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Inter-relacionamento entre o espiritual e o temporal

Entre o Sagrado Coração de Jesus e o ambiente temporal há um relacionamento que está na própria natureza das coisas. Certas formas de música, como o jazz-band, repelem e são repelidas por Ele. Devemos sempre procurar a harmonia entre as coisas temporais e Nosso Senhor Jesus Cristo.

No cinema do meu tempo de menino não havia filmes sonoros. Alguns homens, em geral com 60 anos de idade mais ou menos, ganhavam um biscate no fim da tarde, tocando um violino ou martelando o piano no Cine República1, por exemplo, e procuravam ajustar a música às cenas que se passavam.

Deve haver harmonia entre a sociedade espiritual e a temporal

Eu procurava também fazer a relação da música com a cena, e prestava atenção neles pelo gosto de observar a vida, de analisar as pessoas, as fisionomias.

Tudo se passava numa torcida tremenda pelo êxito do Tom Mix ou outro “herói” do cinema daquele tempo.

Imaginem que, em certo momento, por algum desarranjo na fita, aparecesse, em vez do Tom Mix, uma película representando o Sagrado Coração de Jesus. Que efeito produziria no cinema? Uma ducha!

Isto significa que há entre o Sagrado Coração de Jesus e o ambiente temporal — o cinema é um ambiente eminentemente temporal, embora não seja o único — um relacionamento “natural”, no sentido de que está na própria natureza das coisas. E, no caso que estou supondo, posto um em presença do outro, relacionam-se para se excluir. É uma forma de relação. A bomba que estoura numa parede tem relação com a parede; o choque é uma forma de relação.

Também o culto pode ser relacionado com coisas temporais. Por exemplo, o jazz-band é uma forma de música e um tipo de orquestra eminentemente temporal, mas repulsivo ao sacral.

Se esse tipo de música é tocado durante uma cerimônia em que se realiza um ato eminentemente sobrenatural — o Sacrifício da Missa ou a bênção do Santíssimo Sacramento —, naturalmente há um entrechoque.

Portanto, há uma forma de relação do Sagrado Coração de Jesus por onde Ele repele certas coisas temporais; e há uma forma das coisas temporais por onde elas repelem e são repelidas pelo Sagrado Coração de Jesus.

Arquivo Revista
Dr. Plinio tomando beef tea

Isto dá fundamento à tese de que deve haver harmonia entre uma coisa e outra. A sociedade temporal deve ser harmônica com o Sagrado Coração de Jesus, assim como a sociedade espiritual deve ser harmônica com a sociedade temporal, construída em função dela.

Conhecer as coisas pelo contraste

Um ótimo meio de conhecermos as coisas é pelo contraste, comparando-as com algo que contrasta fortemente com elas. É até um meio antiliberal, que eu gosto muito de usar: pôr o contraste com o extremo oposto. Aquilo assusta o liberal e abre os olhos dele sobre a realidade.

Então, seria um ótimo meio de conhecer o Sagrado Coração de Jesus, e de me conhecer a mim mesmo, se eu me perguntasse: Se Ele me visse, o que Ele notaria de afim com Ele, não nas horas em que estou rezando, mas nos momentos em que, digamos, tomo uma refeição?

Por exemplo, o beef tea. São dons que Deus me concede: o apetite, a carne, a pessoa que faz essa boa sopa para mim, e quem venha servir-me esse prato com tanta atenção. Qual é a minha atitude diante desses dons?

Nosso Senhor está me vendo saborear essa refeição. Se Ele me vir sorver isso de modo agitado, inquieto, querendo ainda mais de uma maneira intemperante, qual é o contraste que Nosso Senhor sentirá entre Ele e eu?

Uma iguaria feita por Nossa Senhora

Podemos imaginar que Nossa Senhora cozinhava. O que seria um quitute feito por Ela, ajudada pelos Anjos?!

Suponhamos duas formas de quitutes: ou com uma receita paradisíaca, de que os homens perderam a memória; ou os Anjos que trazem para a Santíssima Virgem, dos confins do mundo, em poucos instantes, leite, farinha, mel e o que mais haja para tornar delicioso um doce, e outros Anjos ainda que remexem para Ela a colher de pau a fim de elaborá-lo.

E o perfume do amor materno que teria aquilo, a ternura com que Ela oferecia!

São cogitações que nos familiarizam com essa inter-relação entre as coisas temporais e as espirituais.

