dividida em duas partes: uma época em que os homens aceitavam a sacralidade, e outra em que não a aceitavam.
Conceito de avião na mentalidade dos anos 20
Meu entusiasmo pelo Ancien Régime1 vinha pela participação do espírito sacral da Idade Média, e da oposição à inteira recusa da sacralidade, existente na sociedade pós-Primeira Guerra Mundial. Nesse ponto me parecia que a Primeira Guerra tinha deixado os restos de sacralidade que havia no mundo, em estado pós-agônico. Só faltava morrer. Não tinha mais nada.
E notava muito nos adoradores da modernidade uma espécie de satânica alegria em ver a sacralidade desaparecer. Por exemplo, como o barulho do avião era visto nos anos 20? Como uma coisa feia, não tem dúvida; não é um minueto, o qual é bonito. Mas diziam: “Preste atenção: é o barulho do futuro! É poderoso, é forte, faz acontecer coisas palpáveis, tangíveis, materiais. Vai me transportar rapidamente para outro lugar.”
Independente da comodidade, o avião parecia a eles como um transporte ontologicamente denso, porque transportava em pouco tempo, e com uma rapidez de impulso extraordinária, um homem de um lugar para outro.
O cavalo que vai trotando, a carruagem dourada dentro da qual está sentada a marquesa comendo pão de minuto, falando, rezando com um devocionário na mão, são ações metafisicamente ralas, em comparação com essa ação ontologicamente forte, que é deslocar-se com o impulso de um avião.
Então, o ruído do avião tinha todo o valor do supersônico, do superestrondoso, de uma coisa metafisicamente supervalorizada, de uma carga superior ao homem. E o homem se sentia dignificado em que seu gênio tivesse desatado essas forças da natureza, que eram tão mais densas e mais potentes do que ele. Formiga encantada de ter acordado a águia e de se fazer transportar no meio das plumas da cabeça da ave. Esse era o modo dos meus contemporâneos dos anos 20 conceberem o avião.
Viagem de automóvel, de São Paulo para Santos
O automóvel era, com menor densidade, o que era o avião. Por exemplo, descer de automóvel a serra para Santos, mais rapidamente do que se fazia de trem, era considerada uma ação varonil, densa, com os riscos inerentes a fazer o percurso depressa, de tomar aquela ventania, porque os automóveis não eram fechados naquele tempo.
Esses automóveis eram chamados “torpedo”. Aliás, um automóvel “torpedo” é um veículo comparado a uma bomba, que vai com a velocidade do torpedo de encontro a curvas perigosas na serra.
Viajava-se cedinho. Punham-se luvas de couro, alguns usavam uma espécie de casquete de couro também e, às vezes, ainda sopravam sobre as luvas e esfregavam as mãos, como quem estivesse enfrentando algo de muito arriscado, dando assim certa importância e grandeza ao acontecimento.
Não se conversava com o chauffeur, porque ele estava inteiramente absorto, e olharia para quem se dirigisse a ele com a cara de uma “sacralidade mecânica” insultada.
Eu me portava de modo contrário a isso tudo. Ia o tempo inteiro mandando parar o automóvel porque estava enjoado, dormia nos pedaços mais empolgantes da estrada ou então puxava prosa sobre outros assuntos. Enfim, fazia todas as “blasfêmias” possíveis, sem a menor intenção, mas porque a minha natureza inteira extravasava para fora do automóvel. Eu não cabia naquele veículo, sentia-me preso naquilo. Enquanto eles tinham a sensação de estarem num andor, eu me sentia num cárcere dentro daquela lata de ferro.
Como era a chegada a Santos?
Naquele tempo, o hotel onde costumavam se hospedar as melhores famílias chamava-se Parque Balneário. Quem chegasse a Santos não poderia fazer o erro de lavar o automóvel para aparecer com ele limpinho. Tinha de deixá-lo com os sinais da “batalha”: com lama, um pedacinho de folha preso num para-lama, porque raspou numa árvore… E o automóvel entrava fazendo grande ruído, dava uma volta em torno do jardim e parava diante de um terraço cheio de moças, rapazes e senhoras, bebericando alguma coisa à espera do almoço.
