Fazendo novas explicitações a respeito dos aspectos naturais e sobrenaturais dos grupos humanos, Dr. Plinio levanta importantes questões que orientam o estudo da sociedade orgânica.
Se numa sociedade humana as almas corresponderem realmente à graça e a forte maioria viver em estado de graça, no terreno espiritual elas serão levadas pelo impulso rumo ao sublime; em cada sociedade orgânica a virtude, que é instilada nas almas pela graça, cria uma movimentação peculiar que é o desígnio da graça.
Intervenção da graça sobre circunstâncias naturais
Entretanto, esse desígnio toma em consideração os fatores naturais. Assim, a sociedade orgânica resulta da intervenção da graça sobre circunstâncias naturais, como uma música executada em um piano é consequência do toque dos dedos sobre o teclado. O dedo é a psicologia do espírito da região, da raça ali existente; o teclado é o quadro geográfico com as circunstâncias a ele inerentes. Com esses elementos a graça executa a sua “partitura”, que sempre varia. Não há um ponto predeterminado como sendo o principal para todas as sociedades, mas é um ponto que a graça, vista em função de determinada circunstância, toca.
Fico na dúvida — e de momento não tenho elementos para responder — se para fazer um tratado sobre a sociedade orgânica seria preciso que tivéssemos o elenco de todas essas circunstâncias. Isso parece quase impossível. Haveria algum tratado de Psicologia ou de vida espiritual que apresentasse todos os movimentos possíveis da natureza humana, considerados em abstrato, para que, a partir disso, se pudesse fazer um elenco?
Talvez uma pesquisa pudesse fornecer isso, mas não disponho de tempo para fazê-la. Fica, contudo, levantado o problema, e podemos nos perguntar se haveria um princípio, um ponto monárquico em função do qual se organiza uma sociedade.
A ideia de coleção e a capacidade de refletir as perfeições divinas
É certo que cada sociedade, como cada pessoa, é feita para ser um reflexo do Criador e que, portanto, constituindo as várias sociedades que existem, existiram e existirão, Deus faz uma coleção de sociedades, as quais, vistas no dia do Juízo Final, enquanto sociedades, refletirão um aspecto global d’Ele. Parece-me uma coisa certa.
Isso que se dá com grupos humanos — povos, tribos, famílias — acontece também com outras criaturas. Por exemplo, tenho a impressão de que nos reinos animal, vegetal e mineral Deus fez coleções assim. E que depois do dia do Juízo, quando nos for dado conhecer bem toda a natureza, teremos um conhecimento, por exemplo, de todos os colibris que houve, há e haverá, em seu conjunto, de maneira que compreendamos como a coleção de colibris criados deu glória a Ele.
Essa ideia, eu não garanto que seja certa, mas pelo menos me agrada muito. Então, também apraz muito a ideia de uma coleção de homens feita desde Adão até os que viverão no fim do mundo, e que forma uma coleção como seria uma de pérolas ou de brilhantes. Então, chegamos mais uma vez ao infinito, porque há tantas coleções que, por sua vez, nos conduzem à noção de uma coleção de coleções, que nos perdemos diante da infinitude de Deus.
Essa ideia de coleção é um dado que devemos introduzir nessa temática da sociedade orgânica.
Hegemonia de espírito
Agora, voltando ao tema do regionalismo1, notamos que ele se diferencia das sociedades amorfas. A massa, por exemplo, em contraposição ao povo, é uma sociedade amorfa.
A região constitui-se de partes com seu morfismo próprio, dentro de um todo que, com isso, adquire ele mesmo um morfismo peculiar.
Ora, este morfismo tende a se irradiar. Essa irradiação universal é ou não legítima?
Por exemplo, a irradiação que a Espanha teve no século XVI não é o oposto do regionalismo? Uma irradiação não é um fenômeno de colonialismo cultural? Até que ponto é legítimo uma região, um país ou uma cultura procurar extravasar além de seus limites?
Em outros termos: pode-se conceber uma região que tenha o desejo de que a sua língua e os seus costumes regionais conquistem, pelo próprio esplendor, o restante do país? Será que, por seu prestígio cultural e sua irradiação, um país tem o direito de exercer uma hegemonia de espírito sobre todo o mundo, como a França, por exemplo?