De que modo Jesus comeria essas iguarias feitas por sua Mãe Santíssima? Depende da idade d’Ele, das condições no momento: se havia uma perseguição anunciada, se São José estava muito doente e corria risco de morrer, se estavam somente os dois, ou se, pelo contrário, o santo varão havia melhorado bastante e naquela manhã tinha serrado tábuas valentemente; então ambos faziam um encanto de que São José se alimentasse bem.

Poderíamos passar um longo tempo fazendo conjecturas que entreteriam nossa piedade.

E nós, como comeríamos esse doce feito por Nossa Senhora para Nosso Senhor, se Ele, com suas mãos divinas, destacasse um pedaço e dissesse: “Isto é para este meu filho…”?

Será que Jesus não fez isto para algum menino que ia brincar com Ele na casa da Sagrada Família?

Dois tipos de meditação

Vejam que a propensão da piedade tradicional — propensão muito boa, muito respeitável, muito explicável — era de evitar uma meditação destas, para não atiçar a gula. Preferia-se imaginar uma coisa, tão ou mais possível do que esta: Nosso Senhor comendo algo singelíssimo, como antecipação do sacrifício da Cruz. E Maria Santíssima, vendo isto, dizer: “Meu Filho, fiz tal coisa.” E Ele seriamente, profundamente reflexivo, triste e deitando n’Ela um amor afetuoso, dissesse algo de maneira que Ela sentisse a insinuação — Jesus não falaria diretamente, porque era ainda Menino: “Não sabeis que vim para sofrer?” E dos olhos de Nossa Senhora talvez correr a primeira lágrima da Paixão, avidamente recolhida não sei em que lenço de seda por um Anjo.

Qual dos dois tipos de meditação deve-se achar melhor?

Suponhamos outra cena. São José apronta umas tábuas para o Menino Jesus brincar, e sugere a Ele: “Fazei o que quiserdes.” Jesus diz: “Sim, mas quero fazer sozinho.” Seus pais deixam-No. Quando voltam para vê-Lo, está pronta uma cruz, e furados os lugares dos cravos que transfixariam seus pés e suas mãos.

Vassil (CC3.0)
Sagrada Família – Carmelo de Rochefort, Bélgica

Um arrepio! Não dá vontade de se ajoelhar? Também não é uma boa meditação?

Eu sustento que uma não deve excluir a outra. Pelo contrário, as duas se completam. Conforme a missão e as vias de cada alma, Nossa Senhora vai dando a graça de pensar ora numa coisa, ora noutra, e fazer assim meditações muito originais, muito boas, muito próprias a nos conduzir diante da graça de Deus.

Uma das mais largas portas que conduzem ao Inferno

Eu gostaria de fazer notar que — tanto quanto eu possa conjecturar como é Nosso Senhor Jesus Cristo, o Sagrado Coração de Jesus — o que mais chocaria a Ele é ver em nós a falta de seriedade.

É uma espécie de “necessidade de alma” que nós temos — uma necessidade que é uma tortura, o caminho de toda espécie de sofrimentos — de viver no otimismo, embora saibamos não serem verdadeiros os prognósticos que estamos fazendo; de viver na alegria, mesmo percebendo que esta alegria se funda em motivos ilusórios; de viver dando risada, como se esta fosse a única posição possível entre os homens.

Eu creio que, das várias portas que conduzem ao Inferno, uma das mais largas, pela qual entra mais gente, é a mania de rir. Rir constantemente, achar graça em tudo, divertir-se com tudo.

O Sagrado Coração de Jesus não nos é apresentado, em nenhuma imagem, rindo. Não conheço nenhuma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo dando gargalhadas.

Suponham uma narração assim: “Jesus, então, deu uma gargalhada e respondeu…” Não é possível! Então, por que vou querer dar gargalhada o tempo inteiro? Sou seguidor d’Ele, ou o que eu sou?

Rir alguma vez, está bem; a gargalhada não é má em si. Entretanto, Nosso Senhor está situado num plano excelso e a gargalhada não se encontra à altura d’Ele, e sim à minha altura. Se ela fosse má em si, não estaria à altura de nenhum filho d’Ele. Mas, viver rindo, não está à altura de um filho de Nosso Senhor! E, pelo contrário, o filho d’Ele deve, como Ele, ser sério. Porque a seriedade é a regra da vida.

Estar voltado para os aspectos ideais das coisas

O que é a seriedade?

É ver as coisas como elas são. Que banalidade…!

Como são as coisas?