Quando entrava aquele automóvel, todas as conversas cessavam para ver quem tinha chegado, e contemplar os “heróis” que vinham nimbados pela mitologia da mecânica.
Eles desciam se empertigando, e eu como quem saía da cama, não me incomodando com nada daquilo. Até bocejava ao descer. Era olhado com severidade, mas respondia a essa severidade como quem não percebia, com uma indolência displicente, arrogante.
Olhavam-me como quem dissesse: “Você puxou o nariz do ídolo?!”
Ao que eu como que respondia, bocejando: “Ídolo?! Qual? Aquele lá? Hã… hã…”
Era uma santa sabotagem àquilo que eu via se erguer como uma espécie de “sacralidade mecânica”, dinâmica, à cata do ouro, ao lado do fandango da impureza. E percebia que isso fazia um todo só.
Batalha do sacral contra o não sacral
À noite — era literalmente assim —, terminado o jantar, todo mundo ia para esses mesmos terraços e ficava conversando. A certa hora os rapazes saíam em grupos de dois, três, cinco, sem dizer para as moças aonde iam. E elas, por coincidência, nunca perguntavam. Eles tomavam o automóvel e saíam discretamente com ares maliciosos. Todos entendiam para onde eles se dirigiam.
Eu percebia que esses estados de espírito eram acoplados: de manhã, adorar o automóvel, e, de noite, enchafurdar-se na perdição. Eram coisas conexas que constituíam um só estado de espírito antissacral por excelência. Porque a “sacralidade mecânica” era adorar o não sacral. Tudo isso formava uma frente única, satânica, o contrário da sacralidade que vivia dentro de minha alma.
Ao observar essas correlações e notar que espécie de mundo vinha nascendo, minhas barreiras interiores iam crescendo.
Naquele tempo, as moças e os rapazes estavam juntos na hora do convívio social, mas fora dessa hora formavam grupos à parte. E, no grupo dos rapazes, estávamos um primo meu e eu. Chegava a hora da fuga, todos partiam de automóvel, mas meu primo e eu saíamos a pé para outra direção, o que equivalia a dizer: “Nós não vamos para lá!” Eu percebia a sacralidade existente nesse gesto, em realizar o oposto do que eles faziam.
Aos domingos, íamos à Missa numa igreja do Embaré, situada ali perto. Eu rezava, rezava… Não levava a coisa a ponto de rezar o Rosário nem de abrir livro de Missa, mas eu rezava mesmo; ajoelhado, seguia a Missa. Eles percebiam que eu estava rezando.
Nessa época os homens ficavam atrás, de pé; e quando o fundo da igreja estava muito cheio, ocupavam também os lados, mas não se ajoelhavam. Um ou outro se ajoelhava; só o fazia porque estava tão garantido de ter sacrificado aos ídolos, que podia fazê-lo sem que os outros tomassem a sério. E o ajoelhar era tirar um lenço — se o dinheiro dava para isso, tinha que ser lenço de seda — e com todo o cuidado colocá-lo no chão, para se ajoelhar em cima do lenço, a fim de não manchar a calça; porque o vinco e a limpeza desta eram de uma importância fenomenal. Era a única ação da Missa a que eles davam importância: a hora de proteger os joelhos contra a sujeira do chão.
Isso me fazia compreender que a vida terrena, temporal, está para essa batalha do sacral contra o não sacral, como a bainha de uma espada está para a espada.
O jovem Plinio sonhava com a sacralidade cavalheiresca
Todo o resto não passava de aparências; a realidade daquilo era uma tradição de sacralidade em estado pós-agônico, e que eles todos conspiravam para enxotá-la passo a passo, de maneira a não se arrepiarem. E iam enxotando-a por várias vias: a adoração do ouro, das grandes velocidades e das ações ilusoriamente “heroicas”, o enchafurdamento no lodo da impureza, a vulgarização das maneiras, o culto do riso. A todo momento uma beleza caía, um bom costume se dissolvia, uma verdade era negada.