Por vezes, o imperialismo cultural pode ser muito mais inebriante do que o imperialismo militar, econômico ou outro qualquer.
Um exemplo: a língua grega e a latina
Tomemos como exemplo a Grécia e Roma. Atenas, Esparta, cujos nomes assumem uma sonoridade fabulosa para certos espíritos, eram cidades secundárias do Império Romano, ao mesmo tempo em que a Grécia era colônia de Roma. Ora, foi-se tornando hábito de toda pessoa fina falar grego.
Pela exalação, à maneira da que poderia ter uma flor esmagada por uma pata de elefante e que, colada no chão, deitasse seus melhores perfumes, a Grécia moribunda encheu com seus aromas o Império Romano.
A meu ver, essa irradiação é legítima sempre que não viesse matar a outra cultura.
Se os gregos quisessem a morte da língua latina para que o grego prevalecesse, seria uma coisa errada. Mas que eles gostassem que o grego prevalecesse sobre o latim era algo acertado. Porque o grego tem uma superioridade sobre o latim, reconhecida hoje pelos linguistas.
Para utilizar-me de uma metáfora que me ajude a dizer, de um modo rápido e simples, o que levaria muito tempo para explicar: toda ave superior tem o direito de abrir suas asas por cima dos pássaros que voam num nível abaixo.
Portanto, essa espécie de preeminência alada que faz com que, por exemplo, algumas folhas da palmeira estejam acima das outras porque nasceram mais altas no tronco, isto é o natural.
Existe um direito da cultura superior à expansão alada, e uma obrigação para a cultura que se deixou pôr à sombra da outra, de aceitar e de se colocar em todas as posições necessárias. O que é explicável pelo desejo de que tudo quanto é mais belo sobressaia para a maior glória de Deus. Contudo, sem querer liquidar ou eliminar uma coisa que é menos bela, mas tem sua razão de ser à luz do dia.
Certas realidades de ordem natural não se realizam sem o concurso da graça
Isso supõe uma forma de humildade, que é a humildade dos intermediários. Não é a humildade do pequeno que diz: “Eu sou o último dos homens…” Nem é a do grande que afirma: “Bem, eu diante de Deus não sou nada.” Mas a humildade intermediária, que, com tranquilidade — não com resignação, mas sim com bem-estar sadio —, diz o seguinte: “Eu toco com a ponta dos dedos em tal outra parte do firmamento, de maneira que sou o elo de uma corrente. Por mim passa a ordem do universo.”
Isso só se alcança com o auxílio da graça, porque do contrário entram os patriotismos mal concebidos, misérias de todo tamanho! Há certas coisas que são verdades de ordem natural, até científica, mas que não se realizam sem o concurso da graça. Mais ainda, pesa tanto a natureza sem a graça, que o homem não guarda essa verdade durante muito tempo e acaba negando-a.
Uma verdade que eu quis realçar no livro “A chave de prata”2 é exatamente esta: a ordem temporal, embora seja intrinsecamente natural, não se realiza sem o auxílio da graça.
Relacionada com esta, encontra-se outra verdade: as nações e, portanto, as sociedades cometem pecados distintos dos pecados individuais, e têm que pagar nesta Terra os pecados que praticaram, porque as nações não vão para o Céu nem para o Inferno. Os homens, como receberão um prêmio ou um castigo eterno, podem não auferir a justiça de Deus nesta vida, mas as nações recebem a justiça divina nesta Terra.
A partir disso, poder-se-ia fazer aprofundamentos e aplicações à sociedade temporal da doutrina sobre a Comunhão dos Santos, porque esta comunhão é, ela mesma, uma sociedade.
Se houvesse numa faculdade contemporânea professores capazes de desenvolver esse tema em matérias diversas, para um público de alunos entre os quais houvesse desde católicos praticantes até ateus, creio que haveria uma enorme possibilidade de atrair e até de converter, contanto que se apresentasse a questão como ela é.
(Extraído de conferência de 13/11/1991)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 200, p. 22-27; n. 201, p. 22-25.
2) Ver Revista Dr. Plinio n. 18, p. 18-21.