Catedral de Santiago de Compostela, Espanha

Partindo de pressupostos fornecidos pela Doutrina Católica, Dr. Plinio levanta hipóteses que esclarecem e aprofundam a teoria da sustentação dos seres, servindo-se para isso de exemplos acessíveis como a constituição de uma fruta, a dança e uma peça de teatro.

Gustavo Kralj
Deus Pai – Igreja dos Dominicanos, Cracóvia, Polônia

Para tratarmos a respeito da teoria relativa à sustentação dos seres, sirvamo-nos inicialmente de uma imagem acessível a todos: uma fruta, com seu caroço — cerne ou núcleo — e sua polpa.

Três apetências do ser contingente

Há quem considere, de bom grado, que o cerne exerça uma ação sobre a polpa, mas são mais raros os que admitem a ação inversa — o que é mais importante para o nosso estudo —, ou seja, através da polpa, a qual não constitui somente um obstáculo, mas conduto, o núcleo exerça certa influência sobre outro núcleo. Uma espécie de “telegrafia” ontológica.

Então, segundo a hipótese que estou elaborando, haveria uma possibilidade de duas ações: uma mais delicada, mais sutil, de cerne a cerne, passando por diversos fenômenos aos quais a polpa é estranha; e outra ação de cerne a polpa e de polpa a cerne.

Essa ação de núcleo a núcleo se baseia no seguinte ponto: em virtude do princípio omne ens appetit suum esse1, todo ser contingente tem uma apetência de ser sustentado, na medida em que é menor sua densidade de ser e, portanto, maior sua contingência. Por outro lado, na medida em que seja maior a densidade de ser, ele tem uma apetência de se afirmar.

A essa dualidade de apetências do indivíduo diante do mundo externo corresponde uma terceira, que é a tendência a sustentar os seres semelhantes.

O ”dedo de Deus”

Contudo, nada disso seria possível sem a participação do que metaforicamente poderíamos chamar de “dedo de Deus”.

Afirma a Doutrina Católica que Deus sustenta na existência todos os seres. E se fôssemos analisar a fundo as meras propriedades de cada ser, chegaríamos à conclusão de que ele não se sustentaria por si.

Assim, a ideia de que, por exemplo, esta esfera de quartzo que tenho na mão se mantém em função das propriedades da matéria que a compõe, é uma ilusão, porque este ser entregue a si mesmo desapareceria. Portanto, a impressão que os sentidos e a Física nos dão de que isto se sustenta por si mesmo é ilusória.

Na realidade, há uma sustentação de Deus neste quartzo cor-de-rosa que, se fôssemos capazes de estudá-lo até o fim, evidentemente não veríamos Deus sustentando-o — seria ridículo pensar isso —, mas perceberíamos que entra uma força que é a sustentação divina.

Portanto, essa sustentação não se dá apenas pela atuação de outros elementos sobre esta matéria, mas por uma ação direta e única de Deus sobre o quartzo para que ele continue a existir.

Tenho a impressão de que essa ação divina é direta e corresponde ao que há de mais profundo no ser. Depois, vem uma ação de núcleo a núcleo, e a manutenção através da polpa.

Esta seria a teoria geral a respeito da sustentação que, volto a dizer, não envolveria a ideia de que se veja o “dedo de Deus”, como se Ele tivesse um dedo de carne que pudesse ser radiografado. Não é isso! É uma noção muito mais elevada e especial.

Deus é o motor primeiro

Arquivo Revista

A corrida das ciências naturais para alcançarem o seu próprio termo final chegaria a um ponto onde se percebesse a insuficiência de todas, nada mais. A partir desse momento — hic taceat omnis lingua2 —, saberíamos que Deus está presente.

Isso nos daria uma espécie de arquitetura do mundo das ciências naturais vistas de cima, e renderia a Deus uma glória extraordinária.

Um estudo de ciências naturais bem feito revelaria que todos os seres são incapazes, por si sós, de uma ação que os sustente mutuamente.

Quando se trata dos seres inanimados, por exemplo, costuma-se ressaltar sua incapacidade de se moverem espontaneamente. Mas fica insinuado tacitamente que na interação desses seres Deus não tem nada que ver.

Por exemplo, um ímã que atrai uma limalha de ferro. Esta ação do ímã é considerada como inteiramente independente de Deus.

Eu concedo de bom grado que o poder de imantação possa ser decorrente de uma particular disposição de moléculas. Entretanto, sustento que essa disposição molecular não é o único elemento que fez mover aquilo, mas que, de um modo geral, a atração da matéria pela matéria tem Deus como motor primeiro.

Assim orientados os estudos, encontraríamos Deus na ponta das avenidas de todas as ciências.

Suponho que, na pluralidade enorme de ações que a Divina Providência desenvolve por causas segundas, Ela Se reserve algumas intervenções diretas. Não tanto no caso concreto do ímã com a limalha de ferro, mas talvez na atração dos astros entre si, em certo momento, intervenha uma ação direta de Deus.