Outra coisa ainda era o culto da saúde. Quem tivesse alguma mazela que contestasse o ídolo da saúde deveria vencê-la, ocultando. Se fosse ao médico, também precisaria ocultar, porque isso tudo tirava a intensidade da vida. Dizer-se enfermo e deitar-se na cama era agravar a doença. Se estivesse doente, entrasse num avião e voasse, e o avião curaria a enfermidade…
A pessoa tinha que ser ultrassaudável, era feio ser doente.
Isso tudo formava um conjunto, dentro do qual eu até corria certo risco de representar o papel do “patinho feio”. Porque o “patinho feio” era feito para, à maneira de retrógrado, ser monarquista, por acanhamento de espírito; ser católico, por medo de tomar o automóvel para ir a Santos, etc.
E isso eu não queria! Porque se eu fosse “patinho feio”, seria a caricatura da sacralidade cavalheiresca com a qual eu sonhava! E a minha polêmica estaria voltada contra si mesma.
Naturalmente, o descobrimento mais tarde de certas coisas da Idade Média, a diferenciação entre a Idade Média e o Ancien Régime, a subestima proporcional do Ancien Régime e a estima da Idade Média, etc., deram-me gradualmente com o tempo outro embasamento.
Depois, com a encíclica de Leão XIII, Parvenu à la XXV ème. Année — que não trata das Revoluções propriamente, mas refere-se à passagem do protestantismo para o deísmo, e do deísmo para o ateísmo —, por analogia, tirei a teoria sobre as três Revoluções, e constituindo inteiramente o pensamento que Nossa Senhora destinava a ser o nosso, e que está condensado em meu livro Revolução e Contra-Revolução.
É pecado ser indiferente à questão da sacralidade
É preciso notar que, por trás de tudo quanto acabo de dizer, entravam dois pontos capitais.
Primeiro ponto: a batalha pela sacralização da ordem temporal é a medula da vida terrena. O cerne desta existência não é o gozo, mas sim perceber essa luta e tomar parte nela.
Segundo ponto: não é possível ter um pensamento e um espírito sacral, no que diz respeito às coisas da Religião, e ao mesmo tempo ter um convívio com a vida temporal, onde fôssemos encharcados da antissacralidade.
O homem que não soubesse fazer — pelo menos de modo implícito — ao avião, ou à viagem de automóvel, a crítica que eu fazia, se embebia dessas coisas, por mais que ele fosse um grande teólogo, um grande moralista, um grande liturgista, ou até um místico. Este pecaria contra a Mística e perderia seu espírito, na medida em que ele simplesmente se postasse indiferente em relação a essas coisas.
Portanto, a defesa da sacralidade da ordem temporal, além de ser uma defesa da glória de Deus nessa ordem, é condição de sobrevivência da Fé na maior parte dos homens.
Sacralidade e culto a Nossa Senhora
Por exemplo, deve-se lutar numa Congregação Mariana pela propagação da devoção a Nossa Senhora. Mas, cuidado! Essa luta precisa ser feita com toda a sacralidade que São Luís Grignion de Montfort ensina. Algumas formas de espalhar a devoção a Nossa Senhora não têm essa sacralidade ou possuem pouco. É preciso tê-la intensamente.
Lendo São Luís Grignion, compreendi toda a elevação da sacralidade no culto a Nossa Senhora. Essa compreensão estava em gérmen na minha alma, e não havia nada em mim que negasse isso. Mas entender o que era Nossa Senhora — Mons in vertice montium2 —, e como Deus está infinitamente acima d’Ela, isso tudo, do ponto de vista da sacralidade, fez-me um bem enorme!
Eu sabia, por exemplo, que Nossa Senhora era virgem antes, durante e depois do parto, e me regalava de saber. Mas qualquer coisa de etéreo, de sacral na pureza d’Ela se tornou para mim muito mais claro, lendo o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion.