Todos os homens têm um arquétipo, uma possibilidade ideal de serem de um determinado modo — sempre muito elevado, sublime —, como Deus tinha intenção que eles fossem, quando os criou.

A pessoa que se conforma com esse modelo possui também uma alma muito aberta para o sublime.

Em consequência, alguém nessas condições deve ter sua alma sempre voltada para os aspectos ideais e maravilhosos das coisas. E, fazendo o menor ato, deve ter o hábito mental de se perguntar como seria se fosse perfeito. E também vendo qualquer coisa, por mais insignificante que seja, perguntar-se como ela seria se fosse perfeita.

Por exemplo, mecanicamente todos nós olhamos para este lustre que ilumina a sala. Quem se perguntou o seguinte: Se este fosse um lustre ideal, embora mantendo o mesmo gênero e desenho, como seria?

Imaginar coisas dessas deveria nos entreter.

Não é o pensamento banal: “Se eu ganhasse dinheiro, que lustre poria aqui?”

Esta não é uma reflexão, mas sim uma imaginação, uma vagabundagem do espírito. Não vale nada. Mas: “O lustre perfeito deste estilo, como seria?”

Considerações a respeito do vinho

Outro exemplo: a Gironda é uma região da França onde se produz o famoso vinho de Bordeaux, capital da Gironda. Li em uma revista a explicação de um colecionador francês, que apresenta quatro ou cinco garrafas diferentes, vazias, para vinhos diversos, indicando qual é a afinidade existente entre cada garrafa e o respectivo vinho.

São garrafas comuns que ganham uma particular beleza só por isso. Se eu pudesse, mandaria vir da França essas garrafas e guardava-as junto com essa explicação para, de vez em quando, rever.

Nessa mesma revista havia uma fotografia mostrando um copo iluminado à luz de vela, com uma legenda que dizia: “Feliz o vidro que presta serviços ao vinho. Se o vidro não fosse transparente, o homem não poderia ver o vinho. E se ele não pudesse ver o vinho, não o saborearia inteiramente!”

E vinha uma explicação sobre a função do copo com formato ideal para certo tipo de vinho, e visto à luz de uma vela, acrescentando que o vinho pede ser visto à luz de vela.

Alguém diria que falta seriedade a este tema.

Não é verdade. É uma consideração séria do vinho, da garrafa, criaturas de Deus que devemos amar, para ver como são esplêndidas e em que ponto refletem a glória do Criador.

Eu poderia imaginar os discípulos de Emaús bebendo um vinho desses… Como seria o vinho escolhido para a Consagração, na primeira Missa realizada por Nosso Senhor, no Cenáculo?

Estas são considerações sérias a respeito do vinho.

A sociedade perfeita

Agne27(CC 3.0)

Henrysalome (CC 3.0)
Castelo Guiraud – Sauternes, França

Suponham dois amigos que se sentam junto a uma mesa onde está uma garrafa dessas com vinho. Eles bebem e começam a comentar isso. Seria uma conversa indigna de se realizar na presença de uma imagem do Sagrado Coração de Jesus que ali estivesse sobre uma coluna? Nem um pouco, pois este é um assunto sério.

Quem vive melhor e encontra na vida mais apoio, mais alento para a prática da virtude: esses dois que conversam amistosamente, analisam juntos, cada um comunica ao outro um pouquinho da sua análise e saem mais amigos, sem ter dado uma gargalhada? Ou dois patuscos que passam o tempo inteiro contando piadas e, de vez em quando, soltam alguma imoralidade pelo meio, pois de piada em piada, acaba-se caindo em coisas piores?

Temos, assim, uma ideia de como deve ser a sociedade temporal.

O comum da vida pode ser considerado como uma cordilheira: tem algumas situações mais altas, e outras que legitimamente são menos elevadas.

Pode-se imaginar um homem que, em determinado momento, esteja com toda a sua atenção posta numa coisa menos alta. Por quê? Porque é a profissão dele. Se ele é engraxate, tem que ver se aquele sapato está bem engraxado. Pode-se imaginá-lo, portanto, até gracejando. Não tenho objeção contra isto.

Mas, no fundo, deve ser um homem que tenha sempre — mesmo quando graceje — a mentalidade voltada para realidades mais nobres. Aí nós teríamos a sociedade perfeita!

Aqui estaria a chave para responder à seguinte pergunta: Como será a sociedade temporal no Reino de Maria?

(Extraído de conferência de 19/12/1985)

1) Situado, então, na Praça da República, centro velho de São Paulo.

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