Não é necessária uma ação especial do Criador cada vez que o ferro vai atrair a limalha; pensar isso seria infantil. Mas Deus, por uma ação habitual d’Ele sobre a natureza do ferro, dá-lhe uma propriedade tal, por onde, agrupadas as moléculas de certo modo, elas atraem. É uma faculdade de mover, comunicada no ato criador. Deus não precisa intervir, portanto, em cada atração, pois já comunicou esta capacidade ao operar a Criação. Mas, como Ele sustenta aquele ser, mantém esta propriedade também.

Física e Metafísica

Voltemos a considerar a necessidade da mútua sustentação entre os seres criados.

Deus tem o poder de criar, mas, como afirma São Tomás de Aquino3, era necessário que Ele criasse seres plurais, pois uma única criatura, por mais perfeita que fosse, não seria suficiente para representar a perfeição e a bondade divinas.

Essa pluralidade de seres tem como corolário que um ser criado necessita ser sustentado por outro; pois, se para que Deus seja devidamente conhecido não basta um único ser criado, por análoga razão não basta a ação direta de Deus para a sustentação das criaturas. O próprio instinto de sociabilidade nos homens se explica assim.

Essas considerações dão fundamento à ideia de que existe uma ação de cerne a cerne, de caráter metafísico, “paradivina”, que deixa seus rastros na ordem natural.

Uma pessoa que tivesse aparelhos de análise superpotentes notaria algo dessa ação. Não veria diretamente o “dedo de Deus”, mas perceberia alguma coisa que ela intuiria estar acima do que os sentidos podem captar.

Então, a Física perfeita chegaria ao teto de si mesma e diria: “Daqui por diante é Metafísica.”

A Física que nega a Metafísica é uma Física de vistas curtas. Seria mais ou menos como um homem que diz ver muito bem uma determinada sala, mas a vista dele não alcança o teto.

Conjuntos que formam coleções

Outro aspecto importante da questão, e que me agrada muito considerar, é o fato de o universo ser constituído de conjuntos que formam, por assim dizer, coleções das quais cada elemento é necessário.

Tudo isso é muito bonito, sobretudo quando não é a mera anedota engraçada da abelha mexendo com a tromba do elefante, mas se percebe por detrás uma lei metafísica entre pequenos e grandes.

Andreas Praefcke (CC 3.0)

Mattes (CC 3.0)
Ao lado, “Comedie française” Paris, França. Abaixo, “Concerto de gala em Veneza” – Antiga Pinacoteca, Munique, Alemanha

Quando a coleção é completa, estabelece-se alguma coisa que é mais do que a soma dos indivíduos. À maneira de uma dança lúdica e pura, aquela coleção realiza um movimento que liberta de dentro dela uma série de outras potencialidades. Há uma interação mútua perfeita, muito bela e nobre entre os membros do conjunto.

Esse movimento estava potencialmente posto por Deus, dormente em cada ser. A partir do momento em que ficaram juntos, passou a haver uma espécie de circulação de harmonia, determinada pela soma das causas segundas que se encontraram. Não obstante, houve uma causa primeira que deu às segundas a possibilidade e a necessidade de serem assim.

Isso nos permite entrever uma harmonia do universo sossegada, nobre e bela, na qual cada elemento tem seu papel.

Imaginem, por exemplo, uma peça de teatro representada por grandes atores, a qual, entretanto, não pode desenrolar-se sem haver um menino que faça o papel de office boy, entre e entregue uma carta. Se esse menino chega atrasado para a peça de teatro, tudo fica parado. Quando entra o menino, tudo começa a se mover.

É a imensa colaboração das coisas pequenas. Aliás, a defesa do ente pequeno diante da ameaça de ser esmagado pelos grandes está nisto: desfalcar as coleções que não existiriam sem ele.

Pode acontecer que o pequeno agrida o grande. Então é o micróbio, o pernilongo, a abelha na tromba do elefante.

Entretanto, tudo isso é muito bonito, sobretudo quando não é a mera anedota engraçada da abelha mexendo com a tromba do elefante, mas se percebe por detrás uma lei metafísica entre pequenos e grandes, formando o espírito metafísico, que é o espírito do Reino de Maria.

(Extraído de conferência de 8/6/1984)

1) Do latim: todo ente ama seu próprio ser. Formulação resumida do princípio contido na asserção tomista: Omne enim quod est, inquantum est ens, necesse est esse bonum; esse namque suum unumquodque amat et conservari appetit. (O que é, enquanto ente, tem necessariamente o ser bom, pois cada coisa ama o seu ser e deseja conservá-lo.) SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, c. 41, n. 5.

2) Do latim: Aqui toda língua se cale.

3) Cf. Suma Teológica, II – q. 47, a. 1.

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