Também fiquei compreendendo que, no reinado de Maria, todo esse mundo de sacralidade seria muito mais reluzente de aspectos na ordem espiritual, antes de tudo, mas também na ordem temporal; e aspectos místicos fariam do Reino de Maria um paraíso em relação ao que foi a Idade Média. Não se tratava, portanto, de nenhum modo, de voltar à Idade Média, mas de ir a alguma coisa que estava para a Idade Média como o cedro do Líbano em relação à ervinha.
O Reino de Maria, sem ser nem um pouco um reino milenarista, ou um paraíso recuperado com Jesus Cristo Nosso Senhor vivendo aqui conosco, se me afigurava, entretanto, uma época de sacralidade, de glória e de elevação inaudita.
Nasceu assim, em mim, o hábito de rezar cotidianamente pedindo a graça de levar a minha devoção a Maria Santíssima até o píncaro dos píncaros, mas trazendo consigo, como corolário, entre outras coisas, essa sacralidade de espírito e esse conhecimento das possibilidades da sacralidade e do sobrenatural em tudo, que será próprio do Reino de Maria.
A sacralidade pede para estar em tudo. Desconfio que se fizéssemos um estudo comparativo entre o que tenho dito sobre a sacralidade e a sabedoria, veríamos que a sacralidade é uma fina ponta da sabedoria, com mística. Porque, ou se sente a sacralidade, ou se for um mero esforço da razão, ela não está presente.
Então, tudo quanto se diz de Nossa Senhora, Sede da Sabedoria, deve entender-se como tendo intensamente o dom da sacralidade.
Seria preciso compreender que o melhor sentido da expressão “a Sabedoria está presente em tudo” é a sacralidade presente em tudo.
A transcendência de Deus
A sacralidade vista como a apresentei é um efeito. Sendo um efeito, ela denuncia a existência de uma Causa. Mas nessa relação de causa e efeito há uma peculiaridade: que, pelo menos na nossa via, para conhecermos bem a Causa, temos que contemplar longamente o efeito e nos saturarmos dele.
E aí se compreende — mas de uma dessas compreensões que resultam de uma experiência mística, que depois se aprimora no estudo — o que é propriamente o sobrenatural, e se entende propriamente quem é Deus. Mais especialmente, compreende-se o que quer dizer a transcendência de Deus.
Se se analisar o que eu disse a respeito do papel de Nosso Senhor Jesus Cristo, nota-se que Ele é a fonte da qual emana tudo isso. Mas afirmar que Ele é a fonte significa, desde logo, dizer uma coisa muito correta, mas metafórica e pobre em relação à realidade que está por trás disso. De fato, quando digo isso d’Ele e percebo que isso emana d’Ele, não é apenas porque Ele tem isso, mas Ele é isso. É uma coisa diferente.
De um Santo eu posso achar que ele é bom; eu digo: “Ele é santo.” De Nosso Senhor Jesus Cristo eu afirmo que Ele é Santo, mas com uma nota muito mais profunda do que quando eu chamo um homem de santo. Porque Ele é. Toda a santidade nasce d’Ele como de sua fonte, de sua causa, no ser d’Ele; Ele é a santidade. Nisso está a transcendência d’Ele. Entre Ele e todos os Santos existe, em última análise, uma emanação ou uma dimanação de algo existente n’Ele e que os outros só têm enquanto dado por Ele. E o que Ele tem não foi dado por ninguém, porque está na natureza d’Ele.
Sempre que se tem essa experiência mística da bondade, ou da justiça, dessa harmonia maravilhosa de justiça e bondade que há n’Ele, tem-se uma experiência dessas virtudes e perfeições, mas em estado transcendente, de um Ser que é, enquanto nós apenas participamos. E daí vem um sentimento de veneração, que se mistura muito legitimamente com a admiração daquilo em que Ele é análogo a nós, enquanto Homem.
Mas, de fato, há em tudo quanto é experiência mística um contato com aquilo de semelhante a nós, vivendo em Deus de modo transcendente, porque Deus é aquilo. E é isto que enche o homem de regalo, e faz do Batismo um começo da vida divina.
(Extraído de conferência de 14/4/1989)
1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
2) Do latim: Monte no cume dos montes (Is 2, 2).